Escravidão, evasão fiscal, resistência: 11 pessoas africanas nas minas de ouro da América do Sul

Mineração na Colômbia na década de 1560, uma ilustração do manuscrito de Drake. Histoire naturelle des Indes/slaveryimages.org


Paola Vargas Arana, University of Manchester

O comércio transatlântico de pessoas escravizadas foi um dos processos mais devastadores e desumanos da história humana. Ele é objeto de muitos estudos, mas as histórias de vida individuais da chegada e da sobrevivência dessas pessoas em terras estrangeiras permanecem em grande parte silenciada.

Uma ação judicial movida contra um traficante de pessoas escravizadas em 1589 em Antioquia (uma província na atual Colômbia) me permitiu traçar os caminhos de 11 mulheres e homens africanos escravizados. Esse traficante precisava provar que os cativos entraram legalmente tanto nos navios na África e quanto na operação de mineração na América do Sul.

Suas vidas foram extraordinariamente desafiadoras. Elas foram capturadas perto da costa atlântica da África, no entorno dos rios de Guiné-Bissau e Serra Leoa. Uma delas, Ana, foi capturada no reino do Ndongo, em Angola, no centro-oeste da África.

Em uma viagem difícil, que levou meses no fundo de embarcações de madeira imundas, eles foram transportados à força pelo Oceano Atlântico. Em seguida, viajavam por terra até as minas de ouro da América do Sul operadas por colonizadores espanhóis.

Como estudiosa da história da África, tenho dedicado minha pesquisa a recuperar as histórias individuais dessas pessoas escravizadas e suas contribuições culturais nos países da América do Sul.

Minha pesquisa de arquivos em vários continentes revelou mapas antigos, registros de vendas e de crimes, além de relatos que revelam narrativas complexas de sobrevivência. Entre os anos 1500 e 1800, cerca de 12 milhões de pessoas africanas foram escravizados por europeus e seus descendentes nas Américas. Minha pesquisa recente esclarece as experiências de 11 deles.

Ela desafia as narrativas históricas que reduziram as populações escravizadas a mercadorias econômicas e reformula nosso entendimento sobre a identidade, a resistência e a agência do povo africano que sofreu o tráfico escravista.

Ouro sul-americano e africanos escravizados

Os espanhóis começaram a explorar as Américas em 1492 e encontraram civilizações altamente avançadas, incluindo os astecas, incas, tayrona e muisca. Apesar disso, eles imediatamente procuraram se estabelecer e controlar vastos territórios.

Eles escravizaram a população nativa para extrair metais. No entanto, os indígenas americanos não tinham imunidade às doenças europeias, o que levou ao extermínio maciço da população. Muitos outros morreram devido à brutalidade da escravidão e do armamento europeu. Os historiadores estimam que 90% a 95% dos indígenas americanos morreram logo após a chegada dos europeus.

Cinco mulheres de pele escura, vestidas com blusas brancas e saias azul-marinho, estão em um rio segurando grandes panelas de ouro.Cinco mulheres de pele escura, vestidas com blusas brancas e saias azul-marinho, estão em um rio segurando grandes panelas de ouro.
Mulheres lavam ouro em Antioquia, 1852. Henry Price/Biblioteca Nacional da Colômbia

A abundância de metais americanos foi igualada apenas pela cobiça europeia. A demanda ilimitada gerou a maior migração forçada da história mundial. As pessoas africanas, separadas de suas famílias e terras, foram condenadas a suportar condições inimagináveis nas Américas.

Entretanto, eles não foram vítimas passivas. Juntamente com homens e mulheres indígenas americanas, eles resistiram continuamente. Elas se rebelaram, sabotaram, atacaram e, o mais importante, construíram novos laços comunitários e identidades nas Américas.

Uma ação judicial de 1589

Um dia de sorte no Arquivo Geral da Nação, na Colômbia, proporcionou uma descoberta crucial: uma ação judicial detalhada de 1589. Ela exigia que um proprietário de escravizados provasse a entrada legal de 11 pessoas africanas nas minas chamadas Zaragoza. A decifração desse antigo texto em espanhol consumiu meses, mas acabou revelando dados incríveis sobre esses cativos.

Essa era uma época em que até mesmo os nomes das pessoas escravizadas eram sistematicamente apagados. Minha primeira surpresa foi descobrir nomes no documento. Esses não eram seus nomes originais, é claro, mas rótulos criados por comerciantes de escravos com base em coisas como as características geográficas do local onde foram capturados.

