A luta de Letícia Mello, que teve corpo deformado por médico

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Após quase morrer ao fazer uma cirurgia, Letícia Mello precisou repensar a sua vida e, agora, quer se tornar inspiração para outras mulheres que sofreram violências

“Posso dizer que ganhei uma segunda vida”. Esse é o relato da mãe, empreendedora e neuropsicopedagoga Letícia Mello, que precisou renascer aos 41 anos após uma cirurgia plástica malsucedida neste ano em Florianópolis. Depois de quase morrer por conta dos efeitos adversos da intervenção, ela agora quer inspirar outras mulheres a terem mais autoestima e autoconfiança.

O corpo 'deformado' de Letícia Mello, que antes a deixava envergonhada, tornou-se motivo de orgulho - Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

O corpo ‘deformado’ de Letícia Mello, que antes a deixava envergonhada, tornou-se motivo de orgulho – Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

Agora, ela quer inspirar outras mulheres a terem maior autoestima e autoconfiança - Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

Agora, ela quer inspirar outras mulheres a terem maior autoestima e autoconfiança – Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

Letícia Mello teve seios, barriga, costas, glúteos e pernas deformados após uma cirurgia estética. “Evito dizer que estou ‘deformada’, não gosto de ser definida assim. Mas essa é a realidade”, conta.

Ela procurou o médico Marcelo Evandro dos Santos para remover uma prótese mamária após sentir incômodos. Ele ofereceu outras intervenções, prometendo “arrumar” outras partes do corpo em um procedimento chamado de “X-Tudo”. No fim, Letícia Mello perdeu 10 kg e teve grande parte da sua pele queimada.

Ela denunciou Marcelo Evandro, que foi indiciado por lesão corporal gravíssima. O Ministério Público abriu uma denúncia contra o cirurgião. Ele nega todas as acusações.

Enquanto documentos, relatos, denúncias e recursos tramitam na Justiça, Letícia Mello segue com seu trabalho na clínica ao mesmo tempo em que trabalha seu amor-próprio. Depois do susto, ela planeja expandir o seu trabalho, trilhar novos rumos para a sua vida e inspirar outras mulheres a se aceitarem e se amarem.

Depois de dar a volta por cima, Letícia Mello quer ajudar e inspirar outra mulheres a também terem uma oportunidade de renascer - Foto: Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/NDDepois de dar a volta por cima, Letícia Mello quer ajudar e inspirar outra mulheres a também terem uma oportunidade de renascer – Foto: Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

Ao ND Mais, Letícia Mello contou sobre a sua história, a sua experiência de quase morte, as lições que aprendeu e os grandes planos que ela tem para o futuro.

Relato de Letícia Mello

“Eu sou Letícia Mello. Tenho 41 anos e sou casada há 19 com o Luiz. Juntos, temos duas lindas crianças: a Gabriela, de 18, e o Jorge, de 12.

Sou formada em neuropsicopedagogia e fundadora da Clínica Transformar. Lá, oferecemos serviços de psicologia, fonoaudiologia e terapia ocupacional para crianças autistas, além de cursos de formação e capacitação para estudantes e profissionais que desejam trabalhar com atendimento a pessoas com autismo.

Tudo corria normalmente na minha vida até o dia da cirurgia que deixou meu corpo queimado. Mas, antes de falar sobre o que aconteceu e como isso me afetou, preciso falar sobre mim.

Rainha do Carnaval

Minha família tem uma forte ligação com o carnaval. Sempre gostei de samba e de desfilar nas festas. Sou filha de Mana de Xangô e de Breno Mello. Minha mãe é orientadora espiritual. Meu pai foi jogador de futebol e ator. Ele jogou no Santos Futebol Clube junto com Pelé nos anos 50 e foi estrela do filme “Orfeu do Carnaval”, que venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1960.

Com o sangue artístico correndo em minhas veias, desfilei pela escola de samba Consulado em 2014. Naquele ano, fui a Rainha do Carnaval de Florianópolis.

Foi um momento muito especial na minha vida. Eu sempre quis ser rainha, mas não esperava que fosse ganhar, até porque nunca tive um corpo ‘violão’, como é de se esperar.

