como se organizam as facções na Grande Florianópolis
Apuração do ND Mais mostra como funcionam as organizações que disputam territórios na Grande Florianópolis e são combatidas pelas forças de segurança
Cada vez mais comuns nas grandes capitais e com atuações estratégicas em municípios menores, as facções criminosas são, hoje, o principal desafio da segurança pública no Brasil. Em Santa Catarina, estado mais seguro do país, segundo o ranking do Cidades Mais Seguras do Brasil de 2024, atuam ao menos 15 dessas organizações, conforme mapeamento da Polícia Civil.
Apesar da variedade, a disputa por territórios catarinenses afunila-se em uma guerra particular entre duas facções que controlam a criminalidade: o PGC (Primeiro Grupo Catarinense) e o PCC (Primeiro Comando da Capital), de São Paulo. Os dados fazem parte de uma apuração exclusiva, realizada pela reportagem do ND Mais.
No dia 19 de outubro de 2024, Florianópolis preparava-se para receber o retorno do eterno Beatle, Paul McCartney, em show no estádio da Ressacada. Horas antes, porém, uma série de incêndios tomou conta de cinco cidades da Grande Florianópolis. Os ataques, segundo a Polícia Civil, foram orquestrados para mascarar a fuga de criminosos do PGC, que escapavam das forças policiais após uma tentativa frustrada de invadir um território do PCC.
Na ocasião, 18 pessoas foram pelas forças de segurança, duas delas baleadas. Um suspeito morreu. Até o fechamento desta reportagem, esse foi o último grande embate envolvendo as duas principais facções, que operam desde o início dos anos 2000 em Santa Catarina.
Maior no país, PCC fica encurralado na Grande Florianópolis
A base do crime organizado é o tráfico de drogas, que movimenta milhões de reais no Brasil, explica o delegado Antonio Cláudio Seixas Jóca, da Draco/DEIC (Delegacia de Repressão ao Crime Organizado da Diretoria Estadual de Investigações Criminais).
Na corrida das facções pelo controle dos territórios, sobem os índices de outros tipos de crimes, como roubos, tráfico de armas, lavagem de dinheiro e — o mais violento deles — homicídios. Em Santa Catarina, domina o PGC, que tem mais de 10 mil membros, espalhados em todos os 295 municípios do estado.
Na Grande Florianópolis, o PGC controla praticamente todos os pontos de tráfico, com alcance às cidades de Tijucas, Palhoça, São José e Biguaçu. Em Florianópolis, a exceção fica no Norte da Ilha, mais precisamente, na região da comunidade do Papaquara, dominada pelo PCC. Foi lá que, na madrugada de 18 de outubro, começou o conflito que culminaria no caos pré-McCartney.
O Papaquara é alvo de constantes tentativas de invasão e vive em conflito entre as facções. A área é historicamente controlada pelo PCC e, atualmente, segundo informações da Polícia Civil, é o único ponto do grupo paulista na Ilha de Santa Catarina — Florianópolis. No passado, a região do Novo Horizonte, próxima à comunidade Chico Mendes, na área continental, chegou a ter presença da facção paulista, mas foi tomada pelo PGC.
Os pontos estratégicos
O PCC, apesar de ser a maior facção criminosa do país, tem menor incidência em Santa Catarina, ainda que marque presença. A Polícia Civil catarinense não sabe dizer em números, mas tem informações de que há faccionados do grupo paulista em quase todas as regiões do estado, principalmente em locais próximos a fronteiras e portos — oeste e litoral.
“Essas regiões são pontos de interesse por serem rotas de transporte e distribuições de armas e drogas. São territórios, comunidades, pontos específicos de venda de drogas, ou lugares que a facção entende ser mais lucrativos para ela”, pontua o delegado Jóca, que, desde 2016, comanda a Delegacia de Repressão ao Crime Organizado .
Segundo a PCSC, as principais lideranças de ambas as principais facções no estado já foram identificadas e presas, graças à atuação ostensiva da Polícia Militar e às investigações das delegacias. Os nomes dos líderes, no entanto, não são publicamente divulgados e suas prisões limitam, mas não anulam a ação dos grupos criminosos.
