Escrever exige um cultivo de vida interior, diz escritora potiguar – 04/02/2025 – Políticas e Justiça


Com uma trajetória marcada pela experimentação em diferentes formatos, Maria Luíza Chacon reúne em “Inútil corroer o osso da tempestade” (Editora Cachalote) contos escritos ao longo de dez anos, explorando temas como o susto da existência, o desejo, a solidão e a linguagem como fio condutor.

Sua escrita, influenciada pelo ritmo da fala natalense e por referências que vão de Clarice Lispector a autores contemporâneos, busca “rondar o mistério” da vida sem pretender respostas absolutas. Crítica às desigualdades do mercado editorial, a autora destaca a importância de ampliar vozes regionais e combater estereótipos de gênero, enquanto celebra o crescimento de escritoras que desafiam tabus. Para ela, a literatura é uma “procura” e seu maior desejo é que suas palavras ecoem em quem as lê.

Você nasceu em Natal, cidade com rica tradição cultural. De que maneira sua origem e vivências influenciam sua escrita?

Influenciam na medida em que constituem uma linguagem, a minha linguagem, mas que em vários momentos é também a de quem veio antes de mim, de quem vem neste mesmo tempo e de quem virá depois, porque de alguma forma há algo na dicção, neste universo partilhado de palavras, nos jeitos de arranjá-las, que vaza aqui e ali nos textos, na voz de uma ou outra personagem. Como me interessa que o texto tenha certo ritmo, preciso lê-lo em voz alta para testar como ele soa, de modo que escrever e reescrever passam irremediavelmente pela minha voz e pelos meus ouvidos. São voltas e voltas na frase, com algumas aproximações contundentes do ritmo da fala e do pensamento incontido. Acontece desse ritmo despontar impregnado da minha origem.

Sua trajetória passa por diferentes formatos de publicação, desde antologias e revistas até zines. Como essas experiências moldaram sua visão como escritora?

Publicar em diferentes formatos é interessante no sentido de que você não fica restrito ao livro. O livro pode ser a súmula de anos de trabalho, pode marcar uma fase, pode representar uma espécie de realização para a autora, pode te aproximar de leitores e de outros escritores. Mas uma escritora ou um escritor não se define apenas por isso, pela publicação de livros: tem a ver, antes, com certo movimento existencial. Além de que o processo de escrita extrapola o transe e a ordenação próprios dos momentos em que alguém senta diante do computador e escreve – le é a própria vida acontecendo.

É quando tudo é silêncio; quando se contempla alguma coisa; quando se está em contato com os outros, as maravilhas e os baques; quando se escuta algo ou alguém na rua e uma frase bate diferente ou insiste na sua cabeça; quando se pesquisa sobre determinados assuntos que se deseja escrever; quando se faz anotações dispersas em um caderninho; quando uma ideia vem num lampejo e se deseja fazer a anotação, mas por algum motivo não se faz e a ideia fica extraviada; quando se lê outras poetas e escritores; quando uma frase se insinua em sonho. Publicar os próprios textos em antologias, revistas, zines e mesmo usar a própria voz para dizê-los, e não o registro escrito, podem ser formas vigorosas de fazê-los circular por aí.

O que motivou a criação de “Inútil corroer o osso da tempestade”, seu primeiro livro de contos? Existe uma história ou momento específico que inspirou a obra?

Faz mais da metade de minha vida que escrevo, porque faz mais da metade de minha vida que sou leitora. Essas duas condições são inseparáveis. Escrever me dá a sensação de incursionar um pouquinho no mundo, no turbilhão de coisas que eu não entendo, mais a fim de rondar o mistério e dar umas braçadas no breu do que para lançar respostas absolutas. Nessa incursão eu posso criar o que der na telha e essa liberdade, ali pela minha adolescência, me seduziu muito. Passei a ver a escrita como uma forma prazerosa e doída – o “doce amargo” de Eros a que se refere Anne Carson – de passar um tempo comigo mesma, na borda de um risco inteiramente meu, e a ver nisso certa necessidade. Eu não pensava em necessariamente publicar em livro. Adolescente, tive um blog no qual postava alguns textos, lia outros poetas e escritores, trocava ideia aqui e ali com gente cujos interesses se afinavam com os meus. Mantive esse blog por alguns anos. Depois, cheguei a publicar textos em antologia, zine, revistas. Só na pandemia comecei a desejar publicar um livro, em meio ao pavor da dissolução e ao desejo de durar. Reuni textos da minha preferência, textos que foram escritos ao longo de dez anos. Para a minha surpresa, percebi que havia ali um eixo, ainda que não planejado, uma espécie de fio atravessando todos os contos. Era a linguagem, como bem pontuou um dos editores do livro, André Balbo.

