Han Kang é a primeira sul-coreana a receber o Nobel de Literatura : Revista Pesquisa Fapesp
Nascida em 1970 na cidade de Gwangju, a escritora e poeta Han Kang é a primeira sul-coreana a vencer o Nobel de Literatura. Temas como traumas históricos e a fragilidade da vida compõem o imaginário literário da autora, amplamente reconhecida em seu país natal, tendo recebido inúmeros prêmios. Durante o anúncio da premiação, a Academia Sueca destacou a singularidade de Kang ao tratar de conexões entre corpo e alma, assim como a sua capacidade de inovar a prosa contemporânea.
Aos 9 anos, Kang mudou-se para Seul, onde reside até hoje. Proveniente de uma família ligada ao meio literário e filha do escritor Han Seung-won, a autora publicou seus primeiros poemas em uma revista literária em 1993. Dois anos mais tarde, estreou na prosa com uma coletânea de contos.
Sua obra mais conhecida é A vegetariana (2007), que em 2009 ganhou adaptação cinematográfica dirigida por Lim Woo-seong. Em 2016, venceu o Man Booker International Prize, no Reino Unido. “Antes disso, ela já era uma escritora consolidada há pelo menos duas décadas na Coreia do Sul, com obra traduzida em mais de 30 idiomas”, comenta Ji Yun Kim, professora doutora do curso de língua e literatura coreana da Universidade de São Paulo (USP).
No livro, Kang aborda o isolamento e a resistência à normatividade por meio da história de Yeong-hye, uma mulher que deixa de comer carne após ter uma série de pesadelos. O crítico Antonio Barros de Brito Junior, doutor em teoria literária e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que o romance é dividido em três partes, sendo que cada uma delas é narrada por um personagem diferente: o marido, o cunhado e a irmã da protagonista. “As três vozes constroem uma trama interligada, enquanto Yeong-hye nunca fala. Sua vida é sempre narrada pelos outros”, comenta Brito Junior. Segundo o pesquisador, a ausência de voz própria sinaliza como a personagem é percebida de maneira fragmentada e equivocada pelas pessoas que a rodeiam, reforçando seu estado de isolamento.
Outro aspecto destacado por Brito Junior é o desejo de Yeong-hye se transformar em planta. Porém a mutação não envolve uma mudança física literal, como ocorre, por exemplo, em A metamorfose, de Franz Kafka (1883-1924), no qual o protagonista se converte em um inseto. “Em A vegetariana, a personagem mantém seu corpo humano, mas passa a incorporar características de um vegetal, começando pela mudança de dieta. Depois, ela perde peso e adquire uma rigidez corporal que a deixa em estado de inércia completo, como se estivesse realmente se tornando uma planta”, descreve Brito Junior. Para ele, esse processo pode ser interpretado como uma recusa simbólica às normas sociais, especialmente em uma sociedade como a sul-coreana, onde as expectativas de subjugação e obediência pesam mais sobre as mulheres.
No Brasil, a primeira tradução da obra direto do coreano saiu em 2013, pela editora Devir, e foi assinada por Yun Jung Im Park, professora de língua e literatura coreana da USP. Em 2018, a Todavia lançou uma nova edição, a cargo do tradutor Jae Hyung Woo. Durante a pandemia de Covid-19, a autora participou de forma virtual da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2021. Naquele ano, a Todavia publicou Atos humanos (2014). Nele, Kang trata do massacre de Gwangju, perpetrado em 1980 pelo Exército sul-coreano. Na ocasião, um levante estudantil foi duramente reprimido, resultando em milhares de mortes. A narrativa se desenrola por meio de uma sequência de capítulos interligados, que retratam a dor dos sobreviventes e a busca de um adolescente por seu amigo desaparecido. “O livro narra um episódio marcante e traumático na história recente do país, fazendo uso da linguagem de forma muito sensível”, comenta Kim, da USP, responsável pela tradução da obra no Brasil.