Guerra entre facções é problema recente de Santa Catarina
A chegada do delegado Jóca, com experiência prévia de quase uma década na Polícia Civil do Rio de Janeiro — território dominado por milícias e pelo CV (Comando Vermelho) — aconteceu justamente para reforçar o enfrentamento às facções em Santa Catarina. Em 2016, foram 858 mortes violentas no estado — que incluem homicídio, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e confronto policial).
No ano seguinte, o número subiu quase 10%, chegando a 981 mortes — 2017 é considerado um dos anos mais violentos da série histórica. Nesse período, segundo o delegado titular da Draco, houve uma tentativa do PCC de expandir a área de atuação, gerando inúmeros conflitos na chamada “disputa por territórios” para o tráfico de drogas.
A iniciativa gerou represálias no grupo rival, o que resultou na elevação dos indicadores da violência, situação que se se estendeu para 2018, mas em menor escala. Nesse ano, o número de homicídios chegou a 826, uma redução de 15,8% em comparação a 2017.
A queda nos índices da criminalidade, de 2018 em diante, pode ser atribuída a dois fatores: o aumento da repressão policial ao crime organizado e uma espécie de “cessar-fogo” ordenada pela alta cúpula do PCC, por medo de “perder” capital humano para a Justiça.
O trabalho foi eficiente ao ponto que o ano de 2023, segundo dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública, encerrou com um total de 679 mortes violentas — 8,9 para cada 100 mil habitantes. O ano de 2024, até o dia 30 de setembro, registrou 483 crimes desse tipo.
PCC recuou para evitar prisões
Lideranças do grupo paulista pediram que a escalada da violência em Santa Catarina fosse reduzida, por receio que nomes importantes do grupo fossem capturados pelas forças de segurança do estado. As informações foram descobertas pelo MPSP (Ministério Público do Estado de São Paulo) durante investigações, entre março de 2017 e janeiro de 2018.
À época, cartas e ligações telefônicas de supostos membros da facção foram interceptadas pelo órgão, durante trabalho que indiciou 75 pessoas, as quais teriam assumido a liderança do PCC enquanto o chefe da facção, Marcos Willian Herbas Camacho, o Marcola, e outros membros da cúpula estavam presos em RDD (Regime Disciplinar Diferenciado).
O conflito em Santa Catarina foi citado por Cláudio Barbará da Silva, preso na Penitenciária 2 de Presidente Venceslau. Ele é da chamada “velha guarda” da facção paulista, sendo considerado um “cérebro” estratégico da organização.
Em uma interceptação do MPSP, Barbará teria dado ordem para que comparsas parassem de atuar em Santa Catarina durante a guerra instaurada entre PCC e PGC.
“Estamos pedindo que tirem de lá os que ficarem perdidos [criminosos com mandados de prisão a cumprir] pelo menos por enquanto, pois pelo que vimos, se for fato, vão acabar presos”, diz um trecho do documento.
Em outra carta, membros do PCC dizem para os integrantes terem cautela com relação aos ataques em Santa Catarina, por causa da possibilidade de um mapeamento realizado pela polícia.
Como nasceu o PGC (Primeiro Grupo Catarinense)
Fundado em março de 2003, o PGC, como outras facções, surgiu a suposta justificativa para melhorar as condições ofertadas aos presos. Nesse caso, a Penitenciária de Florianópolis, a mais antiga de Santa Catarina.
Inicialmente, o grupo se denominou apenas “GC” e se mobilizou pouco antes da transferência dos criminosos de alta periculosidade para uma nova casa prisional.
Com a inauguração do Complexo Penitenciário de São Pedro de Alcântara, em maio daquele ano, os detentos foram realocados para a Grande Florianópolis, o que desagradou o grupo. Lá, os presos começaram a se organizar e cooptar novos membros, chegando ao formato da facção criminosa que é conhecida, hoje, como PGC.
O surgimento do grupo criminoso dentro do presídio não é um caso isolado, uma vez que o próprio PCC e o CV, as duas maiores facções do país, surgiram da mesma maneira. O Primeiro Comando da Capital nasce em agosto de 1993, motivado, entre outros fatores, pelo Massacre do Carandiru, ocorrido no ano anterior.
Já o Comando Vermelho, organização criminosa mais antiga do país, nasceu em 1979, no extinto Instituto Penal Cândido Mendes, no Rio de Janeiro. Assaltos a bancos e joalherias eram as principais fontes de renda do grupo, mas isso mudou em 1999, quando Marcinho VP — um dos principais líderes do grupo — decidiu investir esforços no tráfico de drogas.