O título do livro é bastante instigante. O que ele representa para você e como dialoga com as histórias que compõem a obra?

Dar título é algo que, para mim, costuma levar tempo. Alguns textos, por exemplo, só ganharam título depois que os reuni em um arquivo de Word, no projeto de livro. Nesses casos, os títulos estavam lá, dentro dos próprios textos, e eu precisei lançar olhares mais atentos para encontrá-los. O título da obra coincide com o título de um dos contos, que foi o último texto do livro a ser escrito. Achei que Inútil corroer o osso da tempestade sintetizava bem não só um dos textos, mas dava o tom do livro como um todo. É um título longo, metafórico, talvez pouco utilitário. Gosto disso.

Quais temas ou questões você acredita serem centrais na sua escrita? E por que esses temas são importantes para você?

Um tema que retornou bastante é este susto de estar viva e, muitas vezes, em não conformidade. Isso evidentemente se ramifica em questões como o desejo, o encontro com os outros, a solidão, a perversidade, a dissolução e a morte. Não saberia dizer, de maneira certeira, os motivos de esbarrar tanto nesses aspectos (que compõem o próprio tecido da vida), mas não deixo de notar certas reincidências até aqui – como reincidem algumas obsessões, um tanto inconscientes. Com o tempo, é possível que outros temas e obsessões surjam. Independente deles, no final das contas o que me importa é escrever como quem busca, é fazer da escrita uma procura.

Muitos escritores têm autores ou obras que os marcaram profundamente. Quais são suas principais referências literárias?

São tantas! Clarice Lispector; Osman Lins, autor que tive a felicidade de pesquisar no doutorado; Hilda Hilst; Raduan Nassar; Machado de Assis; João Gilberto Noll; Aglaja Veteranyi; Samuel Beckett; Murilo Mendes; Ana Cristina Cesar; Roberto Piva; Maria Gabriela Llansol. Entre as referências mais recentes, Cesar Aira; Silvina Ocampo; Veronica Stigger com seus livros estranhos; Pedro Lucas Bezerra; Regina Azevedo; Maíra Dal’Maz; Guilherme Gontijo Flores; Lucas Litrento; Rodrigo Lobo Damasceno; Edimilson de Almeida Pereira; Micheliny Verunschk…

Como é o seu processo de criação? Você segue uma rotina ou a escrita surge de maneira mais espontânea?

Depende. Há fases em que sigo certa rotina, escrevo ou reescrevo quase todos os dias, e fases em que não. Quanto mais obcecada eu estiver pelo texto, mais a escrita flui – tenho aprendido, nos últimos anos, meios de provocar as minhas obsessões, a não ficar apenas à espera da “inspiração”. Assim, quanto mais tempo disponho para pensar, dormir e acordar com o texto, melhor. Escrever exige um cultivo de vida interior. Mas há demandas da “vida real” que se impõem, afinal uma escritora precisa comer e pagar suas contas. Sabemos que quem escreve literatura raramente vive às custas da própria escrita no Brasil: eu, feito tantos escritores, preciso conciliar esse trabalho com trabalhos remunerados. Isso dificulta a escrita e, em muitos casos, impossibilita-a. Até aqui, encontro fôlego para insistir.

Que mensagem ou sensação você gostaria que os leitores levassem ao terminar seu livro?

Na verdade, gostaria é que os leitores me contassem dos diálogos que estabeleceram ao ler o livro. Entreguei o que tinha para ser entregue, dentro do que pude, nos textos. O que espero, e estou trabalhando para isso junto à editora que publicou o Inútil, a Cachalote, é que o livro encontre os seus leitores, gente que vai lê-lo e não vai passar indiferente por ele.

Como sua experiência como professora influencia sua escrita? Existe uma troca entre as salas de aula e o processo de criação literária?

Gosto muito de ser professora e do convívio com os estudantes. Costumo pensar o contexto de sala de aula como algo apartado da minha produção literária, pois leciono para adolescentes, mas os meus textos não são voltados para esse público.

A literatura sempre foi um espaço desafiador para as mulheres. Como você enxerga as mudanças recentes nesse cenário? Há avanços concretos ou ainda há muito o que ser feito?

Do século 20 para cá, com o feminismo, as mulheres vivenciaram avanços significativos. Observo que há cada vez mais escritoras publicando e obtendo reconhecimento pelo seu trabalho. Nos últimos anos, inclusive, a maior parte dos livros interessantes de literatura contemporânea que li foram escritos por mulheres.

