Padrinhos da intelligentsia e o Novembro Negro – 11/11/2024 – Veny Santos

Padrinho cuida. Ele sabe que terá na tutela a responsabilidade de proteger o vulnerável sob suas asas. Desempenha um paternalismo de coração, entregue ao compromisso de ocupar o lugar dos pais caso estes se ausentem.

Importante definição a deste título, em termos gerais. Porém, aqui, como de costume, os questionamentos irão tirar o fino véu do senso comum no intuito de levar quem acompanha esta coluna à reflexão.

Para isso, resgata-se um dos intelectuais negros do Brasil que, entre os escritos que elaborou ao longo da trajetória política e cultural, criticou com a pontiagudeza de uma flecha o apadrinhamento do negro por parte da Intelligentsia brasileira. Recorramos a Abdias Nascimento.

Intelligentsia, termo russo difundido no século 19, surgiu como definição de uma classe de intelectuais que buscava mudar estruturas sociais e políticas a partir da influência sobre o desenvolvimento cultural. Atualmente, é entendido como representação da “elite pensadora” que define e molda o que se entende por “vanguarda artística”.

No livro “O Quilombismo” (3ª ed., 2019), com diversos textos de Abdias, o autor apresenta ensaios com intervenções suas como professor visitante da Universidade de Ilé-Ifé, na Nigéria, durante a década de 1970. “Quem se desse ao trabalho de proceder ao exame e de fazer a história da intelligentsia brasileira teria que fatalmente chegar ao resultado de que tudo não passa de um dossiê assustador do racismo mais impenitente”, escreveu sem dar voltas.

Sua crítica foi detalhista e destacou do paternalismo colonial outro aspecto: o apadrinhamento. Em seu exercício retórico, escreveu: “Os negros, a maioria desamparada do povo brasileiro, sempre se constituiu como alvo preferido das benesses castradoras do paternalismo”. O intuito era apontar o caráter limitante deste tipo de tutela no meio artístico quando direcionado ao povo preto. “Entre os artistas, a patronagem se tornou verdadeiramente institucionalizada”, afirmou o autor que, em seguida, declarou só ter carreira artística quem tem padrinho ou patrono, figura semelhante a uma espécie de “proprietário” do artista. A partir deste ponto, faz-se indispensável iniciar as articulações reflexivas com a contemporaneidade.

Um exemplo atual. Neste mês de novembro, conhecido pelas ações direcionadas à conscientização sobre negritude e racismo, uma das principais festas a celebrar a juventude negra e suas expressões culturais, Batekoo, denunciou a postura racista do mercado publicitário. A organização, que realizaria mais uma edição do seu festival, questionou a indiferença das empresas quanto à apresentação de seus cases e portfólio durante a busca por patrocínio.

Eis aí a palavra: patrocínio. Não seria ela ainda entendida pelas grandes corporações como apadrinhamento que faz dos artistas pretos eternos afilhados despreparados, vulneráveis e incapazes de uma emancipação que os permitisse autonomia? Por que não investimento em vez de apadrinhamento? É arriscado ou desinteressante promover incentivo à autodeterminação artística? Quem merece a bênção do padrinho?

Há que se repensar posturas, já escrevia Abdias e tantos outros no século passado. De repente, menos padrinhos e mais parceiros.


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