Minha viagem à foz do rio Doce – 11/09/2024 – Zeca Camargo




Andreia foi o primeiro rosto que vi chegando a Povoação e o último que ficou em minha memória quando deixei a região da foz do rio Doce. Certamente diferente de quando eu cheguei lá para uma vivência que eu nunca imaginei que iria mexer tanto comigo.

Semanas atrás aceitei um convite de um sujeito chamado Ronaldo Fraga. “Sujeito” foi o melhor termo que encontrei para este amigo de várias décadas, um criador e agitador cultural essencial que nos ajuda a amar ainda mais o Brasil.

Explico melhor: “sujeito” é geralmente apontado como um dos termos essenciais da oração, o que é também uma boa maneira de definir Ronaldo Fraga. Menos no sentido religioso, ainda que não lhe falte devotos, mas mais no que diz respeito à gramática, numa frase que faça sentido.

Não foi o primeiro convite seu para me encantar com novas descobertas. E sempre, não conseguindo ir, tinha a certeza de ter perdido algo de fascinante, mais um presente velado de Fraga para nos ajudar a entender e validar a alma brasileira.

Desta vez, no entanto, nossas agendas se sincronizaram e fui com um seleto grupo de pessoas sensíveis e iluminadas viver algo que só posso descrever como um encantamento. Tudo foi organizado por dois jovens paraibanos, Pablo e Thiago Buriti, que criaram uma agência de viagens focada em quem quer mergulhar num Brasil profundo e belo.

Não conhecia essa região do Espírito Santo, mas certamente já tinha ouvido falar sobre ela —e não exatamente pelos motivos mais nobres. Regência Augusta e Povoação são vilas próximas a Linhares (ES) que sobreviveram a uma das maiores tragédias ambientais da história: o rompimento da barragem em Mariana (MG), em 2015.

Os prejuízos devastadores não atingiriam apenas a natureza. As famílias de toda a região entre Mariana (MG) e Linhares vivem até hoje um prejuízo incalculável, não apenas na economia que as sustentavam, mas em suas próprias vidas.

Além de todo o povo krenak, ancestralmente ligado ao rio, toda a população da área tornou-se vítima da tragédia ambiental. E uma grande mobilização foi organizada para uma reparação.

O que vi ao visitar Regência e Povoação foi parte desse resultado, fruto de ações promovidas pela Fundação Renova, criada para reparar os danos do rompimento da barragem. A aposta na cultura local, do resgate da memória do corajoso Caboclo Bernardo aos folguedos da tradicional reizada, foi acertada.

Junto da tristeza de quem ficou nessas terras, mulheres mães que não raramente se viram abandonadas pelos parceiros depois de eles receberem uma indenização, veio a vontade de transformar o que restava das suas vidas.

Como dona Mercedes, que emprestou sua casa para grafites criados para embelezar sua vila. Ou a Dadá, que bate no tambor do congado com a mesma energia com que prepara seu escabeche de sarda.

E como a Andreia que nos contava com orgulho como as mulheres de Povoação se organizaram para criar tilápias em tanques, já que o peixe que suas famílias costumavam pescar ainda está contaminado. Seu único lamento naquela manhã: “Não deu tempo de preparar as nossas empadinhas de tilápia pra vocês provarem”.

E foi nessa hora que eu me afastei do grupo, cheguei perto do rio Doce, onde ele já está bem próximo ao mar, sentei e chorei.


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