Por outro lado, há muito machismo e, não raro, para falarem do trabalho de uma escritora recorrem à sua aparência física, por exemplo. Também é comum livros escritos por mulheres, na ausência de uma crítica apurada, serem resumidos a obras que tratam de “temática feminina”, como se às mulheres não coubessem os chamados “temas universais” –esses abordados apenas nos livros escritos por homens cis, em sua esmagadora maioria brancos. Vejo que, em muitos contextos, livros escritos por mulheres ainda são tratados como pueris ou menos relevantes por partirem de quem partem.

Mulheres têm encontrado mais liberdade para explorar temas considerados tabus ou fora do mainstream na literatura brasileira?

Creio que sim. Há uma profusão de escritoras latino-americanas contemporâneas com escritas espantosas, como é o caso de Fernanda Melchor, Maria Fernanda Ampuero, Mariana Enriquez, Mónica Ojeda, Dolores Reyes, Yuliana Ortiz Ruano, Samanta Schweblin e Ariana Harwicz. Há também autoras transgressoras do século passado que só nos últimos anos foram traduzidas no Brasil, como é o caso de Silvina Ocampo e de Sara Gallardo.

O mercado literário brasileiro é bastante concentrado no eixo Rio-São Paulo. Como você avalia os desafios e as oportunidades para escritores do Norte e Nordeste?

As oportunidades e a visibilidade não são as mesmas, especialmente se você não vem de família abastada. É um corre dobrado. Grande parte das editoras com expressão nacional e da grande mídia estão fincadas no Sudeste do país, então há uma distância geográfica.

Mas não é só isso. As questões mercadológicas prevalecem e elas não costumam estar tão abertas para olhar em direções menos óbvias. Quando digo “olhar”, falo de abertura real para enxergar o outro sem um monte de preconceitos e lugares-comuns passando na frente; de ler, procurar saber, e não de olhar só para achar engraçadinho, simpático ou exótico, enquanto jura que está sendo “inclusivo”.

Dito isso, ressalto o trabalho valente de algumas editoras que se dispõem a olhar a literatura através de lentes que nem sempre coincidem com as do mercado e que contemplam autores de todas as regiões do país, sejam eles estreantes ou não. Algumas dessas editoras, inclusive, abrem chamadas semestrais ou anuais para publicação.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço “Políticas e Justiça” da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Maria Luíza Chacon foi “To bring you my love”, de PJ Harvey.

Com uma trajetória marcada pela experimentação em diferentes formatos, Maria Luíza Chacon reúne em “Inútil corroer o osso da tempestade” (Editora Cachalote) contos escritos ao longo de dez anos, explorando temas como o susto da existência, o desejo, a solidão e a linguagem como fio condutor.

Sua escrita, influenciada pelo ritmo da fala natalense e por referências que vão de Clarice Lispector a autores contemporâneos, busca “rondar o mistério” da vida sem pretender respostas absolutas. Crítica às desigualdades do mercado editorial, a autora destaca a importância de ampliar vozes regionais e combater estereótipos de gênero, enquanto celebra o crescimento de escritoras que desafiam tabus. Para ela, a literatura é uma “procura” e seu maior desejo é que suas palavras ecoem em quem as lê.

Você nasceu em Natal, cidade com rica tradição cultural. De que maneira sua origem e vivências influenciam sua escrita?

Influenciam na medida em que constituem uma linguagem, a minha linguagem, mas que em vários momentos é também a de quem veio antes de mim, de quem vem neste mesmo tempo e de quem virá depois, porque de alguma forma há algo na dicção, neste universo partilhado de palavras, nos jeitos de arranjá-las, que vaza aqui e ali nos textos, na voz de uma ou outra personagem. Como me interessa que o texto tenha certo ritmo, preciso lê-lo em voz alta para testar como ele soa, de modo que escrever e reescrever passam irremediavelmente pela minha voz e pelos meus ouvidos. São voltas e voltas na frase, com algumas aproximações contundentes do ritmo da fala e do pensamento incontido. Acontece desse ritmo despontar impregnado da minha origem.

Sua trajetória passa por diferentes formatos de publicação, desde antologias e revistas até zines. Como essas experiências moldaram sua visão como escritora?

Publicar em diferentes formatos é interessante no sentido de que você não fica restrito ao livro. O livro pode ser a súmula de anos de trabalho, pode marcar uma fase, pode representar uma espécie de realização para a autora, pode te aproximar de leitores e de outros escritores. Mas uma escritora ou um escritor não se define apenas por isso, pela publicação de livros: tem a ver, antes, com certo movimento existencial. Além de que o processo de escrita extrapola o transe e a ordenação próprios dos momentos em que alguém senta diante do computador e escreve – le é a própria vida acontecendo.

