Possível militarização dos Brics e as implicações para o Brasil

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O bloco diplomático dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Irã) se reunirá na Rússia no fim deste mês com dois de seus membros envolvidos em guerras: Moscou e Teerã. O tema da “segurança” está na pauta oficial do evento e analistas internacionais receiam que a Rússia e a China tentem impor uma tendência de debates sobre militarização do grupo e, eventualmente, até discutir sua transformação em uma aliança militar no futuro. Se esse cenário se concretizar, o Brasil pode colocar em risco seu sistema de defesa nacional.

A possibilidade de uma militarização nos Brics começou a causar preocupação após a escalada do conflito que a Rússia iniciou contra a Ucrânia em 2022. Moscou já tem usado sua participação nos Brics para mostrar que não foi isolada política e economicamente após sofrer sanções dos Estados Unidos e de seus aliados europeus.

O tema da cúpula dos Brics, que ocorre nos dias 22, 23 e 24 de outubro, é “Multilateralismo para o Desenvolvimento Social Justo e Segurança”. Ao presidir a reunião de cúpula, a Rússia pode levar o debate político e econômico para a esfera militar. A tendência é reforçada pelo fato do novo membro dos Brics, o Irã, estar envolvido na guerra de Israel contra terroristas do Hamas e do Hezollah. Os dois grupos são financiados por Teerã, que nos últimos dias lançou até um ataque direto de mísseis contra Israel.

Rússia e Irã já têm um acordo militar bilateral onde os iranianos fornecem drones e mísseis para serem usados na guerra da Ucrânia em troca de aviões de caça russos. China e Brasil firmaram em abril um tratado para promover um plano de “paz” para a Ucrânia, no qual a Rússia saia favorecida.

Analistas internacionais afirmam que Moscou vai tentar usar a reunião de cúpula deste mês para tentar obter mais apoio político, firmar novas parcerias militares e eventualmente até iniciar debates sobre a possibilidade de transformar os Brics em uma aliança militar para se contrapor à Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte).

Na avaliação do doutor em Ciência Política Gunther Rudzit, professor de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), a possível adesão do Brasil a esses acordos bilaterais militares e à eventual aliança futura “traz consequências políticas e militares”. “Para quem tem muito equipamento padrão Otan, como o Brasil, se fizer isso, vai perder acesso ao equipamento militar ocidental”, pontua Rudzit.

O Brasil, conforme disse o analista, tem um histórico de relações com nações ocidentais e a grande maioria de seu arsenal militar tem origem de países da Otan. Durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, o Brasil também foi elevado ao status de membro extra-Otan, que possibilitou a compra de equipamentos de combate mais avançados e resultou na realização de exercícios militares conjuntos com os Estados Unidos.

Assim, uma possível adesão do Brasil a qualquer tipo de iniciativa militar com origem nos Brics pode colocar em risco a manutenção e renovação do equipamento militar brasileiro, além de indispor o país com o Ocidente.

“Faz décadas que a gente usa equipamento da Otan”, avalia Vitélio Brustolin, pesquisador da Universidade de Harvard e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Os nossos soldados são treinados com a Otan. Em 2021, a Marinha Brasileira estava no Mar Negro treinando com a Otan. A gente não tem nem munição para entrar em um conflito que não seja fornecida pela Otan”, pontua o docente.

Brustolin relembra ainda que os novos submarinos brasileiros são construídos em parceria com a França; uma frota de carros de combate do Exército é de origem italiana (Guarani) e o Brasil tem aviões comprados da Suécia (Gripen) – todos esses países que fazem parte da Otan. Na análise do especialista, é um grande risco o Brasil ter sua política externa desalinhada de sua estratégia de defesa. Substituir o equipamento militar por armas russas e chinesas custaria bilhões de dólares e seria inviável economicamente.

Em 2023, a Turquia, que é membro pleno da Otan, manifestou interesse em entrar nos Brics. O país não foi impedido de iniciar negociações com o bloco, mas vem sofrendo grande pressão dos membros da aliança militar ocidental para desistir do plano.

Lula tem apostado na aproximação com China e Rússia

Os Brics surgiram de um conceito criado em 2001 pelo economista Jim O’Neill, que na época era da consultoria de risco Goldman&Sachs. Ele cunhou o termo ao perceber que no início dos anos 2000 que Brasil, Rússia, Índia, China e posteriormente África do Sul tinham em comum serem economias em desenvolvimento com potencial para no futuro liderarem o desenvolvimento global. Só a China chegou perto desse estágio e O’Neill depois afirmou que sua previsão não se concretizaria.