'Ser Rainha do Carnaval de Florianópolis foi um momento muito especial na minha vida' - Foto: Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND‘Ser Rainha do Carnaval de Florianópolis foi um momento muito especial na minha vida’ – Foto: Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

Voltei a desfilar em 2015 e 2016. Em 2017, tive que dar uma pausa no carnaval para me dedicar à Clínica Transformar e trabalhar com o que amo: cuidar e orientar crianças com autismo.

Trabalhos com autismo

Para juntar dinheiro e abrir a clínica, precisei vender minha moto. Ela tinha até nome: era a Meg. Deu muita pena de vendê-la, mas foi necessário.

Mesmo sendo filha de artista, não nasci em berço de ouro. Sempre tive o sonho de trabalhar com crianças, mas precisei, antes, trabalhar para me sustentar. Trabalhei vendendo água na rua, tive barraquinha de pizza e fui atendente no McDonald’s. Quando já tinha quase 30 anos, consegui começar uma faculdade de pedagogia.

Em 2017, finalmente, veio a oportunidade de abrir minha própria clínica. A Transformar foi criada com o objetivo que carrega em seu nome: transformar vidas de crianças autistas através do conhecimento que adquiri estudando e trabalhando.

'Sempre busquei o propósito de transformar vidas de crianças autistas através dos meus conhecimentos' - Foto: Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND‘Sempre busquei o propósito de transformar vidas de crianças autistas através dos meus conhecimentos’ – Foto: Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

Curiosamente, depois de alguns anos trabalhando na clínica, descobri que meu filho Jorge é autista. Ele foi diagnosticado quando tinha dez anos. O Jorge tem autismo nível 1, que geralmente é o mais difícil de detectar.

No dia 10 de fevereiro de 2024, veio a oportunidade de voltar a desfilar no Carnaval de Florianópolis. Desta vez, o desfile foi pela Dascuia, cujo enredo foi justamente sobre o autismo.

A festa teve um toque ainda mais especial: Jorge também desfilou ao meu lado. Foi incrível. Eu consegui levar todo o meu amor para a avenida!

O susto e a vontade de desistir

No dia 29 de fevereiro de 2024, tudo mudou na minha vida. Eu sentia um incômodo na prótese mamária quando me deitava de bruços. Tive até medo de que pudesse ser um câncer. Mas depois de alguns exames, descobri que uma parte da minha prótese estava ‘mordida’ e precisava ser removida. Resolvi, então, procurar um cirurgião para ajeitar a situação.

Conheci o médico Marcelo Evandro pelas redes sociais e me encantei pelo que ele apresentava em seu perfil. Entrei em contato e ele foi super atencioso no atendimento. Decidi que seria com ele que eu faria a cirurgia. Paguei R$ 85 mil, o que é um valor alto, mas o profissional me passava confiança.

O problema veio depois do procedimento. Fiquei com 10 kg a menos e minha pele queimou. E o seio, que eu queria ajeitar no início, acabei perdendo.

A perda do seio, em especial, afetou minha autoestima de maneira profunda. Eu não me via, não me reconhecia enquanto mulher. Eu tinha a intenção de ter um terceiro filho e o seio é onde a gente amamenta, é algo simbólico. Sentia que meu corpo estava com defeito.

O tempo de recuperação pós-operatório era de 15 a 30 dias. Mas, nesse período, meu corpo começou a apresentar os efeitos adversos até o ponto que precisei ser hospitalizada com dores intensas e até mesmo dificuldade para respirar. Tive que respirar com a ajuda de aparelhos.

'Quando estava hospitalizada, pensava que iria morrer' - Foto: Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND‘Quando estava hospitalizada, pensava que iria morrer’ – Foto: Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

O coma passou e eu sobrevivi. Mas após sair do hospital, o desafio foi me aceitar. Abraçar essa nova pessoa que eu comecei a ver no espelho. Foi um processo duro e eu desenvolvi sintomas de depressão.

Quando eu estava hospitalizada, pensei em vários momentos que iria morrer. Mesmo estando viva, depois que saí e vi o que tinha acontecido comigo, a minha vontade de viver tinha ido embora.

