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6 May 2025, Tue

Trivialidades sobre conversas triviais – 26/10/2024 – Ricardo Araújo Pereira

Era um grupo de pessoas que tinham acabado de se conhecer. A conversa de ocasião sobre ocorrências banais chegou a um daqueles embaraçosos becos sem saída e fez-se um silêncio.

Um corajoso avançou, determinado como um bombeiro quando entra num prédio em chamas, e disse: “Estava há dias a ler uma notícia sobre um casal que foi apanhado na Etiópia.” “Apanhado a fazer o quê?”, perguntei. “Não sei, não acabei de ler a notícia.” Simpatizei com o homem.

Uma vez, no funeral do meu tio Álvaro, o caixão ficou inclinado. O coveiro tinha escavado um buraco exatamente do tamanho do caixão, e nem um centímetro a mais. Por isso, o tio Álvaro estava na diagonal.

Tendo em conta que o que desejamos aos falecidos é que descansem em paz, e que não se afigura fácil descansar em paz na diagonal, era evidente que era preciso fazer alguma coisa. Foi então que o primo Cláudio, voluntarioso, saltou em cima do caixão, para tentar que, com o peso do seu corpo, ele se afundasse na cova e ficasse direito.

Acontece muitas vezes a solenidade da morte conviver com os aspectos mais comezinhos da vida. Acaba por ser uma pequena vitória: a morte, majestosa e grave, poderosa e invencível, sucumbir a um ínfimo problema prático.

O buraco era pequeno demais. O primo Cláudio saltou em cima do tio Álvaro para tentar conformar a realidade, que estava a desrespeitar a cerimônia, à dignidade que o momento exigia.

Mas a vida, a vida real, permaneceu indiferente. Os saltos do primo Cláudio, que pertenciam ao domínio da vida real —oh, se pertenciam—, em vez de resolverem o problema, agravaram-no.

O desconhecido que resolveu quebrar o silêncio com a história do casal que foi apanhado na Etiópia pertence à mesma estirpe de valentes. Tal como o meu primo Cláudio, ele tentou evitar um embaraço. Lançou-se para o centro da conversa como o meu primo Cláudio se lançou para cima do caixão do tio Álvaro.

Ambos acabaram piorando o problema que queriam resolver. Todos os anos o Presidente da República devia organizar uma cerimónia de condecoração destes heróis. Há medalhas muito menos merecidas.


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