como alguns artistas traduzem o que sentidos?
Minutos depois, estou sentada em um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes e só não espero a morte chegar porque estou cheia também de roupa para pendurar. Quem vem é Mart’nália cantando Zélia Duncan: “Benditas coisas que eu não sei, os lugares onde não fui, os gostos que não provei”. Os versos me atravessam como se eu os estivesse escutando pela primeira vez. Enquanto Raul critica a vida proletária que levamos enquanto nos perguntamos “e daí?”, Zélia elogia a bênção do que ainda não sabemos.
É por isso que levantamos da cama todos os dias. Esperar os acontecimentos de Antonio Cícero. De nada adiantam os 4.000 cruzeiros por mês se não tem algo que te mova a seguir? O que são suas coisas grandes para conquistar? O pessoal e intransferível direito de acordar querendo algo mais, como um dia ver a cantora favorita de perto —aquele amigo desejou isso por 25 anos, não é maravilhoso?
O artista no lugar do outro
Outro dia estava escutando Chico Buarque cantando sobre a gente humilde em quem ele pensa em certos dias. O eu lírico ali, sabemos, é filho de intelectuais, passou parte da infância na Itália, vive na Zona Sul do Rio de Janeiro. Mas diz que quando passa no subúrbio (ele muito bem, vindo de trem, de algum lugar), sente “inveja dessa gente que vai em frente sem nem ter com quem contar”. E é o verso quase final que mais me toca: “eu que não creio peço a Deus por minha gente”. Se colocar no lugar do outro a tal ponto em que o ateísmo se converte em uma estranha fé a partir do despeito de não ter como lutar pelo próprio povo. E, sim, isso dá vontade de chorar mesmo. A arte cai muito bem.
“Gente Humilde” também está no repertório de Bethânia no show com Zeca Pagodinho, de “Santo Amaro a Xerém”. Ali, a vejo cantando “O xis do Problema”, de Noel Rosa — uma música feita há 88 anos, mas atual na voz da artista. Ela emenda “Ronda”, de Vanzolini, que narra a busca de alguém por seu amor pelas ruas de São Paulo, sem encontrar. “O sonho alegria me dá, nele você está”. Duvido que alguém não abraçou esses versos e dormiu chorando baixinho? É como se o poeta pudesse nos tocar nos ombros para dizer “ei, calma” e garantir que não estamos sozinhos. Ter companhia é bom demais.
Cora Ronái trouxe essa reflexão em uma de suas colunas. No texto, ela compara a arte a uma vacina. Se já ouvi a voz de Bethânia explicar a ronda de Vanzolini, saberei lidar com o fato de buscar um amor perdido por aí e voltar para casa abatida. Aquilo que consumimos, que alimenta a alma, vira parte da gente.
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