Por seis meses, remoí o sentimento de autonegação. Mas foi exatamente no sexto ‘mesversário’ da cirurgia que vivenciei o ponto de virada. No dia 29 de agosto, eu tive uma crise muito grande enquanto pensava no que aconteceu comigo. Eu não tive vontade de levantar da cama, chorei muito.

Conversei com a minha terapeuta e essa conversa mudou minha perspectiva da situação. Ela questionou o porquê de todo dia 29 eu ter uma crise. Era como se eu tivesse meio que cultuando aquela data. Ela me ajudou a entender que eu sou uma sobrevivente, e não uma pobre coitada. Levantei da cama e refleti muito. Decidi, então, que não iria mais abaixar a minha cabeça e iria dar algum jeito de reverter a situação ao meu favor.

Renascer e se ressignificar

Eu sempre me dediquei muito ao meu trabalho. Achava que a minha vida seria inteiramente dedicada a cuidar da clínica e tocar meus negócios. Desde que abri a Transformar, eu pensava que, sem mim, as coisas não funcionariam.

Mas, quando estava hospitalizada, eu não pensava em nada disso. Meu marido estava cuidando dos negócios. A única coisa que eu queria era um abraço do Luiz, da Gabriela, do Jorge, da dona Mana de Xangô.

'Quando estava hospitalizada, eu só pensava na minha família' - Foto: Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND‘Quando estava hospitalizada, eu só pensava na minha família’ – Foto: Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

Não conseguia entender o porquê de aquilo estar acontecendo justo comigo. Logo eu, que fui Rainha do Carnaval, que sempre fui vaidosa e cuidei do meu corpo, estava tão frágil naquele momento. Me sentia uma fraude.

Com o tempo, comecei a entender que eu não sou uma fraude. Se aquilo aconteceu comigo, era porque tinha que acontecer. O que eu precisava fazer era levantar a cabeça e me enxergar como uma nova mulher.

Não é uma pele queimada, a falta de um seio ou um corpo “defeituoso” que me faz menos mulher. Pelo contrário: isso agora faz parte de mim. É parte do que eu sou. Para renascer, tive que me ressignificar.

Fui vítima de erro médico, sim. Mas isso, de maneira alguma, significa que eu sou um erro. Agora entendo que eu sou muito mais do que uma empreendedora, mais do que uma passista, mais do que alguém que trabalha com autismo. Eu sou uma sobrevivente, eu fugi das estatísticas. Por um milagre, eu não sou uma foto na camiseta de uma família triste.

'Eu sou uma sobrevivente' - Foto: Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND‘Eu sou uma sobrevivente’ – Foto: Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

Instituto Letícia Mello

29 de fevereiro foi o dia da cirurgia. Todo dia 29 eu tinha uma crise. Mas essa data também precisa ser ressignificada para mim.

Por isso, 29 de outubro será o dia que abrirei o Instituto Letícia Mello. A ideia é dar apoio e ajudar outras mulheres que também foram vítimas de violências. Todas têm o direito de se reerguer e reestabelecer a autoestima, a autoconfiança e o autocuidado.

Com o Instituto Letícia Mello, pretendo trabalhar temas como espiritualidade, saúde, família e trabalho. E tem que ser assim, nessa ordem. Se não estamos bem de espírito, não cuidamos da saúde. Sem saúde, não podemos dedicar o nosso melhor à família e nem evoluir no trabalho.

'Já tenho um livro publicado sobre como ajudar a identificar e a transformar as vidas de de crianças com autismo' - Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

‘Já tenho um livro publicado sobre como ajudar a identificar e a transformar as vidas de de crianças com autismo’ – Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

'No futuro, quero também escrever outro sobre a minha volta por cima' - Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

‘No futuro, quero também escrever outro sobre a minha volta por cima’ – Letícia Mello/Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

Já tenho um livro publicado sobre a temática de autismo. No futuro, quero também escrever outro sobre a minha história e sobre a minha volta por cima.

Eu renasci. Mas, mais importante que isso, aprendi que o que me define sou eu mesma. Sou muito mais do que uma barriga queimada. Hoje, afirmo com clareza: sou linda, sou corajosa, sou guerreira. Eu sou Letícia Mello.”



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