Crime organizado é gerido de dentro dos presídios
Mesmo com parte das lideranças presas, o grupo consegue controlar e determinar o cometimento de crimes em diferentes regiões, não só da Grande Florianópolis, como de toda Santa Catarina. Em 2019, uma investigação da Draco mostrou como 14 criminosos — 12 deles já presos — conseguiam monitorar a movimentação do tráfico, inclusive, do lado de fora das penitenciárias.
Naquele ano, um único aparelho celular, utilizado por lideranças do grupo dentro da penitenciária de São Pedro de Alcântara, realizou 5.169 chamadas no período de um mês. A maioria das chamadas davam ordens tanto para apoio ao tráfico de drogas, como ordens para organização da facção criminosa.
De lá para cá, a facção se tornou hegemônica em Santa Catarina, caracterizando-se por atos violentos e por cooptar membros de outros grupos criminosos que tentam ingressar no estado. Ao mesmo tempo, o PGC também faz o caminho inverso e envia faccionados para outras regiões do Brasil. Segundo monitoramento da PCSC, existem células da facção nos estados do Paraná, Minas Gerais e Mato Grosso, mas com atuação insignificante.
Para sobreviver fora de Santa Catarina, a facção se associou a outros grupos criminosos. O principal deles é o CV, grupo com origem no Rio de Janeiro e atuação em diversas regiões do Brasil. O acordo estabelece, entre outros deveres e obrigações, o asilo a criminosos em ambos os estados e apoio bélico, ou financeiro, quando solicitado, apurou o ND Mais.
No início de 2024, dois líderes do Comando Vermelho foram encontrados escondidos e presos no Brejaru, na cidade de Palhoça. Conforme a Polícia Civil, os criminosos eram procurados por crimes como homicídio, tráfico de drogas e armas e formação de quadrilha. A região é uma das áreas de domínio do PGC na Grande Florianópolis.
Facções utilizam esquema empresarial para se organizar
Para um grupo criminoso ser considerado uma organização criminosa, a lei número 12.850/2013 estabelece que é preciso haver associação de quatro ou mais pessoas, “estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza”.
Dentro da facção catarinense, um estatuto estabelece regras e determinações que devem ser seguidas pelos membros. No topo do comando, segundo a Polícia Civil, há dois escalões: no primeiro ministério, cinco membros; no segundo, são oito — quatro em liberdade e mais quatro dentro da prisão.
“Há uma espécie de conselho, que é fixo, e outro que é rotativo. As grandes decisões, eles tomam em conjunto, em pé de igualdade”, analisa o delegado Alex Bonfim, titular da Decrim (Delegacia de Combate ao Crime Organizado) de Florianópolis.
Em 2017, por exemplo, 34 integrantes da facção foram condenados a 287 anos de prisão, por gravarem videoconferências para deliberar sobre novas ações do esquema criminoso. Na gravação, interceptada pela PCSC, os condenados, um a um, todos se identificam e discutiam, abertamente, as estratégias do grupo. O conteúdo era direcionado aos faccionados detidos na Penitenciária de São Pedro de Alcântara.
Organograma do crime se baseia em um estatuto próprio e funções definidas
A gerência de uma facção, que demanda logística e ordenamento hierárquico, pode ser utilizada como exemplo do que a legislação entende para caracterizar uma organização criminosa. As funções definidas de cada membro do grupo é outro fator a ser considerado.
Segundo a Polícia Civil de Santa Catarina, a organização das facções é semelhante. No caso do PGC, especificamente, cada região dominada tem um “disciplina”, que é a pessoa encarregada por manter a ordem na área. Abaixo dele, há outros indivíduos responsáveis por segmentos específicos, como:
“Em termos estruturais, pode haver diferenças entre postos ou criação de postos, formas de administração entre PGC, PCC e Comando Vermelho, até por que são organizações diferentes, com realidades diferentes. Mas, grosso modo, todas estão estruturadas com uma cadeira hierarca muito clara de comando”, explica o delegado Alex Bonfim.