É quando tudo é silêncio; quando se contempla alguma coisa; quando se está em contato com os outros, as maravilhas e os baques; quando se escuta algo ou alguém na rua e uma frase bate diferente ou insiste na sua cabeça; quando se pesquisa sobre determinados assuntos que se deseja escrever; quando se faz anotações dispersas em um caderninho; quando uma ideia vem num lampejo e se deseja fazer a anotação, mas por algum motivo não se faz e a ideia fica extraviada; quando se lê outras poetas e escritores; quando uma frase se insinua em sonho. Publicar os próprios textos em antologias, revistas, zines e mesmo usar a própria voz para dizê-los, e não o registro escrito, podem ser formas vigorosas de fazê-los circular por aí.

O que motivou a criação de “Inútil corroer o osso da tempestade”, seu primeiro livro de contos? Existe uma história ou momento específico que inspirou a obra?

Faz mais da metade de minha vida que escrevo, porque faz mais da metade de minha vida que sou leitora. Essas duas condições são inseparáveis. Escrever me dá a sensação de incursionar um pouquinho no mundo, no turbilhão de coisas que eu não entendo, mais a fim de rondar o mistério e dar umas braçadas no breu do que para lançar respostas absolutas. Nessa incursão eu posso criar o que der na telha e essa liberdade, ali pela minha adolescência, me seduziu muito. Passei a ver a escrita como uma forma prazerosa e doída – o “doce amargo” de Eros a que se refere Anne Carson – de passar um tempo comigo mesma, na borda de um risco inteiramente meu, e a ver nisso certa necessidade. Eu não pensava em necessariamente publicar em livro. Adolescente, tive um blog no qual postava alguns textos, lia outros poetas e escritores, trocava ideia aqui e ali com gente cujos interesses se afinavam com os meus. Mantive esse blog por alguns anos. Depois, cheguei a publicar textos em antologia, zine, revistas. Só na pandemia comecei a desejar publicar um livro, em meio ao pavor da dissolução e ao desejo de durar. Reuni textos da minha preferência, textos que foram escritos ao longo de dez anos. Para a minha surpresa, percebi que havia ali um eixo, ainda que não planejado, uma espécie de fio atravessando todos os contos. Era a linguagem, como bem pontuou um dos editores do livro, André Balbo.

O título do livro é bastante instigante. O que ele representa para você e como dialoga com as histórias que compõem a obra?

Dar título é algo que, para mim, costuma levar tempo. Alguns textos, por exemplo, só ganharam título depois que os reuni em um arquivo de Word, no projeto de livro. Nesses casos, os títulos estavam lá, dentro dos próprios textos, e eu precisei lançar olhares mais atentos para encontrá-los. O título da obra coincide com o título de um dos contos, que foi o último texto do livro a ser escrito. Achei que Inútil corroer o osso da tempestade sintetizava bem não só um dos textos, mas dava o tom do livro como um todo. É um título longo, metafórico, talvez pouco utilitário. Gosto disso.

Quais temas ou questões você acredita serem centrais na sua escrita? E por que esses temas são importantes para você?

Um tema que retornou bastante é este susto de estar viva e, muitas vezes, em não conformidade. Isso evidentemente se ramifica em questões como o desejo, o encontro com os outros, a solidão, a perversidade, a dissolução e a morte. Não saberia dizer, de maneira certeira, os motivos de esbarrar tanto nesses aspectos (que compõem o próprio tecido da vida), mas não deixo de notar certas reincidências até aqui – como reincidem algumas obsessões, um tanto inconscientes. Com o tempo, é possível que outros temas e obsessões surjam. Independente deles, no final das contas o que me importa é escrever como quem busca, é fazer da escrita uma procura.

Muitos escritores têm autores ou obras que os marcaram profundamente. Quais são suas principais referências literárias?

São tantas! Clarice Lispector; Osman Lins, autor que tive a felicidade de pesquisar no doutorado; Hilda Hilst; Raduan Nassar; Machado de Assis; João Gilberto Noll; Aglaja Veteranyi; Samuel Beckett; Murilo Mendes; Ana Cristina Cesar; Roberto Piva; Maria Gabriela Llansol. Entre as referências mais recentes, Cesar Aira; Silvina Ocampo; Veronica Stigger com seus livros estranhos; Pedro Lucas Bezerra; Regina Azevedo; Maíra Dal’Maz; Guilherme Gontijo Flores; Lucas Litrento; Rodrigo Lobo Damasceno; Edimilson de Almeida Pereira; Micheliny Verunschk…

Como é o seu processo de criação? Você segue uma rotina ou a escrita surge de maneira mais espontânea?