Esses rótulos continham pistas valiosas sobre suas origens. A Ana Angola se destacou como a única do grupo proveniente da África centro-oeste. Os outros eram da África Ocidental. Maria, Francisco, Pedro, Domingo e Juan compartilhavam o sobrenome Biafara, ligado a uma sociedade na atual Guiné-Bissau. Felipa, Ana, Pedro e Pedro-Cacheu tinham o sobrenome Bran, associado à sociedade Manjaku de Guiné-Bissau. O processo também mencionou Ximón, associado à sociedade Sapi, originária da região de Serra Leoa.

Após uma viagem marítima de três meses, essas mulheres e homens africanos aportaram no Caribe continental do Panamá. Esse era um ponto de entrada inicial comum para as populações escravizadas no século XVI. Aqui, outra descoberta significativa surgiu do processo.

Garimpagem de ouro em Concepción

Os traficantes aparentemente desembarcaram os africanos em um pequeno porto do Panamá chamado Concepción. Esse não era um porto oficial reconhecido pela monarquia espanhola que controlava o território naquela época. A motivação era clara: ao usar portos não oficiais, os traficantes podiam evitar a tributação sobre as pessoas escravizadas.

Esses cativos africanos trabalharam na garimpagem de ouro em Concepción por cerca de sete anos em condições extremas. Eles estavam localizados em uma densa floresta tropical em meio a um clima de inquietação. O empreendimento colonial era constantemente desafiado pela resistência dos indígenas americanos e dos africanos escravizados que haviam escapado das correntes.

Então, sem aviso, eles foram forçados a fazer outra viagem difícil.

Uma viagem por terra

Os espanhóis contrabandearam os 11 africanos escravizados por terra para a Colômbia, onde o ouro era mais abundante. Eles fizeram várias paradas em uma viagem que poderia ter durado meses, passando por florestas tropicais e cadeias de montanhas. Ana, com seu idioma e formação cultural distintos, provavelmente teve dificuldades para estabelecer conexões fáceis com seus companheiros.

Isso acrescentou outra camada de injustiça à história deles. Os contrabandistas de pessoas escravizadas aumentaram seus lucros, evitando impostos, enquanto essas mulheres e homens africanos enfrentavam rotas cada vez mais arriscadas, sem garantia de sustento básico ou abrigo.

Uma dúzia de homens em uniformes trabalha em um rio com cordas e varas, homens europeus supervisionando, uma grande rocha no meio do rio.Uma dúzia de homens em uniformes trabalha em um rio com cordas e varas, homens europeus supervisionando, uma grande rocha no meio do rio.
Homens garimpando ouro em Antioquia, 1852. Henry Price/Biblioteca Nacional da Colômbia

Histórias não contadas

O processo não revela se os 11 escaparam ou permaneceram em cativeiro em Antioquia. Mas, no decorrer de minha pesquisa, encontrei evidências de amplos padrões de resistência. Na mesma região, outras pessoas africanas haviam escapado com sucesso da escravidão, estabelecendo comunidades autônomas. Essas 11 pessoas provavelmente viveram muito próximo das comunidades notáveis de fugitivos.

Uma crônica do século XVI registrou uma realidade demográfica impressionante: 3.000 africanos trabalhavam ao lado de 300 espanhóis nas minas da Colômbia na época em que Ana Angola e seus companheiros chegaram. Uma proporção de dez para um.

Isso ilustra a profundidade com que as culturas criadas pelas mulheres e homens africanos e seus descendentes podem ter influenciado essa região. Países como o Panamá e a Colômbia carregam ricas heranças culturais que foram reconfiguradas pelos africanos – na comida, na dança, na espiritualidade e nas estruturas familiares.

Reconstruir a vida dessas 11 pessoas permitiu refletir sobre como as viagens forçadas podem ter afetado seus trajetos de vida. As longas mobilidades podem ter tido um impacto sobre a natureza de suas respostas à escravidão e as identidades que criaram nos novos contextos sociais das minas.

Iluminar suas histórias constituiu um ato de libertação que permite fazer com que essas vidas africanas saíam do silêncio, recuperando o valor que têm suas lutas e sabedoria para o presente da América Latina. É com satisfação que essas 11 mulheres e homens não pertencem mais nas sombras da marginalização e do esquecimento. A importância das suas vidas têm sido reconhecida.