Já em O livro branco (2016), publicado no país em 2023 também pela Todavia, Kang investiga o luto e a memória por meio de reflexões sobre a perda de uma irmã que nunca conheceu. Cada capítulo é nomeado a partir de objetos brancos, como a neve e o leite, compondo um léxico poético que remete ao sofrimento e à introspecção.
Em 2025, a editora Todavia deve publicar um novo livro da autora, cujo título provisório é Não se despede, informa Kim. A história é sobre uma jovem que recebe de uma amiga hospitalizada a incumbência de socorrer seu pássaro de estimação. Ao chegar à casa, descobre arquivos sobre um dos maiores massacres ocorridos na Coreia, quando cerca de 30 mil civis foram assassinados no final da década de 1940. “A obra aborda outro evento histórico de violência e repressão, porém de maneira ainda mais poética e abstrata do que em Atos humanos, que é mais realista”, detalha Kim. Em seu doutorado, concluído na USP em 2023, a pesquisadora realizou a tradução do livro Aula de grego (2011). O romance trata da relação entre um professor de grego, que está perdendo a visão, e uma aluna, que está perdendo a voz. A obra foi lançada neste ano pela editora de Portugal Dom Quixote, em uma tradução ao português feita a partir de versões em inglês do livro. “Estou tentando publicar a minha tradução no Brasil, feita diretamente do coreano”, diz Kim.
Segundo a pesquisadora, um dos principais desafios para disseminar a literatura sul-coreana no país é a escassez de tradutores qualificados. O primeiro bacharelado em língua e literatura coreana do país foi criado em 2013, na USP, o que reflete a recente inserção desses autores no cenário acadêmico brasileiro. “Estamos formando alunos há menos de uma década, mas a procura é grande. O curso de língua e literatura coreana conta com muitos estudantes na graduação, embora ainda tenha poucos pós-graduandos”, explica.
Além de Han Kang, Kim menciona Bae Su-ah como outra autora de relevância no cenário literário sul-coreano. “Ela também já era uma figura proeminente na Coreia do Sul antes de obter sucesso internacional, com dois romances traduzidos para o português”, afirma. Além disso, Kim comenta que há uma nova geração de escritores mais jovens que começam a chamar a atenção de leitores brasileiros, impulsionados pela popularização do K-pop, gênero musical oriundo daquele país.
“Kang é uma autora relativamente jovem para vencer o Nobel, com apenas 53 anos. São poucos os laureados com idade tão baixa”, comenta Brito Junior, da UFRGS. Segundo ele, embora ainda seja pouco conhecida no Brasil, a escritora possui uma produção literária robusta: são oito romances, além de poemas e narrativas curtas. “Sua obra já tem maturidade suficiente para justificar o reconhecimento”, avalia.
Para Brito Junior, o Nobel vai ajudar a revelar uma faceta da Coreia do Sul que vai além de manifestações culturais populares, que dominam o imaginário ocidental sobre o país. “A Coreia do Sul procura se afirmar como um polo de produção artística global, utilizando o K-pop e outras formas de entretenimento como estratégias de soft power [recurso para conseguir prestígio e poder sem recorrer ao uso da força]”, observa. “A literatura de Kang mostra uma perspectiva diferente daquela cultura, ao dar voz a personagens que buscam compreender um passado de violência e repressão, revisitando feridas ainda não cicatrizadas.”
Na avaliação de Vitória Ferreira Doretto, doutoranda em Estudos de Literatura na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a geração de escritores na qual Kang se insere trabalha com o cruzamento de linguagens artísticas e midiáticas, além da influência da literatura ocidental. Doretto pesquisa a circulação de literatura coreana no Brasil e é integrante da Coordenadoria de Estudos da Ásia da Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe). Com o Nobel, Kang entra para um grupo seleto de autores asiáticos laureados pelo prêmio, sendo a nona contemplada do continente. “Certamente, o reconhecimento ampliará o interesse não só por suas obras, mas pela literatura sul-coreana e asiática em geral”, finaliza.
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