Brasil precisa incentivar casa própria para construir futuro de classe média – 06/10/2024 – Álvaro Machado Dias
Quando eu era criança, tinha um amigo sabidamente rico, o que me parecia misterioso, já que ele usava roupinhas como as minhas e morava em um apartamento apertado só com a mãe. Mas um dia fui à casa da sua avó e entendi. “Old money”: direitos proprietários sobre centenas de metros quadrados do Jardim América, onde o que está construído importa menos do que o chão.
Igrejas evangélicas têm os CNPJs mais expansivos do Brasil porque não pagam imposto sobre o espaço que ocupam. Na comparação direta, o catolicismo aparece taciturno. Porém, a realidade profunda é que não está nem sequer perto de ser ameaçado pela concorrência. A razão é simples: trata-se do maior proprietário não governamental de terra do mundo, com 177 milhões de acres.
Enquanto as novas igrejas precisam coletar o dízimo ininterruptamente para se manterem relevantes, a igreja católica apostólica romana tem um país próprio, onde se formam filas imensas de turistas pagantes durante todos os dias do ano para pisar em partes do seu chão.
Todos os historiadores sérios concordam que o regime escravocrata possui papel central na desigualdade atual. Como, se já se passaram 136 anos? As razões são multifacetadas, mas um fator é central: os libertos não possuíam nem sequer um rancho para dele tirarem o sustento. A solução era seguir arando o chão alheio, o que em grande medida trouxe-nos até aqui.
No ano em que se proibia o tráfico negreiro (1850), dom Pedro 2º assinou a Lei de Terras, determinando que apenas quem tivesse direitos notarizados (registrados em cartório) seria legítimo proprietário. O que estava em jogo eram as chamadas terras devolutas ou “sem dono”, as quais hoje consideraríamos como do Estado.
A lei não foi compreendida e aplicada de uma só vez. Pelo contrário, ela foi pegando conforme os proprietários descobriam que podiam declarar ao tabelião extensões muito maiores do que as originalmente determinadas para as suas fazendas. Foi assim que surgiram alguns dos primeiros unicórnios brasileiros, empresas de crescimento rápido, típicas dos bilionários do Vale do Silício.
As terras devolutas evidentemente serviam à subsistência de um monte de gente alheia à novidade. A falta de notarização, como em um daqueles truques de mágica que podem ser feitos com uma caneta ordinária, criou uma legião de miseráveis do “progresso” fundiário.
O processo não foi tão distinto daquele que marcou o fim do período medieval, o cercamento das terras comunais, levando ao surgimento da força de trabalho característica da modernidade.
O fenômeno impulsionou o crescimento de muitos quilombos, que nos livros escolares se mantinham apenas pelo desejo de liberdade de bravos escravizados. Ledo engano. Muitos quilombos foram fomentados pela carência de direitos proprietários entre os libertos, dado que isso envolvia uma burocracia e um custo que lhes eram excedentes.
A conclusão é inequívoca: no Brasil do passado, como em outras partes, direitos proprietários determinavam quem você é. Pois a grande verdade é que no atual seguem fazendo o mesmo.
As últimas décadas foram palco de uma subida notável do IDH nacional, que foi de 0,61 em 1990 para 0,76 em 2024 (24% de elevação). Em contraste, a capacidade de ter um teto para chamar de seu, nas grandes metrópoles, só diminuiu. Um estudo de 2021 dá uma medida da situação: “Pagar casa em São Paulo leva até 78 anos para quem ganha a renda média da cidade”.
O artigo de hoje parte da premissa de que, para transformar este país de renda média em um país de classe média, é crucial que as pessoas possam adquirir suas casas.
Cortiços se desfazendo, como os que dão o tom em tantos condomínios oriundos do programa Minha Casa Minha Vida, conforme evidências que tenho em mãos, não resolvem o problema, dado que a classe média emerge da convivência e da exposição a oportunidades comuns.
A minha tese é que essa transformação poderia ser grandemente impulsionada por estratégias tributárias inteligentes, que reduziriam a dependência dos inconstantes empréstimos subsidiados, tornando a conversão à existência digna um movimento perene no país.
Os males do aluguel transcendem a compreensão da maioria dos analistas financeiros, que ficam falando em aplicações alternativas, o que é incompatível com a realidade psicológica da maioria. Aluguel é conta sagrada: a única. Ao contrário do que propagandeiam os bancos, não é verdade que dar um calote em um empréstimo ou em uma fatura de cartão de crédito necessariamente leve a consequências severas. A razão é que os bancos são racionais: se você não pagar, em algum momento surgirá uma proposta de acordo quase sem juros e as coisas irão se arrumar.
O problema com o aluguel é que o proprietário pensa com o CPF. Atrasos significam insegurança, a qual recomenda que se peça o imóvel de volta. Aliás, mesmo quando não há rusgas, o risco da não renovação do contrato impacta todo o planejamento da vida, incluindo a escola dos filhos e as relações sociais de segundo nível (os conhecidos).
O caráter sagrado dessa conta torna os inquilinos muito mais avessos a riscos do que os proprietários. Eles se sentem menos livres para empreender e mesmo para aceitar ofertas de trabalho potencialmente melhores, dadas as chances de não prosperarem.
Essa é uma das muitas razões para não termos o espírito “for business” dos americanos. Quero ver se eles o teriam se aquele não fosse um país orientado à generalização da casa própria, adequadamente documentada (aqui, 13,5% dos imóveis não possuem documentação comprobatória da propriedade).
