Por que a redação do Enem favorece o estilo pernóstico – 30/10/2024 – Sérgio Rodrigues

Podem escrever: no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) que começa neste domingo, mais uma vez a nata da adolescência brasileira terá nota máxima em redações que consagrarão como ideal de texto bem cuidado um cruzamento de Ruy Barbosa com Rolando Lero.

Na minha condição de militante no ramo do esclarecimento público sobre questões de gramática e estilo há mais de 20 anos, nascido quando já fazia décadas que Graciliano Ramos e Rubem Braga eram faróis de precisão, simplicidade e papo reto, tenho vontade de chorar as lágrimas de esguicho do Nelson Rodrigues.

Por Odorico Paraguaçu, que retrocesso! De onde saiu isso? Não cabe pôr nos vestibulandos a culpa por textos coalhados de construções conectivas cômico-bacharelescas como “outrossim, cumpre salientar”, “destarte, é indeclinável inferir” e “em primeira análise, observar-se-á”.

Inteligentes, eles se espelham nas redações nota mil divulgadas todo ano pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e reproduzidas em incontáveis páginas da internet.

Pensam que a norma culta é assim. Não é. Se o ideal das gramáticas normativas sempre foi a língua dos tais “melhores autores”, vale dizer que nenhum dos nossos escritores de ponta jamais soou tão pedante. Tá, o Euclides da Cunha é exceção.

Uma vez que o Inep não incentiva isso expressamente, nem na cartilha voltada para os estudantes nem no manual para os corretores, falta determinar o processo pelo qual o afetado gato juridiquento entra na tuba.

É certo que cabe uma fatia de responsabilidade à presteza com que o gênero dissertativo-argumentativo se submete a virar receita de bolo quando processado por uma miríade de cursos preparatórios país afora.

Não sairá ilesa tampouco a controversa “competência 5”, que exige dos candidatos “elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos”.

Em sua primeira parte, ao cobrar de jovens de 17 anos solução para problemas que desafiam gerações de sábios, ela produz embromação. O que dizer além de “é mister realizar campanhas”, “o governo precisa investir mais” etc.?

Mas o pior é a segunda parte, com sua ameaça de guilhotina ao pensamento livre. Sob a capa das boas intenções (quem é contra os direitos humanos?), cria insegurança e estimula a hipocrisia.

Por exemplo, a “laicidade do Estado” é um dos “direitos humanos” citados pelo Inep na cartilha para os candidatos. Aqueles que, digamos, estiverem fechados com seu pastor na ideia de que o Brasil tem um destino evangélico podem até escrever muito bem, mas precisam fingir que pensam o oposto do que pensam.

Se é para fingir, que se finja logo tudo, estilo incluído. Estamos diante do sintoma de uma velha doença cultural, apoteose monstruosa daquilo que o linguista Carlos Alberto Faraco chama de “esquizofrenia linguística” brasileira.

Desde o primeiro contato com a escola aprendemos que nossa língua é errada. A certa é outra, difícil e artificial, oca de ideias mas cheia de rebimbocas barrocas, que devemos dominar por meio do exercício do pernosticismo e da autoanulação. Destarte, boa sorte aos candidatos.


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