Ser pró-palestino ou pró-israelense é uma coisa; aquela alegria macabra era outra – 07/10/2024 – João Pereira Coutinho
Amigos, romanos, compatriotas, emprestai-me os vossos ouvidos: o problema foram aqueles 20 dias. De que falo eu?
Do purgatório. Do compasso de espera entre o massacre cometido pelo Hamas, a 7 de outubro de 2023, e a invasão terrestre de Gaza pelo Exército israelense, a 27, com seu cortejo de horrores.
Naqueles 20 dias, depois do massacre e antes da invasão, havia vítimas. Milhares. Gente sequestrada, estuprada, morta. Judeus. Sionistas e não sionistas. Seres humanos, no fundo, que se divertiam num concerto.
E, naqueles 20 dias, houve festejos a Ocidente. Não era a primeira vez, eu sei: se a idade é um posto, eu ainda me lembro dos dias seguintes aos ataques terroristas do 11 de Setembro de 2001. Das expressões de júbilo que, aqui e ali, aplaudiam Osama bin Laden.
Mas eram vozes raras. Não havia multidões nas ruas de Londres, Paris ou Berlim com cartazes do gênero “I love Al Qaeda” ou “Do Atlântico ao Pacífico, a América será livre”.
Em duas décadas, tudo mudou. Com os cadáveres ainda quentes e antes mesmo de Israel entrar em Gaza, o Ocidente “letrado” falhou o mais importante teste moral desde o Holocausto. Como explicar isso?
O jornalista Brendan O’Neill, em “After the Pogrom: 7 October, Israel and the Crisis of Civilisation”, dá uma ajuda. É a melhor tentativa de explicação que encontrei até o momento, até porque O’Neill parte da mesma perplexidade.
Nas semanas seguintes ao 7 de Outubro, os crimes antissemitas subiram 1.350% em Londres quando comparados a 2022. Nos Estados Unidos, 400%. Na Alemanha, 240%. Na França, 100%.
Perante crimes cometidos contra judeus em Israel, o instinto de muitos foi cometer mais crimes contra judeus espalhados pelo mundo.
Uma explicação possível seria dizer que a alegria e a brutalidade daqueles 20 dias é consequência do conflito israelense-palestino: quem defende um Estado palestino e culpa Israel pela ocupação de território árabe, só pode festejar o massacre de crianças, mulheres ou velhos israelenses.
É uma explicação demencial e insultuosa para quem acredita na solução dos dois Estados e condena a política de assentamentos. Ser pró-palestino ou pró-israelense é uma coisa; mas aquela alegria macabra era outra.
É uma alegria ideológica, afirma Brendan O’Neill, e afirma bem. Depois da queda da União Soviética e do descrédito intelectual do marxismo, o “fim da história” jogou muitos progressistas, ou pseudoprogressistas, no limbo da irrelevância.
Quando o 11 de Setembro aconteceu, os festejos foram modestos porque não havia ainda um roteiro que os enquadrasse na luta anti-imperialista. Faltava, digamos assim, repertório.
Para O’Neill, o roteiro surgiu com a radicalização das “políticas de identidade” que se espalharam nos 20 anos seguintes e que começaram a atribuir valor moral a certos grupos de acordo com a cor da pele, o pretenso privilégio e o lugar que ocupam na hierarquia racial.
Nesse admirável mundo novo, o judeu deixou de ocupar o lugar de vítima, mesmo tendo o Holocausto no currículo. Aliás, o Holocausto passou a ser questionado, ou enfraquecido, porque na grande competição vitimária não era possível que os judeus levassem a copa.
No fim das contas, os judeus são brancos, colonialistas, capitalistas. Não podem ser vítimas se o “racismo do bem” os apresenta como opressores.
As consequências dessa “retaliação retrospectiva”, como lhe chamou o escritor Howard Jacobson, foi termos 40% dos estudantes americanos, entre os 18 e os 29 anos, a considerarem o Holocausto uma mentira (e 30% que não sabem se realmente aconteceu).
Devem ser os mesmos estudantes que, nos campi universitários, aproveitaram os 20 dias de “intermezzo” para prepararem os seus cartazes de apoio ao Hamas e ao Hezbollah.
Qualquer pessoa que conheça os dois grupos sabe o que eles têm a dizer sobre minorias sexuais ou direitos das mulheres, dois temas caros a qualquer progressista ou mente civilizada.
Mas, aos olhos desses inocentes, o Hamas e o Hezbollah fazem, na prática, o que muitos dos seus professores defendem, em teoria: “descolonizar”.
Parece piada. Mas, nos dias imediatamente seguintes ao massacre de 7 de Outubro, Brendan O’Neill lembra os vetustos acadêmicos que defenderam isso mesmo: “descolonizar” não serve apenas para escrever ensaios, derrubar estátuas, substituir Jane Austen por Alice Walker, afirmavam eles.
Pelo visto, também serve para sequestrar, estuprar e matar civis indiscriminadamente.
O filósofo Jürgen Habermas, citado por O’Neill, escreveu um dia que grande parte do pensamento político contemporâneo é apenas “contrailuminismo vestido de pós-iluminismo”.
Ou, simplificando, trevas e relativismo. Aqueles 20 dias são o melhor retrato dessa combinação triunfal.
Bem-vindos ao século 21.
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