Em primeiro debate, Kamala joga Trump na defensiva e ataca histórico político; republicano aposta na imigração
Naquele que pode ter sido o único debate entre Kamala Harris e Donald Trump, os dois candidatos à Casa Branca subiram ao palco na Filadélfia com estratégias radicalmente diferentes. Kamala tentou aliar seus planos para o futuro, centrados na economia, com os ataques ao republicano, citando seus problemas com a Justiça e inconsistências políticas. Já Trump, um “veterano” desse tipo de embate, apostou na imigração, sua principal bandeira de campanha, se viu na defensiva em vários momentos, e sofreu reprimendas até dos moderadores.
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Kamala, que jamais havia trocado uma palavra sequer com Trump, foi apertar a mão do republicano e se apresentou a ele — foi o último momento cordial até o fim dos 90 minutos de debate, antes da democrata começar a discorrer sobre o primeiro tema da noite: a economia.
— Eu acredito nos sonhos nas aspirações do povo americano — afirmou Kamala, ao apresentar as bases do que chama de “economia de oportunidade”, centrada na classe média e nos pequenos empreendedores, também citando sua própria história de vida. Ainda aproveitou para acusar Trump de querer governar apenas para a parcela mais rica da população.
Trump, ao seu estilo conhecido dos comícios, lançou uma série de argumentos até certo ponto desconexos não apenas sobre economia, mas também sobre a imigração, a ponto de ser repreendido por um dos moderadores. Kamala o acusou de ter manejado mal a pandemia da Covid-19, dizendo que o governo de Joe Biden trabalhou para “resolver a bagunça”, e citou o Projeto 2025, um plano elaborado por conservadores do qual Trump tenta se desvencilhar em público, sem muito sucesso.
— Não tenho nada a ver com o Projeto 2025 — disse Trump. — Isso está aí. Eu não li. Não quero ler, propositalmente. Não vou ler.
O republicano defendeu seu plano de impor uma tarifa sobre importações, especialmente sobre produtos vindos da China, afirmando que a proposta não elevará a inflação, como aponta Kamala — ele disse ainda que os democratas “destruíram” a economia.
Em um dos temas mais sensíveis da campanha, o aborto, Trump defendeu a decisão da Suprema Corte, de 2022, que delegou aos estados a decisão sobre políticas relacionadas à interrupção de gestações, chamando os juízes conservadores, três indicados por ele, de “corajosos”, e não quis responder se apoiaria uma proibição nacional do aborto — o republicano tampouco soube comentar de forma concisa as objeções de seu companheiro de chapa, J.D. Vance, ao aborto legal.
Kamala, que tem na defesa do direito ao aborto um ponto considerado forte da campanha, citou casos de mulheres que morrem em procedimentos ilegais e arriscados, e prometeu levar ao Congresso um plano para tornar esse direito uma lei federal. Ela foi uma das principais vozes que se levantaram contra a decisão da Suprema Corte, que revogou uma jurisprudência firmada em 1973.
— Não é preciso abandonar a fé ou crenças profundamente arraigadas para concordar que o governo e Donald Trump, certamente, não deveriam dizer a uma mulher o que fazer com seu corpo — disse Kamala. — Eu acho que o povo americano acredita que certas liberdades, em particular a liberdade de tomar decisões sobre o próprio corpo, não devem ser tomadas pelo governo.
No tema da imigração, Kamala Harris mencionou que Trump atuou para torpedear um plano para imigração, considerado um dos mais duros em muitos anos, por considerar que poderia “ajudar” na campanha de Joe Biden — ao afirmar que seu rival não tem propostas claras, disse que ele cita “ideias ficticias”, em seus comícios, e que as pessoas vão embora antes do fim dos discursos. Em determinados momentos da argumentação do republicano, chegou a dar risadas.
Como esperado, a democrata citou os quatro processos criminais contra o republicano, incluindo a condenação no caso ligado ao pagamento pelo silêncio de uma atriz pornô antes da eleição de 2016, e afirmou que é hora de abandonar o “velho livro de jogadas” e apresentar propostas para o futuro. Trump disse que “está vencendo” em todos os casos, e acusou o governo Biden de usar a Justiça como arma contra ele, algo que, opinou, “jamais aconteceu neste país”.
— Essa é a que armou, não eu. Ela armou. Eu provavelmente levei um tiro na cabeça por causa das coisas que eles dizem sobre mim. Eles falam sobre democracia, ‘eu sou uma ameaça à democracia.’ Eles são a ameaça à democracia — alegou.