Depende. Há fases em que sigo certa rotina, escrevo ou reescrevo quase todos os dias, e fases em que não. Quanto mais obcecada eu estiver pelo texto, mais a escrita flui – tenho aprendido, nos últimos anos, meios de provocar as minhas obsessões, a não ficar apenas à espera da “inspiração”. Assim, quanto mais tempo disponho para pensar, dormir e acordar com o texto, melhor. Escrever exige um cultivo de vida interior. Mas há demandas da “vida real” que se impõem, afinal uma escritora precisa comer e pagar suas contas. Sabemos que quem escreve literatura raramente vive às custas da própria escrita no Brasil: eu, feito tantos escritores, preciso conciliar esse trabalho com trabalhos remunerados. Isso dificulta a escrita e, em muitos casos, impossibilita-a. Até aqui, encontro fôlego para insistir.

Que mensagem ou sensação você gostaria que os leitores levassem ao terminar seu livro?

Na verdade, gostaria é que os leitores me contassem dos diálogos que estabeleceram ao ler o livro. Entreguei o que tinha para ser entregue, dentro do que pude, nos textos. O que espero, e estou trabalhando para isso junto à editora que publicou o Inútil, a Cachalote, é que o livro encontre os seus leitores, gente que vai lê-lo e não vai passar indiferente por ele.

Como sua experiência como professora influencia sua escrita? Existe uma troca entre as salas de aula e o processo de criação literária?

Gosto muito de ser professora e do convívio com os estudantes. Costumo pensar o contexto de sala de aula como algo apartado da minha produção literária, pois leciono para adolescentes, mas os meus textos não são voltados para esse público.

A literatura sempre foi um espaço desafiador para as mulheres. Como você enxerga as mudanças recentes nesse cenário? Há avanços concretos ou ainda há muito o que ser feito?

Do século 20 para cá, com o feminismo, as mulheres vivenciaram avanços significativos. Observo que há cada vez mais escritoras publicando e obtendo reconhecimento pelo seu trabalho. Nos últimos anos, inclusive, a maior parte dos livros interessantes de literatura contemporânea que li foram escritos por mulheres.

Por outro lado, há muito machismo e, não raro, para falarem do trabalho de uma escritora recorrem à sua aparência física, por exemplo. Também é comum livros escritos por mulheres, na ausência de uma crítica apurada, serem resumidos a obras que tratam de “temática feminina”, como se às mulheres não coubessem os chamados “temas universais” –esses abordados apenas nos livros escritos por homens cis, em sua esmagadora maioria brancos. Vejo que, em muitos contextos, livros escritos por mulheres ainda são tratados como pueris ou menos relevantes por partirem de quem partem.

Mulheres têm encontrado mais liberdade para explorar temas considerados tabus ou fora do mainstream na literatura brasileira?

Creio que sim. Há uma profusão de escritoras latino-americanas contemporâneas com escritas espantosas, como é o caso de Fernanda Melchor, Maria Fernanda Ampuero, Mariana Enriquez, Mónica Ojeda, Dolores Reyes, Yuliana Ortiz Ruano, Samanta Schweblin e Ariana Harwicz. Há também autoras transgressoras do século passado que só nos últimos anos foram traduzidas no Brasil, como é o caso de Silvina Ocampo e de Sara Gallardo.

O mercado literário brasileiro é bastante concentrado no eixo Rio-São Paulo. Como você avalia os desafios e as oportunidades para escritores do Norte e Nordeste?

As oportunidades e a visibilidade não são as mesmas, especialmente se você não vem de família abastada. É um corre dobrado. Grande parte das editoras com expressão nacional e da grande mídia estão fincadas no Sudeste do país, então há uma distância geográfica.

Mas não é só isso. As questões mercadológicas prevalecem e elas não costumam estar tão abertas para olhar em direções menos óbvias. Quando digo “olhar”, falo de abertura real para enxergar o outro sem um monte de preconceitos e lugares-comuns passando na frente; de ler, procurar saber, e não de olhar só para achar engraçadinho, simpático ou exótico, enquanto jura que está sendo “inclusivo”.

Dito isso, ressalto o trabalho valente de algumas editoras que se dispõem a olhar a literatura através de lentes que nem sempre coincidem com as do mercado e que contemplam autores de todas as regiões do país, sejam eles estreantes ou não. Algumas dessas editoras, inclusive, abrem chamadas semestrais ou anuais para publicação.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço “Políticas e Justiça” da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Maria Luíza Chacon foi “To bring you my love”, de PJ Harvey.



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