Escritor me conquistou por abordar experiência de deslocamento – 12/12/2024 – Juliana de Albuquerque

No mês passado, escrevi para a Folha sobre o meu primeiro contato com a obra de Aharon Appelfeld por meio da leitura de “Badenheim 1939”, um romance curtinho, porém extremamente forte, sobre o lento e gradual processo de perda de direitos que culminou com a deportação de judeus para os campos de concentração e extermínio durante o regime nazista.

Li “Badenheim 1939” em outubro, enquanto me recuperava de uma infeção de garganta e, embora tenha gostado do livro, fiquei com a sensação de que, talvez, a doença tenha tido algum impacto na minha recepção da obra. Afinal, não há quem não se sinta um pouco mais vulnerável durante um longo período de convalescência. Eu mesma já escrevi sobre essa experiência em uma das minhas colunas mais antigas, na qual comento como as leituras que nos ajudam a atravessar esses momentos de quebra do cotidiano tendem a marcar as nossas vidas.

Na ocasião, sugeri que tais leituras seriam marcantes porque, geralmente, quando estamos doentes, acabamos encontrando tempo para os livros dos quais estamos sempre fugindo, como se, por algum motivo, tivéssemos receio de que eles pudessem virar as nossas vidas de ponta-cabeça.

Isso já aconteceu comigo diversas vezes. Foi assim, por exemplo, que, durante a minha graduação, enquanto me recuperava de uma dengue muito forte, acabei me envolvendo com a obra de Simone de Beauvoir a ponto de resolver escrever um artigo acadêmico sobre a dimensão filosófica dos seus textos literários. Algo que costumo fazer até hoje em meus trabalhos de pesquisa, sempre que tenho a oportunidade de retornar à sua leitura.

Nesse sentido, a minha descoberta de Beauvoir há quase duas décadas realmente acabou mudando o rumo da minha vida. Li “Todos os Homens são Mortais” enquanto estava doente, porém, durante o resto daquele ano, não consegui mais parar de ler Beauvoir.

Garimpei os sebos da cidade do Recife em busca de edições esgotadas e, não satisfeita, resolvi voltar a estudar francês para conseguir ter acesso aos livros de Beauvoir no idioma original. Era como se, na época, nenhum outro autor houvesse sido capaz de lidar com as questões que me interessavam, usando uma linguagem que, de alguma maneira, expressava algo sobre mim que eu ainda não me sentia segura o suficiente para colocar no papel.

O mesmo aconteceu comigo agora em outubro após a leitura de “Badenheim 1939”, pois fiquei tão impressionada com o livro que acabei enveredando por outros textos do autor. De lá para cá, li o que consegui encontrar de Aharon Appelfeld. No entanto, como descobri que nem tudo o que ele escreveu foi traduzido para os idiomas que eu já domino, criei coragem para voltar a praticar o hebraico.

Diferentemente de Beauvoir, cujo fascínio me ajudou a determinar o que eu realmente queria para o meu futuro, tanto enquanto mulher como enquanto profissional, permitindo que eu vislumbrasse uma vida livre, independente e plena de estímulos intelectuais, Appelfeld me conquistou justamente porque uma característica fundamental da sua obra, isto é, a experiência do deslocamento, dialoga com o meu passado.

Aqui, chamo a atenção do leitor para um comentário de Philip Roth, em que ele se recusa a caracterizar Appelfeld simplesmente como um escritor israelense de ficção judaica e de literatura do Holocausto: “[Pois] Appelfeld é um autor deslocado de obras deslocadas, que soube se apossar de modo inconfundível do tema do deslocamento, da desorientação […]. Tão singular quanto o tema é a [sua] voz, que se origina numa consciência ferida, com um tom intermediário entre a amnésia e a memória, e que situa a ficção narrada a meio caminho entre a parábola e a história real”.

Essa é uma voz com a qual me identifico e que, de certa forma, também ouço quando releio o que costumo escrever sobre a minha infância. Não sei se o meu plano de voltar a estudar hebraico renderá algum fruto, mas sei que, de agora em diante, Appelfeld irá me acompanhar pelo resto da vida.


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