A teoria da trapaça – 11/10/2024 – Demétrio Magnoli
“Golpe! –as urnas eletrônicas viciadas fraudaram a vontade do povo e elegeram Lula.” A tese de Bolsonaro, uma cópia adaptada da narrativa de Trump sobre fraude eleitoral, é factualmente falsa e politicamente golpista –mas, ao menos, não atribui aos eleitores uma crônica incapacidade de distinguir seus interesses. Já a esquerda envereda por essa via quando formula sua tese para o fracasso nas eleições municipais.
“Perdemos por culpa das emendas parlamentares, que distorcem o sistema político e elegem a direita.” Na sua versão de esquerda, a teoria da trapaça ilumina uma curva real, que é a captura do orçamento público pela maioria parlamentar, mas oculta o fenômeno estrutural. A ascensão da direita nas eleições municipais começou em 2016, bem antes da inflação das emendas parlamentares, e prossegue mesmo sob um governo federal de esquerda. É álibi destinado a salgar o solo no qual germinaria um debate honesto sobre os rumos políticos dos chamados progressistas.
O “centrão” não é mais o que foi, como registraram alguns raros analistas lúcidos. Segue oportunista e fisiológico, como sempre, mas tornou-se cada vez mais ideológico, encampando discursos extremistas fabricados no campo do bolsonarismo. Seu triunfo representa, de fato, uma vitória da direita reacionária. A derrota da esquerda não deveria ser interpretada como evento anômalo, mas como sinal de um descompasso de fundo entre as narrativas “progressistas” e as expectativas do eleitorado.
O povo não sabe votar? A inclinação da esquerda a atribuir seus fracassos à ignorância popular tem longa história. Quantas vezes o PT invocou o espectro de uma “classe média fascista” para justificar insucessos eleitorais em São Paulo? Contudo, como trocar de povo é uma óbvia impossibilidade, os “progressistas” precisariam enfrentar a dolorosa tarefa de trocar suas interpretações.
A política econômica dos dois mandatos iniciais de Lula não pode ser replicada na atual conjuntura internacional. O Brasil mudou. A pobreza extrema recuou. As políticas sociais lulistas, baseadas em transferências diretas de renda, não correspondem aos anseios da nova e heterogênea classe média. A esquerda oferece respostas do passado para os desafios do presente. O descompasso abre caminho à religião laica do “empreendedorismo”, réplica reacionária ao Estado paternal da esquerda.
Os “progressistas” –e não apenas os ligados à esquerda– importaram as políticas identitárias oriundas dos EUA. Substituíram os conceitos de povo e de classe por cortejos de “minorias”, especialmente raciais, renunciando à promoção de políticas públicas universais. Nesse passo, facilitaram os discursos identitários reacionários, que apelam à unidade (patriótica ou religiosa). A guerra ideológica resultante é um fator fundamental na marcha eleitoral rumo à direita. A falência do racialismo ganhou mais um número: 83% dos prefeitos negros eleitos pertencem a partidos de centro ou direita.
A teoria da trapaça, mais que mero equívoco intelectual, serve como ferramenta utilizada por lideranças engajadas na missão de autopreservação. Trata-se de encobrir seu fiasco, evitando uma dura revisão política. A autoilusão dos “progressistas” é uma oferenda involuntária à direita reacionária.
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