Senado aprova reforma que faz do México o primeiro país do mundo a implementar eleição popular de juízes
Em meio à enorme pressão e advertências ao longo dos últimos meses, incluindo por parte do mercado financeiro e dos EUA, o Senado do México aprovou pouco depois da meia-noite desta quarta-feira a polêmica reforma constitucional que torna o país o primeiro do mundo a adotar a eleição popular de todos os seus juízes. A medida visa mudar o sistema Judiciário de cima a baixo, mergulhando os mexicanos em um território desconhecido. Após a aprovação, o presidente Andrés Manuel López Obrador comemorou a decisão e disse que a reforma será “um exemplo para o mundo”.
A proposta foi aprovada com a maioria qualificada: 86 votos a favor, o equivalente a dois terços dos 127 senadores presentes na Câmara Alta, dominada pelo partido governista Morena e seus aliados, e 41 votos contrários dos partidos de oposição.
— O Judiciário, como já foi mais do que demonstrado, não faz justiça — afirmou o presidente cessante em entrevista coletiva nesta quarta-feira. — É muito importante acabar com a corrupção e a impunidade. Vamos fazer um grande progresso quando o povo do México eleger livremente os juízes, os magistrados.
A mudança é a mais importante no sistema judicial desde 1994, quando a Suprema Corte foi reduzida de 23 para 11 assentos e o Conselho Judiciário foi criado, e propõe que juízes e ministros do Supremo Tribunal Federal sejam eleitos a partir de listas de candidatos propostas pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Seus críticos afirmam que o mecanismo irá minar a independência judicial.
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O texto foi enviado em fevereiro por López Obrador, promovida em um contexto de confronto entre o presidente e o Supremo Tribunal, que bloqueou leis que ampliavam a participação do Estado no setor energético e deixavam a segurança dos cidadãos nas mãos dos militares. Começou a tramitar na Câmara ainda na semana passada. A vitória para Obrador acontece menos de um mês antes de o presidente passar o poder para sua sucessora, Claudia Sheinbaum, que também apoiou sem reservas a emenda.
A proposta foi aprovada em uma sessão extremamente caótica, digna de uma novela mexicana, que envolveu uma mudança repentina de sede parlamentar — após centenas de manifestantes invadirem o plenário da câmara legislativa —, além de uma intensa troca de acusações entre governistas e oposição.
A medida foi aprovada graças ao apoio, no último segundo, de uma das famílias políticas que Obrador mais criticou na última década: os Yunes, membros do PAN (Partido de Ação Nacional). Encurralados pela Judiciário, deram o braço a torcer para permitir a maioria qualificada da qual Morena e seus aliados precisavam.
O bloco formado pelos partidos Morena, de Obrador, do Partido Verde (PVEM) e do Partido dos Trabalhadores (PT) recebeu o apoio do senador Miguel Ángel Yunes Márquez, filho do ex-governador de Veracruz, Miguel Ángel Yunes Linares. A maioria também se beneficiou da ausência de outro senador da oposição, Daniel Barreda, do Movimento Cidadão (MV) que não compareceu à sessão, alegando que estava acompanhando seu pai, que foi preso na terça-feira em Campeche.
A oposição viu o apoio de Yunes e a ausência de Barreda como resultado de uma campanha agressiva do partido governista baseada em ameaças e perseguição, a fim de obter os votos necessários para aprovar a emenda. Morena negou as acusações, que tampouco foram sustentadas com evidências. No final, 41 senadores do PAN, PRI e MC votaram contra a reforma.
Para concluir o processo de emenda, ela deve ser ratificada pelos congressos de pelo menos 17 estados. Essa é uma tarefa fácil para o Morena, que governa dois terços do país. E então López Obrador poderá implementar sua reforma antes de deixar o poder. Caberá a Sheinbaum implementá-la. E pagar os custos.
Ao longo dos meses, o peso mexicano se desvalorizou devido à incerteza entre os investidores, que temem que o judiciário perca a independência em relação ao executivo. O governo dos EUA também ,mostraram-se preocupados, alertando sobre, entre outros pontos, o “risco” para a democracia mexicana, já que o tráfico de drogas poderia aproveitar-se da eleição popular para manipular os juízes. Grupos de cidadãos, incluindo contingentes de trabalhadores do judiciário, saíram às ruas em protesto e intensificaram suas mobilizações.
Desde o início, para não mencionar os últimos dias, houve acusações de coerção, chantagem e traição dentro das fileiras da oposição. Assim que o debate começou, Clemente Castañeda, coordenador do MC, denunciou que tanto o senador Barreda quanto seu pai haviam sido detidos e acusou diretamente a governadora de Campeche, a morenista Layda Sansores, que imediatamente negou a acusação por meio de suas redes sociais.
— Você sabe que eles não têm os votos para aprovar a reforma constitucional e que é uma realidade que eles estão pressionando, usando os gabinetes dos promotores estaduais para obter os votos que lhes faltam — acusou Ricardo Anaya, membro do PAN.
Durante o dia, as notícias sobre a situação de Barreda mudaram. O coordenador de Morena, Adán Augusto López, e o presidente do Comitê Executivo do Senado, Gerardo Fernández Noroña, garantiram que nem o ex-deputado nem seu pai haviam sido presos. Noroña afirmou que, após uma ligação direta com Barreda, este lhe disse que estava na Cidade do México “em perfeitas condições”.