Trump se desvencilhou de uma pergunta sobre seu papel na invasão do Capitólio, realizada por seus apoiadores, em 6 de janeiro de 2021, para tentar impedir a confirmação da eleição de Joe Biden pelo Senado. E deu uma resposta curiosa ao ser questionado se tinha algum arrependimento.
— Eu não tive nada a ver com isso — disse, alegando que apenas fez um discurso, pouco antes do ataque, no qual conclamou seus apoiadores a irem até o Congresso. — Eu não era responsável pela segurança. Nancy Pelosi [ex-presidente da Câmara] era responsável. Ela não fez seu trabalho.
Para Kamala Harris, as palavras de Trump — que ainda não reconhece a derrota há quase quatro anos — mostram que é hora de “virar a página” e olhar para o futuro.
Ao longo da noite, Trump se apegou à imagem de uma “invasão de imigrantes” como argumento para praticamente todas suas perguntas — ele chegou a “desafiar” Kamala Harris a chegar em Washington e assinar uma lei fechando a fronteira com o México, e contou uma história, falsa, de que imigrantes haitianos estariam roubando cães e gatos para comer em Ohio. Kamala, como o fez em praticamente todas as respostas, riu e depois usou um dos slogans do republicano.
— Donald Trump foi demitido por 81 milhões de pessoas — declarou, citando a votação recebida por Biden e ela em 2020. Pouco antes, Trump alegou, sem fundamentos, de que venceu a eleição.
Na primeira menção a política externa, Trump disse que Kamala Harris “odeia Israel” e também “a população árabe”, alegando que a guerra na Faixa de Gaza “jamais teria acontecido” se estivesse no poder. Ele prometeu colocar fim à guerra na Ucrânia antes mesmo de assumir o cargo, caso seja eleito, dizendo que os europeus deveriam ter gastado mais na ajuda militar a Kiev. Kamala respondeu que o republicano é “fraco”, e que apoia ditadores “porque quer ser um ditador ele mesmo”.
— Eu viajei pelo mundo como vice-presidente dos Estados Unidos e os líderes mundiais estão rindo de Donald Trump — disse Kamala, que o lembrou de que está concorrendo contra ela, e não contra Joe Biden. — Eu conversei com líderes militares, alguns dos quais trabalharam com você [Trump], e eles dizem que você é uma vergonha.
Kamala reiterou o compromisso dos EUA com a defesa da Ucrânia, apontando que os equipamentos cedidos ajudaram na contenção dos russos, e afirmando que, se Trump estivesse no poder, “[Vladimir] Putin [presidente da Rússia] estaria sentado em Kiev”, com os olhos voltados para o resto da Europa. A vice-presidente negou que tenha se encontrado com Putin dias antes do início da guerra, como alegou Trump, e disse que o ex-presidente “adora homens poderosos” mais do que a democracia.
Ainda na diplomacia, a democrata atacou o acordo firmado por Trump com o Talibã em fevereiro de 2020, que pavimentou a desastrosa saída dos EUA do Afeganistão, em agosto de 2021, e lembrou que o republicano chegou a convidar lideranças da milícia para a residência de Camp David, defendendo a decisão do governo Biden de retirar as forças americanas do país.
Na reta final do debate, Trump disse que “não liga” para como a candidata democrata se identifica racialmente, e ouviu de Kamala que ele está “sempre tentando dividir” o país — ela citou que Trump apoiou a difusão da teoria da conspiração que questionava o local de nascimento do ex-presidente Barack Obama, e afirmou que é o momento de unir o país e olhar para frente, defendendo que uma “nova geração de políticos” assuma os rumos dos EUA.
— Claramente, não sou Joe Biden e certamente não sou Donald Trump. E o que ofereço é uma nova geração de liderança para nosso país — disse Kamala. — Não queremos um líder que esteja constantemente a tentar fazer com que os americanos apontem o dedo uns aos outros.
O repubicano reconheceu não ter um plano para substituir o modelo instituído por Barack Obama, nem 2010, para ampliar o acesso à saúde nos EUA, um país que não tem um sistema público e gratuito. Kamala Harris prometeu fortalecer o sistema atual, ao mesmo tempo em que prometeu manter as opções privadas ao público americano.
