Organização Social no Hospital São José gera divergências
Em estudo pela prefeitura, a mudança no modelo de gestão do Hospital São José, que é referência em SC, foi alvo de discussões na campanha eleitoral e tema de audiência pública na Câmara de Vereadores
A denominação “alta complexidade” do Hospital Municipal São José em Joinville, no Norte de Santa Catarina, não significa apenas o tipo de serviço prestado pela unidade. Representa, também, o tamanho do desafio enfrentado para que o “Zéquinha” – como é carinhosamente chamado – dê conta da demanda de pacientes.
O custo anual da unidade, de acordo com a administração do hospital, gira em torno de R$ 380 milhões por ano – o que representa, segundo a prefeitura, cerca de 100% do arrecadado pelo IPTU na cidade anualmente. Do total, cerca de R$ 250 milhões são apenas para a folha de pagamento.
Embora gerido pela municipalidade, o serviço prestado pelo Hospital São José beneficia toda a região. Além dos joinvilenses, a unidade é referência para outras 23 cidades nas proximidades, com cerca 34% dos atendimentos vindos de fora de Joinville.
Em decorrência desta demanda regional, o município pediu e o governo do Estado aceitou firmar um convênio para repasse de 20% do valor da folha, o que representaria cerca de R$ 50 milhões. O contrato final, porém, previu apenas R$ 32 milhões.
Apesar de inicialmente promissora, essa ajuda financeira se tornou um novo problema para Joinville. Segundo a prefeitura, o modelo de convênio firmado com o Estado exige uma prestação de contas complexa que demanda trabalho adicional tanto do município quanto do governo de Santa Catarina, o que atrasa os repasses.
Para se ter uma ideia, a primeira das oito parcelas previstas foi enviada aos cofres do município em julho de 2023 e, 15 meses depois, o repasse de R$ 32 milhões não foi finalizado por conta dos entraves burocráticos. Um outro modelo de convênio, mais simples, estaria em discussão, mas não há previsão de quando ele poderá ser efetivado, de acordo com a prefeitura.
O que diz o Estado de Santa Catarina
A reportagem do portal ND Mais procurou a Secretaria de Estado da Saúde e pediu informações sobre a situação atual do convênio firmado com o município de Joinville. O Estado afirma que os repasses serão finalizados após análise e aprovação técnica da prestação de contas, “seguindo toda legislação vigente sobre convênios”. Confira a íntegra da nota:
“A Secretaria de Estado da Saúde informa que até o momento já repassou R$ 24 milhões ao Hospital São José, de Joinville, referente ao convênio firmado com o município. A pasta aguarda o envio, por parte do município, de nova documentação de prestação de contas referente a partes dos valores repassados, R$ 7,8 milhões.
Após análise e aprovação técnica, serão feitos os demais repasses completando os R$32 milhões do convênio, seguindo toda legislação vigente sobre convênios.
Por fim, lembramos que o secretário de Estado da Saúde, Diogo Demarchi, esteve recentemente na Câmara de Vereadores de Joinville em audiência pública sobre o tema, onde estavam presentes representantes do município, conselho municipal de saúde e vereadores, ocasião em que todas as dúvidas inerentes ao referido convênio foram esclarecidas”.
Tabela SUS defasada é outro desafio para o Hospital São José
Como hospital público, o São José conta com repasses do governo federal via SUS (Sistema Único de Saúde), que são regidos por uma mesma tabela em todo o país. Estes repasses poderiam representar um grande alívio para os cofres do município, não fosse a defasagem dos valores tabelados.
De acordo com a prefeitura de Joinville, algumas das discrepâncias entre o custo real e o valor repassado pelo SUS são da ordem de milhares de reais. Casos de cirurgia de hérnia, por exemplo, custam em média para o município aproximadamente R$ 5 mil, enquanto o repasse pela tabela é de R$ 539.
Situação parecida ocorre com alguns tipos de cirurgias ortopédicas, cujo custo gira em torno de R$ 6,7 mil, mas o SUS repassa aproximadamente R$ 378. No caso de um procedimento oncológico, com retirada de tumor e posterior biópsia, por exemplo, a situação é ainda pior.
Segundo o município, todo o procedimento custa, por paciente, cerca de R$ 17,2 mil. O valor repassado pela tabela SUS, porém, é cerca de R$ 367, apenas 2.13% do total.