O coletivo de nações emergentes passaram a se reunir anualmente, mas não firmaram tratados econômicos, de circulação de bens e pessoas, nem criaram dispositivos vinculantes que obrigassem seus membros a seguir políticas decididas em conjunto, como aconteceu com a União Europeia, por exemplo. Era um grupo diverso e informal.

Em 2016, o grande feito do bloco foi anunciado: o New Development Bank (NDB), o Novo Banco de Desenvolvimento. Jim O’Neill ainda classificou o banco como a única realização concreta dos Brics.

Nos últimos anos, contudo, o bloco também começou a ganhar um caráter político, uma guinada puxada especialmente pela China em 2023. Com Xi Jinping no poder do país há mais de 10 anos, o autocrata chinês desfia a hegemonia econômica e militar americana.

Enquanto Estados Unidos e China aplicam sanções mútuas e se enfrentam numa disputa geopolítica, Pequim passou a buscar apoio por meio de investimentos em países do chamado Sul Global. O Brics entrou nesse radar e hoje a influência chinesa no grupo é soberana. Um exemplo do poder chinês nos Brics e a guinada política que ela influenciou no bloco foi sua expansão.

Neste ano, a organização aceitou a entrada de mais cinco países ao bloco: Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã. Brasil e África do Sul eram contra a inclusão de mais nações ao grupo, mas não puderam impedir o desejo da China que busca aumentar sua influência e capitanear apoio político de mais países.

Ou seja, o foco econômico inicial começou a mudar para a política. Embora não seja um bloco formal e não tenha poder vinculante aos seus membros, China e Rússia – países mais influentes dentro dos Brics – têm apostado no grupo como uma ferramenta política para impulsionar sua influência econômica e global contra os Estados Unidos.

Apesar dos riscos apontados pelos analistas, o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem sido marcado pela aproximação com o eixo sino-russo. O petista compartilha com Xi Jinping e Vladimir Putin a crença por uma nova ordem mundial supostamente baseada em um mundo multipolar. Ao lado de China e Rússia, Lula defende o Sul Global e questiona a hegemonia norte-americana.

“Eu sonho que a gente tenha a nossa moeda para que possamos fazer negócio sem que tenhamos que ficar dependendo do dólar. Até porque só tem um país que tem a máquina de rodar dólar”, disse Lula em um discurso em 2023, ao defender comércio em moedas locais ou a adoção de uma moeda comum dos Brics para transações internacionais.

Nos últimos meses, Lula apostou ainda na aproximação política com as nações que formam os Brics, sobretudo China e Rússia. O petista, inclusive, deu declarações interpretadas como apoio a Vladimir Putin diante da guerra que a Rússia iniciou contra a Ucrânia. Apesar do Itamaraty ter condenado a invasão que Putin ordenou contra Kyiv, o mandatário brasileiro adotou uma postura crítica em relação ao presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky.

“Fico vendo o presidente da Ucrânia na televisão como se estivesse festejando, sendo aplaudido em pé por todos os parlamentos, sabe? Esse cara é tão responsável quanto o Putin. Porque numa guerra não tem apenas um culpado”, disse Lula em entrevista à revista Time em maio de 2023.

É essa conduta do petista que preocupa analistas sobre a possibilidade do Brasil acabar cedendo à pressão de China ou Rússia para aderir à possível aliança militar que tenha origem nos Brics. Embora não se tenha conhecimento de conversas oficiais sobre tal criação, Putin já deu indícios dessa possibilidade.

Aliança militar dos Brics parece estar no radar de Putin

Apesar da ausência de comunicados oficiais sobre a formação de uma aliança militar dos Brics, Vitélio Brustolin, doutor em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento e pesquisador da Universidade de Harvard, avalia que o governo russo tem dado indícios sobre o interesse desta iniciativa.

Em meio à escalada da guerra entre Rússia e Ucrânia e os interesses de política externa da China, que tem feito altos investimentos em sua aparato militar e em seu exército, Brustolin pontua que esse pode ser um dos próximos passos do grupo. Vale ressaltar ainda que os Brics já tem discussões neste sentido.

Os Brics possui um Grupo de Trabalho para discutir a colaboração no campo de segurança, especialmente em áreas como o combate ao terrorismo, cibersegurança e troca de informações. Nos últimos encontros do NSA (sigla para National Security Advisors, Conselheiros de Segurança Nacional dos Brics), os integrantes têm ressaltado a necessidade de cooperação e alinhamento na área da defesa.