A reforma tributária criou uma oportunidade singular para o debate sobre a transformação habitacional necessária para a consolidação da classe média, por mais que esse tema transcenda aquele. Enumero abaixo algumas ideias que talvez mereçam um pouco de atenção.
Tributação dos fundos imobiliários
Esses fundos são alguns dos mais rentáveis do país, o que é um reflexo direto das projeções de subida dos valores imobiliários nas metrópoles brasileiras. Não há investimento tão contrário ao interesse do inquilinato quanto esse.
O grupo de trabalho da reforma tributária apresentou um substituto que preconiza isenção de incidência de IBS e CBS (respectivamente, imposto e contribuição sobre bens e serviços) sobre o lucro dos fundos imobiliários. Aprovar isso seria um grave erro.
Tributação progressiva por número de imóveis possuídos
Para reduzir os custos dos imóveis, é necessário que haja desincentivo ao seu acúmulo. Para tanto, é fundamental a existência de um imposto progressivo sobre a propriedade imobiliária da pessoa física. Em contraste, o aumento da tributação do aluguel tende a prejudicar o elo fraco da cadeia.
Tributação maior na aquisição de terrenos e redução correspondente de impostos na construção
Quando tomei contato com o novo Plano Diretor de São Paulo, fiquei horrorizado com a proposta de construção de espigões no coração dos bairros ricos. Passada a reação egoísta, lembrei que aumenta a oferta de unidades habitacionais, o que é positivo.
São Paulo está muito mais para Nova York do que para Viena. O patrimônio arquitetônico em discussão é majoritariamente composto de mansões neoclássicas, predinhos de cinco andares e casas geminadas valorizadas em dezenas de vezes, não nos esqueçamos disso.
Só que a questão não se encerra aí. Atualmente, a rentabilidade dos edifícios para a classe A, com menos unidades, tende a ser superior à dos edifícios voltados à classe B. A solução é taxar mais o terreno e oferecer desconto correspondente na edificação, em função do número de unidades e vagas de garagem: quanto menos, melhor, em contraste com o que a prefeitura paulistana propôs.
Cobrança de tributo equivalente ao IPTU sobre terrenos urbanos
Terrenos baldios não pagam IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), mas ITU (Imposto Territorial Urbano), um imposto mais baixo. É isso que explica a existência de terrenos aparentemente abandonados em regiões nobres. Eles estão à espera do ponto transacional ótimo, enquanto milhões vivem de aluguel, uma distorção completa. Estendendo o raciocínio anterior, seria importante igualar os tributos da fase pré-construtiva (especulativa) aos das fases seguintes.
Tributação progressiva de imóveis desocupados, levando ao seu confisco descomplicado
Detroit, Barcelona e diversas outras cidades adotaram impostos adicionais sobre imóveis vazios e o confisco descomplicado (o que não ocorre por aqui hoje em dia) para democratizar a habitação e evitar a degradação urbana.
Em São Paulo, a medida serviria para impulsionar a revitalização do centro da cidade, que segue inóspito. Uma das principais razões são os 20,7% dos imóveis vazios na região, a maior taxa da cidade. A solução é um mecanismo que leve à venda ou ao confisco ágil de todos esses imóveis, seguido de leilões exclusivos para quem estiver comprando seu primeiro imóvel.
Isenção tributária na aquisição do primeiro imóvel
Muitas incorporadoras põem faixas nos stands com os dizeres: “Imóvel com taxa e registro zero”. Conforme entendimento já estabelecido, trata-se de propaganda enganosa. Quem adquire o primeiro imóvel não paga taxas cartorárias, mas paga ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis), exceto em imóveis muito baratos. Essa cobrança precisa ser abolida.
Regressividade do imposto sobre os ganhos de capital na venda de imóvel para quem não tem nenhum
A reforma tributária tem como mote a simplificação. Acontece que há situações em que essa não é a melhor abordagem. Considere a eventual volta do imposto sobre lucros e dividendos: os 15% incidentes tendem a influenciar a decisão do funcionário de não largar o emprego para empreender —dados os riscos inerentes e o fato de que o começo é sempre árduo—, o que é péssimo, ao passo que tendem a impactar pouco quem fatura muito, o que tampouco é ideal. A progressividade tende a funcionar melhor do ponto de vista societário.
Há um mito de que a progressividade injeta excessiva complexidade, o qual ignora que essas coisas são feitas por softwares. O mesmo raciocínio deveria ser aplicado à tributação do lucro de operações imobiliárias. No caso, seria oportuna a implementação de um redutor tributário na venda para quem está adquirindo seu primeiro imóvel e, moto contínuo, progressividade do desconto conforme os ganhos de capital se aproximem de zero, em vez de taxa fixa.
Incentivos tributários ao trabalho remoto
A regulamentação do teletrabalho pela lei 14.442/2022 foi guiada pela premissa de que essa modalidade é mais barata para as empresas, uma verdade que nem de longe encerra a questão. Faltou considerar que quando o sujeito está em casa não sofre e contribui para o trânsito, além de poder morar em outra municipalidade, o que converge à democratização da moradia.
Por isso, seria muito oportuno que houvesse incentivos tributários voltados ao teletrabalho. A falta de uma política do tipo tem levado os gestores a chamarem todo o mundo de volta ao presencial, já que sabidamente dá para arrancar mais o coro nessa modalidade, conforme os estudos mostram e o RH nega.
Finalmente, em uma sociedade ética, imóveis em que se explora o dízimo pagariam IPTU. Mas isso dificilmente irá acontecer. Seria justiça demais para a vida nesse plano.
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