Paola Vargas Arana, Research Associate in African History, University of Manchester

This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.

Paola Vargas Arana, University of Manchester

O comércio transatlântico de pessoas escravizadas foi um dos processos mais devastadores e desumanos da história humana. Ele é objeto de muitos estudos, mas as histórias de vida individuais da chegada e da sobrevivência dessas pessoas em terras estrangeiras permanecem em grande parte silenciada.

Uma ação judicial movida contra um traficante de pessoas escravizadas em 1589 em Antioquia (uma província na atual Colômbia) me permitiu traçar os caminhos de 11 mulheres e homens africanos escravizados. Esse traficante precisava provar que os cativos entraram legalmente tanto nos navios na África e quanto na operação de mineração na América do Sul.

Suas vidas foram extraordinariamente desafiadoras. Elas foram capturadas perto da costa atlântica da África, no entorno dos rios de Guiné-Bissau e Serra Leoa. Uma delas, Ana, foi capturada no reino do Ndongo, em Angola, no centro-oeste da África.

Em uma viagem difícil, que levou meses no fundo de embarcações de madeira imundas, eles foram transportados à força pelo Oceano Atlântico. Em seguida, viajavam por terra até as minas de ouro da América do Sul operadas por colonizadores espanhóis.

Como estudiosa da história da África, tenho dedicado minha pesquisa a recuperar as histórias individuais dessas pessoas escravizadas e suas contribuições culturais nos países da América do Sul.

Minha pesquisa de arquivos em vários continentes revelou mapas antigos, registros de vendas e de crimes, além de relatos que revelam narrativas complexas de sobrevivência. Entre os anos 1500 e 1800, cerca de 12 milhões de pessoas africanas foram escravizados por europeus e seus descendentes nas Américas. Minha pesquisa recente esclarece as experiências de 11 deles.

Ela desafia as narrativas históricas que reduziram as populações escravizadas a mercadorias econômicas e reformula nosso entendimento sobre a identidade, a resistência e a agência do povo africano que sofreu o tráfico escravista.

Ouro sul-americano e africanos escravizados

Os espanhóis começaram a explorar as Américas em 1492 e encontraram civilizações altamente avançadas, incluindo os astecas, incas, tayrona e muisca. Apesar disso, eles imediatamente procuraram se estabelecer e controlar vastos territórios.

Eles escravizaram a população nativa para extrair metais. No entanto, os indígenas americanos não tinham imunidade às doenças europeias, o que levou ao extermínio maciço da população. Muitos outros morreram devido à brutalidade da escravidão e do armamento europeu. Os historiadores estimam que 90% a 95% dos indígenas americanos morreram logo após a chegada dos europeus.

Cinco mulheres de pele escura, vestidas com blusas brancas e saias azul-marinho, estão em um rio segurando grandes panelas de ouro.Cinco mulheres de pele escura, vestidas com blusas brancas e saias azul-marinho, estão em um rio segurando grandes panelas de ouro.
Mulheres lavam ouro em Antioquia, 1852. Henry Price/Biblioteca Nacional da Colômbia

A abundância de metais americanos foi igualada apenas pela cobiça europeia. A demanda ilimitada gerou a maior migração forçada da história mundial. As pessoas africanas, separadas de suas famílias e terras, foram condenadas a suportar condições inimagináveis nas Américas.

Entretanto, eles não foram vítimas passivas. Juntamente com homens e mulheres indígenas americanas, eles resistiram continuamente. Elas se rebelaram, sabotaram, atacaram e, o mais importante, construíram novos laços comunitários e identidades nas Américas.

Uma ação judicial de 1589

Um dia de sorte no Arquivo Geral da Nação, na Colômbia, proporcionou uma descoberta crucial: uma ação judicial detalhada de 1589. Ela exigia que um proprietário de escravizados provasse a entrada legal de 11 pessoas africanas nas minas chamadas Zaragoza. A decifração desse antigo texto em espanhol consumiu meses, mas acabou revelando dados incríveis sobre esses cativos.

Essa era uma época em que até mesmo os nomes das pessoas escravizadas eram sistematicamente apagados. Minha primeira surpresa foi descobrir nomes no documento. Esses não eram seus nomes originais, é claro, mas rótulos criados por comerciantes de escravos com base em coisas como as características geográficas do local onde foram capturados.