Menos guerras, mais lucro
Se por um lado o PCC é minoria na disputa contra o PGC, por outro, está presente em pontos considerados estratégicos de Santa Catarina. A atuação do Primeiro Comando da Capital se concentra em regiões que possam servir para aumentar a lucratividade do grupo através do tráfico, nacional e internacional, de drogas e armas.
“Para o PCC, é tudo financeiro”, destaca o delegado Bonfim. Para a maior facção do país, estar em uma região precisa representar lucratividade. Por isso, a presença do grupo está, majoritariamente, nas áreas de portos, como Itajaí e Navegantes. “Tornar isso uma luta sangrenta por espaço, não é lucrativo”, pontua.
Por este fator, a presença do grupo paulista, na Grande Florianópolis, acaba sendo menor em comparação com a organização catarinense, mas não inexistente. O PCC, apesar de não controlar áreas nessa região, está presente com pequenas células, que prestam apoio no tráfico, principalmente, de maconha e cocaína — tal qual ocorre a nível nacional.
“O PCC não tem interesse nenhum em tomar conta de Santa Catarina, não tem interesse no estado, mas em alguns pontos de Santa Catarina que sejam lucrativos para eles”, explica Bonfim. Para o delegado, a organização criminosa é a que está melhor estruturada no país e, por isso, abdica do conflito para evitar perdas, principalmente financeiras.
“Se não tem retorno financeiro, ou estratégico, por algum motivo. Então, quais são as áreas de interesse: portos e fronteiras, mas as fronteiras, eles têm acesso por outras regiões que dominam, como Paraná, Mato Grosso e o próprio Paraguai”, argumenta o delegado.
“Eles [PCC] teriam condições de assumir muitos postos, em muitos lugares, porque, em termos de força bélica e de estrutura, eles têm, mas eles entendem que não é necessário” — Alex Bonfim, titular da Delegacia de Combate ao Crime Organizado de Florianópolis.
Áreas do PGC:
- Pedágio de porto belo em direção à Tijucas;
- Morro do Mocotó (Florianópolis);
- Bela Vista (Palhoça);
- Monte cristo, na Joaquim Nabuco (Florianópolis);
- Bom Viver e José Nitro (São José)
Áreas PCC:
- Comunidade do Papaquara (Florianópolis)
Estrangulamento financeiro é o caminho para sufocar organizações
A PCSC estima que, entre 2016 e 2024, mais de duas mil pessoas tenham sido presas, apenas pela Draco, por envolvimento com o crime organizado em Santa Catarina. O pico de capturas ocorreu nesse período e, entre 2017 e 2019, o endurecimento das ações contra as facções. Atualmente, 40 inquéritos policiais estão abertos contra envolvidos com o crime organizado.
Os trabalhos, segundo a instituição, só atingem bons resultados graças à parceria com as equipes de inteligência de outros órgãos, como Polícia Militar, Ministério Público de Santa Catarina e Secretaria da Administração Prisional.
Para a polícia civil, tirar dinheiro das mãos do criminosos é uma das formas mais efetivas de enfraquecer essas organizações. “Não adianta apreender grandes quantidades e carregamentos de drogas, de armas, se você não identificar os integrantes da organização criminosa e descapitaliza-los”, argumenta o delegado Antonio Jóca.
“À medida que o criminoso está bem capitalizado, ele contrata bons advogados e tem uma estrutura criminosa que continua se movimentando para gerar mais dinheiro. Então, tem que prender, principalmente, as lideranças e sufocá-las na parte financeira” — Antonio Cláudio Seixas Jóca, titular da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado da Diretoria Estadual de Investigações Criminais de Santa Catarina
Neste sentido, o apoio do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas) e do CyberGAECO, vinculados ao Ministério Público, é fundamental.
Desde 2020, foram realizadas 22 operações no combate às facções criminosas. Durante as ações, foram cumpridos 546 mandados de prisão e 18 autos de prisões em flagrante. Além disso, expressivas quantidades de drogas, armas, veículos e o equivalente a mais de R$ 700 mil em espécie foram apreendidos pelo órgão.
Em outubro de 2024, o governador do estado, Jorginho Mello (PL), disse, em exclusividade ao Grupo ND, que as forças de segurança trabalham “de forma muito profissional” e que, em Santa Catarina, “bandido não se cria”. Na visão do governador, “a polícia está dando conta do recado. Sabemos onde estão as organizações e combatemos para que não cresçam”.
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