O MC não recuou e manteve até tarde da noite a alegação de que seu correligionário estava fora de alcance. O congressista do EME, Juan Zavala, viajou para Campeche e de lá informou que, embora Barreda não estivesse preso, seu pai estava. A senadora do PAN, Lilly Téllez, acusou Morena de ter “sequestrado” o legislador do MC. No início da sessão, Fernández Noroña ressaltou repetidamente que Barreda estava livre. Quando a sessão se estendeu pela noite, Barreda gravou um vídeo de Campeche, lançando dúvidas sobre a afirmação de Fernández Noroña de que o senador estava na capital do país.
Depois veio o desconhecido e a confusão de Yunes Márquez filho. Desde segunda-feira à noite, quando o senador interrompeu todo o contato com seu partido, surgiram dúvidas sobre sua adesão ao partido governista. As suspeitas aumentaram quando Fernández Noroña informou ao plenário que o senador do PAN havia solicitado uma licença devido a uma doença na coluna. A licença permitiu que seu lugar fosse ocupado por seu substituto, ninguém menos que seu próprio pai, Yunes Linares pai.
Quando o ex-governador de Veracruz entrou no plenário, escoltado por partidários do Morena e abraçado por Augusto López, ele foi até a tribuna e começou a discutir com Marko Cortés, senador e líder do PAN, que momentos antes havia acusado Yunes filho de ser o único candidato a ocupar o cargo. O confronto mostrou que o clã Yunes, que enfrenta várias acusações de corrupção, estava se distanciando do bloco de oposição.
— Teria sido mais decente, meu caro amigo, se você tivesse atendido ao nosso chamado e nos dissesse: “Vou trair vocês” — disse Cortés da tribuna, com a voz embargada e os olhos vermelhos.
A bancada do PAN lançou críticas contra Yunes Linares pai. “Traidor, traidor!”, gritaram partidários. Yunes pai deu a entender que seu filho poderia reaparecer à tarde para defender seu próprio voto, que ambos mantiveram reservado até a noite. E então o inesperado aconteceu. No local alternativo onde os senadores se reuniram, a Antigua Casona de Xicoténcatl, Yunes Márquez filho apareceu, sem sinais de convalescença, e retomou o lugar que seu pai havia ocupado por algumas horas. Foi o próprio Yunes Márquez filho que dissipou qualquer dúvida sobre sua posição: ele votaria com Morena.
— Sei que a reforma do judiciário que foi proposta não é a melhor, mas nas leis secundárias teremos a oportunidade de aperfeiçoá-la e implementá-la — disse Yunes filho, acrescentando: — É por isso que, na decisão mais difícil de minha vida, decidi votar a favor da decisão de criar um novo modelo para a administração da Justiça.
Os legisladores do bloco governista comemoraram o apoio do deputado do PAN. “A reforma vai, a reforma vai”, comemoraram. Yunes Márquez filho denunciou que estava, de fato, sujeito a pressões para a orientação de seu voto, mas não do partido governista, como a oposição denunciou nos últimos dias, e sim de seu próprio partido.
— Não posso aceitar que queiram me impor a orientação do meu voto de qualquer forma; nunca vi uma tentativa tão grosseira de imposição e subjugação no PAN como tenho visto nestes dias. Com ameaças e agressões, tentaram me obrigar a falar contra uma reforma sem analisá-la, sem discuti-la, sem dialogar, simplesmente porque decidiram ir contra a maioria — disse ele, terminando com uma frase que o transformou no herói da noite: — É preciso mais coragem para ir contra a corrente do que para acompanhá-la. O tempo dirá.
A sessão do Senado, na sede inicial e na suplente, transcorreu com protestos do lado de fora liderados por cidadãos contrários à reforma do Judiciário. No dia anterior à aprovação, centenas de manifestantes, em sua maioria jovens, invadiram a sede do Senado na noite de terça-feira, apesar do destacamento da polícia da Cidade do México no perímetro do local. Lá dentro, a equipe de segurança tentou impedir a destruição com o líquido dos extintores de incêndio.
Enquanto alguns dos manifestantes tentavam arrombar as portas da sala de sessões, outros gritavam: “O judiciário não cairá, não cairá!” e “Onde estão eles, onde estão eles, os senadores que iriam nos ouvir!” A sessão foi suspensa. Os membros do bloco Morena, PVEM e PT deixaram o plenário por portas alternativas, enquanto os do PAN, PRI e MC permaneceram em seus lugares.
Após várias tentativas de arrombamento, as portas do plenário foram abertas e o tumulto ocupou os assentos dos senadores. Lá dentro, dezenas de jovens cantaram o Hino Nacional e demonstraram seu apoio aos legisladores da oposição.
— Vocês não estão sozinhos, vocês não estão sozinhos — gritavam.
Devido à invasão, o presidente da Casa, o senador Gerardo Fernández Noroña, chegou a decretar um “recesso indefinido”, convocando, pouco depois, nova sessão em uma sede alternativa, Xicoténcatl. Já instalado na sede alternativa, Fernández Noroña acusou a oposição de ter permitido deliberadamente a entrada de estranhos no Senado, que foi “objeto de uma irrupção violenta”.
— [O Senado foi] objeto de uma tentativa de golpe que buscou criar um vácuo no exercício do poder legislativo, afetando assim as instituições democráticas do Estado mexicano — disse o presidente da Câmara Alta.
A entrada de centenas de manifestantes na Câmara de Sessões envergonha os protocolos de segurança das autoridades e revela, no mínimo, negligência. Nada, porém, deteve a máquina do partido governista. Nem os protestos dos cidadãos, nem as acusações de chantagem da oposição, nem os avisos de instabilidade econômica anunciados há meses. Os senadores de Morena votaram lembrando López Obrador, a quem definiram como o melhor presidente da História recente. (Com El País e AFP)
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