Em uma ação apresentada por um hospital de Horizontina (RS) para revisão da tabela SUS, a União argumentou ao TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), porém, que a tabela serve como um referencial mínimo e cabe, aos Estados e Municípios, a complementação de valores. Julgado em 2023, o pedido do hospital teve decisão desfavorável do Tribunal.
Já em janeiro deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei Ordinária 14820/2024, que estabelece a revisão periódica da tabela SUS, como uma forma de garantir a qualidade e o equilíbrio econômico-financeiro dos serviços prestados.
O peso da burocracia
Para além do desafio financeiro, a gestão Adriano Silva afirma que a burocracia para compra de equipamentos e insumos para o Hospital São José é outro entrave que afeta a eficiência dos atendimentos. A visão é corroborada pela coordenadora de segurança Daniele Paulini, que é paciente oncológica em tratamento na unidade.
De acordo com ela, “a parte humana é perfeita”, mas “tem a questão das burocracias, tem a demanda de medicação que falta bastante, falta de equipamentos básicos para puncionar as pacientes…”, comenta.
Para solucionar a burocracia, um estudo realizado pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) a pedido da prefeitura, apontou o modelo de gestão via O.S (Organização Social), como o mais vantajoso para o Hospital Municipal São José. O assunto foi alvo de discussões durante a campanha eleitoral e, no dia 16 de outubro, tornou-se tema de uma audiência pública realizada na Câmara de Vereadores.
Cura ou tratamento paliativo?
A opção pela O.S, porém, causa preocupação em pacientes e servidores. Ainda que a diretora-executiva do hospital, Camila Cristina Kalef, tenha afirmado durante audiência pública que a proposta não se trata de uma privatização – pois não haveria a venda direta de um bem público visando lucro – há quem acredite que a O.S pode significar a substituição de servidores de carreira por profissionais privados.
Para o Sinsej (Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Joinville e Região), a transferência da gestão do Hospital São José para uma O.S representaria um risco aos direitos dos funcionários e à qualidade do serviço prestado na unidade.
“O servidor público é muito compromissado com aquilo que ele faz, com a defesa da saúde pública, do SUS e do atendimento que chega para a população. É o profissionalismo do servidor que é colocado em cheque quando ele atende o usuário, então há um viés de discussão a respeito da qualidade do atendimento que vai chegar para o usuário [caso a gestão seja via O.S]”, afirma a presidente do Sinsej, Jane Becker.
Daniele Paulini, que conhece de perto a rotina e o trabalho realizado pelos servidores do Zéquinha, tem opinião parecida com a do Sinsej e cita, para isso, o atendimento da recepção da unidade, que atualmente é terceirizado.
“Falta um pouco dessa parte da humanidade, porque a pessoa recebe um salário baixíssimo, não tá nem aí para o paciente, só está ali porque é o trabalho dela. Se ela não gostou, levanta e vai embora”, diz Paulini.
A paciente também é taxativa na posição contra a gestão do Hospital São José via O.S, à qual chama de terceirização. “Eu sou contra essa terceirização. No grupo de oncologia que eu participo, é unânime. Ninguém gostaria que essa terceirização fosse feita”, completa.
Diretor-presidente do Hospital São José defende a gestão via O.S
Na opinião do diretor-presidente do Hospital São José, o enfermeiro Arnoldo Boege Junior, a unidade não irá perder qualidade caso a gestão seja transferida para uma O.S. “O hospital está sendo fiscalizado permanentemente, ele continua sob o guarda-chuva do município, eu não vejo que a qualidade do serviço vá piorar”, explica.
Para Arnoldo, a tendência, dada a oferta de profissionais na cidade, é que os servidores que hoje atuam no Hospital São José lá permaneçam mesmo sob gestão de uma O.S. “Você não tem uma gama muito grande de profissionais, então a probabilidade é de que os médicos continuem os mesmos”, afirma.
O diretor-presidente, porém, não garante que não haja uma substituição. “Não está definido se sai, se permanece, se sai um pouco, se fica um pouco, porque isso ainda são critérios que estão sendo avaliados dentro da viabilidade da gestão do hospital, então realmente, eu não sei te dizer ainda”, detalha.
“É claro que, sim, a melhor forma de administrar é através de uma Organização Social, porque você melhora todo o processo, agora quanto à permanência, não se sabe. Não tem [como garantir]. Não está pronta essa análise de forma alguma ainda”, completa Boege.
Ainda conforme o diretor-presidente do Hospital São José, as tratativas relacionadas à O.S estão no início. “O que de fato foi realizado até agora com relação à O.S: o chamamento, o edital de qualificação de organizações sociais”, afirma.