Esses rótulos continham pistas valiosas sobre suas origens. A Ana Angola se destacou como a única do grupo proveniente da África centro-oeste. Os outros eram da África Ocidental. Maria, Francisco, Pedro, Domingo e Juan compartilhavam o sobrenome Biafara, ligado a uma sociedade na atual Guiné-Bissau. Felipa, Ana, Pedro e Pedro-Cacheu tinham o sobrenome Bran, associado à sociedade Manjaku de Guiné-Bissau. O processo também mencionou Ximón, associado à sociedade Sapi, originária da região de Serra Leoa.

Após uma viagem marítima de três meses, essas mulheres e homens africanos aportaram no Caribe continental do Panamá. Esse era um ponto de entrada inicial comum para as populações escravizadas no século XVI. Aqui, outra descoberta significativa surgiu do processo.

Garimpagem de ouro em Concepción

Os traficantes aparentemente desembarcaram os africanos em um pequeno porto do Panamá chamado Concepción. Esse não era um porto oficial reconhecido pela monarquia espanhola que controlava o território naquela época. A motivação era clara: ao usar portos não oficiais, os traficantes podiam evitar a tributação sobre as pessoas escravizadas.

Esses cativos africanos trabalharam na garimpagem de ouro em Concepción por cerca de sete anos em condições extremas. Eles estavam localizados em uma densa floresta tropical em meio a um clima de inquietação. O empreendimento colonial era constantemente desafiado pela resistência dos indígenas americanos e dos africanos escravizados que haviam escapado das correntes.

Então, sem aviso, eles foram forçados a fazer outra viagem difícil.

Uma viagem por terra

Os espanhóis contrabandearam os 11 africanos escravizados por terra para a Colômbia, onde o ouro era mais abundante. Eles fizeram várias paradas em uma viagem que poderia ter durado meses, passando por florestas tropicais e cadeias de montanhas. Ana, com seu idioma e formação cultural distintos, provavelmente teve dificuldades para estabelecer conexões fáceis com seus companheiros.

Isso acrescentou outra camada de injustiça à história deles. Os contrabandistas de pessoas escravizadas aumentaram seus lucros, evitando impostos, enquanto essas mulheres e homens africanos enfrentavam rotas cada vez mais arriscadas, sem garantia de sustento básico ou abrigo.

Uma dúzia de homens em uniformes trabalha em um rio com cordas e varas, homens europeus supervisionando, uma grande rocha no meio do rio.Uma dúzia de homens em uniformes trabalha em um rio com cordas e varas, homens europeus supervisionando, uma grande rocha no meio do rio.
Homens garimpando ouro em Antioquia, 1852. Henry Price/Biblioteca Nacional da Colômbia

Histórias não contadas

O processo não revela se os 11 escaparam ou permaneceram em cativeiro em Antioquia. Mas, no decorrer de minha pesquisa, encontrei evidências de amplos padrões de resistência. Na mesma região, outras pessoas africanas haviam escapado com sucesso da escravidão, estabelecendo comunidades autônomas. Essas 11 pessoas provavelmente viveram muito próximo das comunidades notáveis de fugitivos.

Uma crônica do século XVI registrou uma realidade demográfica impressionante: 3.000 africanos trabalhavam ao lado de 300 espanhóis nas minas da Colômbia na época em que Ana Angola e seus companheiros chegaram. Uma proporção de dez para um.

Isso ilustra a profundidade com que as culturas criadas pelas mulheres e homens africanos e seus descendentes podem ter influenciado essa região. Países como o Panamá e a Colômbia carregam ricas heranças culturais que foram reconfiguradas pelos africanos – na comida, na dança, na espiritualidade e nas estruturas familiares.

Reconstruir a vida dessas 11 pessoas permitiu refletir sobre como as viagens forçadas podem ter afetado seus trajetos de vida. As longas mobilidades podem ter tido um impacto sobre a natureza de suas respostas à escravidão e as identidades que criaram nos novos contextos sociais das minas.

Iluminar suas histórias constituiu um ato de libertação que permite fazer com que essas vidas africanas saíam do silêncio, recuperando o valor que têm suas lutas e sabedoria para o presente da América Latina. É com satisfação que essas 11 mulheres e homens não pertencem mais nas sombras da marginalização e do esquecimento. A importância das suas vidas têm sido reconhecida.

Paola Vargas Arana, Research Associate in African History, University of Manchester

This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.



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