Neste ano, a Rússia organizou a 14ª reunião desse tipo dentro do bloco. Quem presidiu o encontro foi o secretário do Conselho de Segurança russo, Sergey Shoigu. Putin, conforme informou a agência de notícias russa TASS, fez o encerramento do encontro e teve reuniões bilaterais com representantes dos países-membros do bloco.

Entre os tópicos da reunião, ainda de acordo com a agência estatal, houve discussões sobre o “atual parâmetro da futura ordem mundial, a superação da ordem baseada em regras imposta pelo Ocidente, o desenvolvimento da multipolaridade e a coordenação de ações em condições de confronto e imprevisibilidade nos assuntos mundiais”.

Quem representou o Brasil no encontro, que ocorreu entre os dias 10 e 16 de setembro, foi o assessor para assuntos especiais da Presidência, Celso Amorim, e sua delegação. Embora ocupe um posto como assessor, Amorim foi chanceler de Lula em seus primeiros mandatos e é apontado como o articulador da política externa do petista neste terceiro mandato.

Analistas veem aliança militar como “retórica” e problemas nos Brics

De acordo com analistas consultados pela Gazeta do Povo, as discussões para a criação de uma aliança desse tipo no Brics também podem ser uma tentativa da Rússia de aumentar seu prestígio por meio da retórica. “[Essas tratativas] me parecem ser uma tentativa de narrativa russa para mostrar que não está sozinha”, avalia o doutor em Ciência Política e professor de Relações Internacionais Gunther Rudzit, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

“É um governo autoritário que está no meio de uma guerra não só contra a Ucrânia, mas contra o Ocidente, e, portanto, tenta criar narrativas de que a Rússia não está isolada, que tem apoio, e que poderia vir a ter uma aliança militar. Isso faz parte dessas disputas de narrativas”, pontua Rudzit.

Enfrentando uma guerra contra a Ucrânia há mais de dois anos, Vladimir Putin tem se escorado nos Brics para aliviar seu isolamento causado pelo Ocidente. Desde que ordenou a invasão ao país vizinho, a Rússia se tornou o país mais sancionado do mundo e buscou fortalecer seu relacionamento com outros “inimigos” do Ocidente.

Enquanto Estados Unidos e países da União Europeia têm fornecido apoio militar e político à Ucrânia, a Rússia estreitou o relacionamento com países como Coreia do Norte, Irã, China e até mesmo o Brasil, que até antes do mandato atual de Lula adotava posição de neutralidade internacional.

Além da narrativa que Putin deseja passar, os analistas Gunther Rudzit e Vitelio Brustolin avaliam problemas estruturais na formação de uma eventual aliança militar patrocinada pelos Brics. “As pessoas veem China e Índia nos Brics e pensão que os dois países são aliados, mas não são”, avalia o professor da ESPM Gunther Rudzit.

O especialista em defesa nacional relembra ainda que as duas nações têm disputas fronteiriças que perduram há décadas e que Nova Deli não tem apreço pelas iniciativas chinesas. Além disso, Rudzit pontua que os interesses individuais de cada país podem se sobrepor à formação de uma aliança como essa, o que pode impedir que os membros dos Brics se comprometam a fazê-lo.

“Formar uma aliança militar significa que você concorda em morrer por esse outro país e gastar dinheiro nesse processo. Não acredito que esses governos e esses países estejam dispostos a isso. São governos que têm diferenças muito grandes entre eles para se tornarem aliados [a esse nível]”, analisa o especialista.

O docente explica que o que faz da Otan uma organização bem-sucedida é o fato de que “todos os países são democracias muito fortes e todos são capitalistas. É isso que faz eles [países membros da Otan] estarem dispostos a morrerem e gastarem muito dinheiro nesse processo para um defender o outro”, avalia Gunther.

Outro fator que, segundo o docente da ESPM, pode limitar a concretização dessa aliança militar é que os países-membros dos Brics já possuem acordos militares bilaterais. Esses acordos, na visão do especialista, tornam desnecessária a formação de uma aliança militar específica dentro do bloco. Gunther destaca, por exemplo, o comércio de drones entre Irã e Rússia, utilizados por Moscou na guerra contra a Ucrânia, além das colaborações comerciais entre Pequim e Moscou.

“Já é mais do que sabido no Ocidente que as empresas chinesas estão vendendo principalmente microchips para a Rússia, o que sustenta a produção militar russa. Por isso os governos americano e europeus estão começando a mirar nessas empresas chinesas com sanções”, salienta o professor.



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