Alterar estruturas da língua pode alterar as relações sociais? – 30/09/2024 – Thaís Nicoleti

É sempre interessante observar como a língua se comporta diante das tensões que nela se refletem. De uns tempos para cá, muita gente passou a ser corrigida em público nas transmissões ao vivo na internet por uma audiência empenhada em rastrear as marcas de racismo, machismo, homofobia e demais preconceitos que estariam inscritos na língua. Não foram poucos os que passaram a monitorar não apenas a fala alheia como a própria, ciosos de que mudar as palavras é uma forma de mudar o mundo. Talvez seja, talvez não seja. O tempo dirá.

Personagens de novela, que geralmente aparecem na trama fazendo merchandising de produtos, passaram a vender também as lições civilizatórias da cultura “woke”. “Nuvens negras” que anunciavam mau tempo foram substituídas por “nuvens cinza” e muitos outros exemplos foram incorporados aos scripts. Ao mesmo tempo, a ministra Anielle Franco ressaltou que termos como “caixa-preta” e “buraco negro”, que pareciam insuspeitos, também tinham uma carga de preconceito racial.

O verbo “denegrir”, mesmo sendo usado desde o latim no sentido de manchar a reputação, foi um dos principais alvos das cartilhas de letramento racial que apareceram na internet, associado à cor de pele de pessoas, sempre com a advertência de que era muito importante mudar os hábitos linguísticos. A motivação é das melhores; só não sabemos ainda se isso vai contribuir, de fato, para o fim do racismo e dos demais preconceitos.

Dia desses, ouvi uma pessoa ser corrigida em uma live ao usar a expressão “mãe solteira”, que deveria ser substituída por “mãe solo”. A explicação era que “mãe solteira” é uma expressão preconceituosa porque o estado civil não tem nada a ver com a maternidade. Perfeito. Nesse caso, talvez o ideal fosse a supressão do adjetivo: já que não se diz “mãe casada” ou “mãe viúva”, por que dizer “mãe solteira”? Bastaria dizer “mãe”.

No entanto, aparentemente, continua necessário, por diversas razões, distinguir a mulher que exerce a maternidade sozinha. Sendo assim, o termo apropriado é “mãe solo”, que estaria livre da conotação negativa num mundo em que a mulher deixa de ser economicamente dependente de um homem e pode optar por ser mãe sozinha. Ser mãe solo, no entanto, nem sempre é uma opção; no mais das vezes, é uma empreitada muito difícil e até heroica – e o preconceito contra as mulheres, mais forte que a palavra, não deixou de existir nem mesmo com a adoção da nova expressão, segundo relatos publicados na imprensa.

Outro caso interessante é o da expressão “pessoa com deficiência”, que viria substituir “deficiente”, pois nenhum ser humano deveria ser definido pela sua deficiência –o uso da palavra “pessoa” teria uma função importante na conscientização de que eventuais deficiências não impedem alguém de ter uma vida normal. De fato, mas o que se vê hoje é que a expressão foi reduzida a uma sigla (PcD) e lida “pê-cê-dê”. É provável que essa simplificação tenha ocorrido em razão do princípio da economia, muito importante na comunicação.

Há algum tempo, tribunais eleitorais vinham usando com insistência a construção “eleitores e eleitoras” e também “pessoa eleitora”. Parece que as coisas andaram mudando. Em trabalhos acadêmicos, sobretudo na área de humanidades, passou a ser “obrigatório” o uso da linguagem dita “inclusiva”, de modo que, onde se lia “os historiadores”, se passou a ler “os historiadores e as historiadoras” – e assim por diante, sempre com as duas palavras, no masculino e no feminino. No meio acadêmico, o uso se tornou comum.

Uma coisa, porém, temos de reconhecer. Essa prática, além de tornar o texto enfadonho, é totalmente desnecessária. O motivo é muito simples: a forma “historiadores”, no masculino, generaliza as pessoas que exercem essa atividade. É a condição de “historiador” que interessa quando usamos o termo de modo geral (por exemplo, “os historiadores do século passado”), não a identidade do ser humano. O termo feminino existe para as situações em que tratamos de uma ou mais mulheres em particular (“uma historiadora do período”). Isso vale para qualquer termo que indique a função, a condição, a profissão etc., mas não vale, por óbvio, para homens e mulheres. Ninguém nunca disse os “homens aqui presentes” com o intuito de englobar “homens e mulheres”, certo?

A língua é sábia. Ela seleciona o que funciona. Por exemplo, na sala dos professores, reúnem-se pessoas que lecionam na escola (professoras e professores); o sindicato dos bancários congrega pessoas que trabalham em bancos (bancárias e bancários); nesses casos, como em muitos outros, importa a profissão das pessoas, sendo isso o que as unifica (professores, bancários). Já pensou duplicar todos os termos o tempo todo? Ninguém consegue, ninguém aguenta.

Talvez isso explique a inusitada opção que uma importante faculdade fez ao divulgar a lista de alunos matriculados em uma disciplina. Sob o título “alunas matriculadas”, vinham os nomes: Adão, Artur, Eduardo, Fabiana etc. O raciocínio deve ter sido o de que o gênero gramatical feminino poderia –por que não? – fazer o papel de genérico.

O problema é que não está a nosso alcance fazer uma mudança desse teor, de caráter estrutural. A língua é uma construção coletiva autogerida. É a coletividade representada pelos falantes que determina o que muda e o que não muda, o que tem cabimento e o que não tem. É fácil perceber isso no caso dos neologismos, que, quando úteis ou funcionais, passam a integrar a língua, mesmo que alguns os rejeitem por apego à tradição ou por outro motivo.

Não faz tanto tempo que o verbo “acessar” era malvisto pelos gramáticos (em Portugal, usa-se “aceder”), mas hoje, embora ainda figure no dicionário “Houaiss” como “informal”, é frequentemente usado na imprensa e nos meios universitários. Sobre as cartilhas de “termos politicamente corretos”, seu valor está em mobilizar discussões e processos de conscientização, mas, na prática, são insuficientes para determinar mudanças definitivas na língua. É sempre o conjunto dos falantes quem define o que funciona – e, por óbvio, isso ocorre naturalmente, não mediante algum tipo de enquete.

O pronome “todos”, por exemplo, é um pronome indefinido que indica totalidade inclusiva (todas as pessoas). É uma das palavras mais inclusivas da língua (ao lado de “tudo”), mas a cartilha da inclusão recomenda cumprimentar a “todos e todas”, reduzindo o alcance de “todos”, que ficaria restrito ao gênero masculino. Pode-se dizer que essa fórmula de saudação foi bem-aceita e acabou virando regra de etiqueta em alguns lugares. Cumprimenta-se a “todos e todas” e, depois, está-se livre para continuar falando de forma econômica.

Os mais antigos se lembrarão dos discursos do presidente José Sarney (mandato de 1985 a 1990), que se iniciavam, invariavelmente, pelo bordão “Brasileiras e brasileiros”. Atento à gramática, ele tomava o cuidado de usar o feminino antes do masculino para que, dessa forma, o masculino não fosse tomado como genérico. Será que Sarney já tinha despertado para a necessidade de uma linguagem inclusiva?

O tempo dirá se a sociedade mudou no rastro das palavras ou se o movimento é exatamente o inverso. Aguardemos.



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