Carona é um pacto não de sangue, mas de gasolina e amizade – 29/09/2024 – Bia Braune

Um carro se põe em movimento após uma combustão no motor. Caminhos, não. Iniciam-se a partir de uma química mais peculiar entre indivíduos, deflagrada sem grandes rebimbocas. “Tá indo pra onde? É? Eu também. Posso ir contigo?”.

E lá vamos nós. Carona —tanto dada, quanto recebida— é um gesto que, quanto mais se repete, mais caracteriza um convívio especial sobre rodas. Por isso, sempre que fico a pé por longos períodos, contando com a gentileza quilométrica de amigos, me lembro da Flávia.

Morávamos do mesmo lado da cidade, a 70 km diários da firma. O tipo de distância que, calculada em termos de tempo, trânsito e calor carioca, transforma qualquer deslocamento numa ilíada com odisseia.

“Então vamos?”. “Vamos!”. E desligávamos o telefone, cientes desse pacto não de sangue, mas de gasolina rachada. Honrando uma geolocalização rigorosamente imprecisa: “te pego ali na viradinha, aquela, arrã, antes do ponto final”.

A bordo de um Fox preto, Flávia e eu estocávamos víveres. Isto é, chicletes e amendoins pendurados em nossos retrovisores, numa preparação simultânea para o apocalipse zumbi, a terceira guerra mundial e eventuais aniversários de supermercado que congestionassem todo o trajeto até nossa redação.

Só em playlists, zeramos tudo que já existiu entre Noel Rosa e Luan Santana. Brincávamos de “que profissão você teria por hobby, se não precisasse mais trabalhar?”. Eu, jardineira do Palácio de Versalhes.

Ela, patinadora do Holiday On Ice.

Conversávamos, sobretudo. Casamento, divórcio. O filho que eu queria ter. As duas meninas que ela já tinha. Meu pai conservador e a lembrança vívida do pai dela sendo arrancado de casa, durante a ditadura, sem qualquer explicação ou opção de defesa. Flávia com três anos. Não que nos restringíssemos a lamentos ou ao eixo casa-trabalho.

Flávia sambou, jogou futebol e viajou pela América do Sul, enquanto eu engravidei do outro lado do planeta.

Na volta, com carro próprio, me senti pronta para retribuir as caronas, não para receber as notícias. Flávia estava doente, mas que eu não me preocupasse, viu? Logo íamos engarrafar de novo. Nos abraçamos, choramos um bocadinho e ela foi embora. Tão antes do que era para ser o ponto final, que até hoje prefiro imaginá-la ainda pelos caminhos.


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