Como Adriana Calcanhotto expande a literatura infantil – 26/10/2024 – Era Outra Vez
Faz 20 anos que Adriana Calcanhotto abriu as portas da literatura infantojuvenil, entrou nesse mundo, bagunçou o que encontrou lá dentro e nunca mais saiu. Tudo sem escrever um livro sequer para esse público.
Após três álbuns de seu heterônimo Adriana Partimpim, nos quais cantou nomes como Augusto de Campos, Bob Dylan, Chico Buarque, Ferreira Gullar, Arnaldo Antunes, entre outros, e depois do já clássico “Antologia Ilustrada da Poesia Brasileira”, Calcanhotto agora volta aos discos e livros para essa faixa etária —e, mais uma vez, arma um fuzuê nas fronteiras do que entendemos por literatura infantojuvenil.
É claro que o mais midiático dos lançamentos é “O Quarto”, disco de Partimpim disponibilizado há poucas semanas. O título não indica apenas que estamos diante do quarto álbum infantil da artista. Nele, tudo gira em torno da ideia de quarto de dormir, espaço íntimo onde crianças, brinquedos, imaginação, bagunça e liberdade se misturam e escapam da lógica dos adultos.
No quarto de Partimpim está, por exemplo, o poeta nonsense alemão Christian Morgenstern, que sai do século 19 e chega aos ouvidos das crianças brasileiras de hoje com a ajuda do poeta Augusto de Campos e de seu filho, Cid Campos, que assinam a divertida faixa “Os Funis”. “Dois funis andam pelo escuro/ Através do seu fino furo/ Flui o leite da lua”, diz o começo do poema-música.
Aliás, o nonsense e o absurdo arrancam risadas também em “Boitatá” e “O Bode e a Cabra”. Na primeira faixa, parceria de Arnaldo Antunes, Marisa Monte e seu filho Mano Wladimir, a criatura mágica da literatura oral indígena aterroriza uma mãe. Mas o contrário também é verdade —e ficamos sabendo que a cobra de fogo morre de medo da mulher.
Já a segunda canção é uma versão “I Want to Hold Your Hand”, dos Beatles, só que transformada em forró, com letra amalucada feita por Renato Barros. Os versos surreais, entre eles “O bode saiu com a cabra/ Foram andar a pé/ O bode pisou na cabra/ A cabra gritou mé”, já tinham sido cantados antes por Rita Lee. Morta em maio do ano passado, a rainha do rock também aparece no disco com outra composição, “Atlântida”, feita com Roberto de Carvalho.
Sempre no equilíbrio fino e na mistura incerta entre música e literatura, “O Quarto” fica completo com mais quatro faixas: “O Meu Quarto”, “Malala”, “Estrela, Estrela” e “Tô Bem”, da banda Jovem Dionísio, que se torna um dos pontos fortes do disco ao apresentar letra que torce a norma culta da língua portuguesa a partir de um gingado que abrasileira a sintaxe e a gramática.
Paralelamente ao álbum, Calcanhotto assina outro lançamento para o público infantojuvenil —o livro “-Foi! Não Foi!”, do poeta Duda Machado, no qual ela assume o posto de ilustradora. Lançada pela Bazar do Tempo, que anda engrossando o seu catálogo infantojuvenil, a obra usa como título um verso do famoso poema “Os Sapos”, de Manuel Bandeira.
Machado, que acabou de ter a sua poesia reunida na antologia “Poesia [1969-2021]”, costura em “-Foi! Não Foi!” 20 poemas para crianças, praticamente todos com temática animal. E logo de cara o autor baiano já dá o seu cartão de visitas: “O cágado ouviu, ficou zangado./ E respondeu bem rápido: ‘Otário!'”, escreve no primeiro texto, mandando para a cucuia o dogma de não usar esse tipo de palavra em livros para crianças.
A partir daí, pululam pelas páginas macacos goleiros, caracóis com rastros de gosma, pinguins com questões existenciais, esquilos dentro de geladeiras e toda uma fauna improvável e surreal. Ao usar o verso de Bandeira como título, Machado parece dizer que tudo é e não é, foi e não foi, será e não será —depende sempre do ponto de vista.
Mas é possível ir um pouco além. Não é à toa que o poema escolhido foi “Os Sapos”. Nele, Bandeira tira sarro dos parnasianos, grupo cheio de regras poéticas, métricas engessadas e rimas definidas. A proposta do modernismo, grupo ao qual Bandeira se associou, era quebrar essas estruturas. Tanto que o “Os Sapos” chegou a ser declamado por Ronald de Carvalho na Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, quando foi vaiado pelo público no Theatro Municipal.
Em “-Foi! Não Foi!”, Machado opta por poemas de métrica fixa, com estrofes geralmente compostas por quatro versos e rimas exatas e certinhas. Olhando com atenção, é como se o poeta seguisse pela avenida aberta por Bandeira em “Os Sapos”, se apossasse da ironia, dialogasse com o escritor pernambucano e mostrasse que a liberdade, o nonsense, o absurdo, a ruptura e a rebeldia também pudessem aparecer dentro das formas fixas. Nos poemas, a implosão das fronteiras cabe perfeitamente dentro das fronteiras.
Adriana Calcanhotto capta a mensagem e cria para cada texto uma ilustração que brinca com o nonsense, mas que não concorre narrativamente com os versos —afinal, nos trabalhos da cantora e compositora, é sempre a poesia que brilha e é protagonista.
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