“Um edital desta magnitude, de alta complexidade, do volume do São José, é algo extremamente complexo, porque mesmo que ele passe por uma administração de uma organização social, ele continua sob gestão da prefeitura, continua 100% SUS. Uma organização social tem que cumprir metas, cumprir número de procedimentos. Ele continua sob fiscalização [da prefeitura]”.
“Melhores condições”
Para Arnoldo Júnior, a burocracia enfrentada para processos de compra de insumos e equipamentos é o principal desafio do Hospital São José. “Ela [burocracia] é tão amarrada para evitar-se desvios, evitar-se fraudes, que acaba tornando o processo extremamente engessado e, automaticamente, moroso”, diz.
“Uma das soluções que a gente acredita ser a mais viável é mudar esse modelo de gestão”
Para defender a proposta de gestão via O.S, o diretor-presidente cita a própria condição de servidor concursado do São José. “Eu sou servidor, estou diretor, mas sou enfermeiro de carreira, e me sinto muito seguro com relação à O.S lá, porque vai me dar melhores condições”.
“Essa é uma das primeiras gestões do hospital onde 100% de toda a diretoria, de todos os cargos, são servidores de carreiras, e estão muito seguros com relação a isso”, afirma.
Especialista aponta riscos à governabilidade da saúde regional
Se para a prefeitura de Joinville o principal argumento a favor da gestão via O.S é a diminuição da burocracia, a visão do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) vai em direção oposta.
Embora reconheça que há entraves nos processos licitatórios, que dificultam a contratação de profissionais e a compra de insumos e equipamentos, o promotor de Justiça do Distrito Federal e membro auxiliar da Comissão da Saúde do CNMP, Jairo Bisol, aponta riscos à governabilidade do sistema de saúde com o modelo gerido por uma Organização Social.
“Eu sei da importância do Hospital São José. Ele é um hospital, no fundo, regional, absolutamente estratégico. Quando joga-se um hospital desses nas mãos da iniciativa privada, perde-se a perspectiva de fazer esse hospital funcionar de acordo com as demandas político-sanitárias regionais. Ele vai funcionar numa outra lógica”, afirma Bisol que ressalta, ainda assim, que “do ponto de vista legal, a adoção do modelo é viável”.
O promotor, que tem mais de 20 anos de experiência em fiscalização de serviços de saúde, atua na 1ª Promotoria em Defesa da Saúde do Distrito Federal e afirma, no entanto, que o SUS não possui nenhum modelo de gestão efetivamente adequado. “Nem o modelo direto é adequado ao SUS, muito menos esse modelo terceirizado de contratações”, diz.
Ainda que não haja modelo ideal na visão do promotor, a gestão pública das unidades de saúde permitiria decisões mais eficientes frente a desafios que podem surgir de tempos em tempos, a exemplo de pandemias, epidemias e enchentes. “Às vezes o gestor tem que tomar decisões políticas que vão ter custo alto para a unidade, mas vão responder ao que a população precisa”.
“Isso aí [gestão via O.S], do ponto de vista da governabilidade da saúde da região, é um desastre, porque é um hospital estratégico e, quando tiver que tomar uma decisão estratégica, de gestão, que importe em impactos financeiros, não vai tomar, porque não está contratado”
Rumos do Hospital São José são incógnita
Embora previsto para 2025, o avanço do projeto de implantação de uma O.S no Hospital São José não tem prazo para acontecer. Conforme explicou o diretor-presidente da unidade, a proposta ainda está em análise prévia e não há nada concreto sobre o modelo que será escolhido.
No Legislativo, por sua vez, a controversa proposta une parlamentares de espectros políticos totalmente distintos. Os vereadores Dr. Cassiano Ucker (PL) e Professora Ana Lúcia Martins (PT), por exemplo, são igualmente contra a gestão do São José via O.S e manifestaram suas posições na audiência pública convocada pela Comissão de Saúde.
Por parte da prefeitura, há farta disposição em levar à cabo o projeto, tendo como argumento uma maior facilidade e eficiência na gestão da unidade. Já para o sindicato dos servidores, a tônica é “resistir, resistir, resistir”, de acordo com a própria presidente do Sinsej. Tanto para um lado quanto para outro, porém, o caminho que se apresenta parece ser tortuoso – e os rumos que serão tomados no Hospital São José, incertos.
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