Kamala Harris encerrou sua participação focando na linha central de sua campanha: o olhar para o futuro, dando oportunidades para as famílias americanas, defendendo as liberdades fundamentais e fortalecendo o “papel dos EUA” no mundo.
— Esse é o tipo de presidente que precisamos. Que olhe para você, e não pense nele primeiro — afirmou Kamala.
Trump citou que a democrata faz parte do governo há três anos e meio e “não fez nada” do que defendeu no palco. Ele disse que os EUA “estão sendo motivo de risada” ao redor do mundo e que são “uma nação em declínio”, recuperando uma antiga retórica dos tempos da Guerra Fria, a de que uma guerra nuclear está próxima. E concluiu apelando, mais uma vez, para a carta da imigração, associando as pessoas em situação irregular ao alegado declínio do país.
Os dois não se cumprimentaram no final. Segundo monitoramento da rede CNN, Trump falou por 42 minutos e 52 segundos, e Kamala falou por 37 minutos e 36 segundos. Ao longo do debate, os moderadores concederam tempo adicional para esclarecimentos, especialmente da parte do republicano, e também o corrigiram ou o repreenderam ao menos três vezes.
Estreante em debates presidenciais, Kamala Harris se dedicou aos ensaios ajudada por uma veterana democrata, Karen Dunn, uma advogada que prepara candidatos do partido desde 2008, incluindo o atual presidente, Joe Biden. As práticas envolviam um “dublê” de Trump que chegou a usar um vestuário similar ao do ex-presidente, além de longas horas usadas para minimizar pontos fracos e estabelecer estratégias de ataque.
Trump, por sua vez, disse publicamente — como afirma desde 2016 — que não precisa de treinos para debates na TV, muito embora assessores o tenham desmentido, revelando que ele participou de treinamentos específicos. Chamou a atenção a presença de uma velha conhecida dos democratas na equipe do republicano: Tulsi Gabbard, que chegou a disputar uma vaga na disputa presidencial em 2020 (e debateu com Kamala), mas que tem se alinhado ao trumpismo nos últimos anos.
Com a maior parte dos estados apresentando tendências definidas — onde a vitória de um ou outra já é esperada por fatores históricos ou circunstanciais — ambos agora centrarão suas forças em um grupo reduzido de estados, chamados de “pêndulo”, onde o partido vencedor pode variar a cada ciclo eleitoral.
As pesquisas no Michigan, Wisconsin, Geórgia, Carolina do Norte, Arizona, Pensilvânia e Nevada apresentam números extremamente próximos, em alguns casos de menos de um ponto percentual. E está aí a importância dos indecisos. Segundo uma sondagem do site The Hill, em parceria com o Emerson College, 1,7% entrevistados na Carolina do Norte dizem não saber em quem votar, enquanto no Wisconsin eles são 1,5% — percentuais que, segundo a mesma pesquisa, são menores do que as diferenças entre os dois candidatos.
— Alguns estão indecisos porque estão realmente divididos. Alguns estão indecisos porque estão tentando descobrir se querem um dos candidatos dos principais partidos ou um candidato de um terceiro partido — afirmou, em entrevista à rádio pública NPR, Margaret Talev, diretora do Instituto de Democracia, Jornalismo e Cidadania da Universidade Syracuse. — Mas a principal coisa que muitos eleitores indecisos têm em comum é que eles são o que você colocaria na categoria de eleitores com pouca informação.
Desde sua confirmação para substituir um impopular Joe Biden, em julho, Kamala tem se lançado em uma sequência de comícios, reuniões e encontros setoriais para apresentar seus planos, especialmente sobre a economia. A maior parte dos eleitores (51%), apontou uma pesquisa do Wall Street Journal, de agosto, confia mais em Trump do que em Kamala (43%) para lidar com as finanças do país. Alguns a veem como “excessivamente liberal”, como revelaram pesquisas com grupos focais — segundo os números da revista Economist, em parceria com o instituto YouGov, quase metade dos indecisos (48%) nos estados-pêndulo se dizem moderados.
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Segundo o agregador de pesquisas do site Real Clear Polling, Kamala é vista de maneira favorável por 48,2% dos eleitores, e de maneira desfavorável por 47,3%.Trump é malvisto por 52,5% dos entrevistados, e 44,8% têm de si uma imagem positiva. Até o momento, as campanhas ainda não entraram em acordo sobre a realização de um novo debate antes da eleição de novembro.
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