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19 Apr 2025, Sat

Um verão inesquecível: Sete autoras escrevem sobre as memórias da estação




A convite de Vogue, Lorena Portela, Eliana Alves Cruz, Luciany Aparecida, Bárbara Paz, Betina Anton, Mariana Salomão Carrara e Verena Smit trazem um presente literário para inspirar os dias de calor Morangos e Cerejas
por Lorena Portela
Dizem os registros que a Praça da Figueira, na região da Baixa de Lisboa, foi criada lá por 1775 por causa dos muitos vendedores ambulantes da época. Bagunça demais, a cidade precisava de um mercado central e Marquês de Pombal resolveu concentrar tudo ali, mas nem tinha esse nome, nem era como é agora, claro. Hoje em dia os ambulantes, não os mesmos do século 18, continuam lá e dividem o tumulto com guest houses, hotéis, lojas feias, estações de metrô, ônibus, tuk-tuks, táxis, motoristas de Uber. Turistas, centenas, milhares. O largo está a uma quadra do Rossio, a oito curtas quadras do Rio Tejo, tem vista para o Castelo de São Jorge e, motivo pelo qual escrevo aqui, fica a duas quadras do primeiro apartamento em que morei na capital portuguesa.
Muitos anos depois da praça ter sido criada, foi ali que eu e minha mãe começamos o que seria o meu primeiro verão oficial. Porque eu nasci no Ceará e lá não tem verão. Quer dizer, tem, só tem, e justamente por isso não tem. Em Fortaleza as temperaturas variam, o ano inteiro, entre 25 e 33 graus, sem trégua, mesmo com chuva. Sem mudanças trimestrais ou conceito de estação. Eu havia trocado Fortaleza por Lisboa no início do outono de 2015. Ou seja, fora a estação corrente, vivi um inverno e uma primavera até receber a visita da minha mãe bem na época em que a Europa vira o lugar mais charmoso do mundo.
Alheias à multidão de turistas e – culpa de agosto – aos termômetros marcando muitos graus acima do agradável, minha mãe e eu sentamos num dos bancos em frente ao Mercado da Figueira para comer morangos e cerejas. Em muito tempo, éramos só nós duas e mais ninguém. O calor e a luz imbatível de Lisboa chegavam marcando na pele algumas das mudanças definitivas da minha vida, as que dividi com minha mãe ali no meio da muvuca: eu havia conhecido outras pessoas. Havia me apaixonado. Tinha um novo trabalho. Uma cidade que amava.
Eu era outra pessoa. Não voltaria para retomar em nada a vida que havia deixado no lugar em que nasci. Minha mãe ouvia a sequência dessas frases, com a boca cheia de morangos. E de cerejas. São enormes as cerejas no verão. Os morangos chegam a brilhar. Minha mãe ouvia, comia, e o verão fazia o resto. Nos demais dias, fomos à praia pegando o trem com cheiro de sovaco que faz a Linha de Cascais. Nadamos juntas no mar gelado das Avencas, ouvimos músicas dividindo o mesmo fone de ouvido, dormimos na mesma cama do apartamento da Rua dos Fanqueiros, amparadas por um ventilador que não nos deixava morrer de calor por pouco, muito pouco. Jantamos no Largo dos Trigueiros, matamos a sede com vinho verde. Andamos a pé numa cidade quente, ensolarada, que escurecia só às dez da noite. Foi a primeira vez em que eu soube o que verão significava. A melhor estação do ano coroando o fim da vida que eu não pegaria de volta. O verão da Praça da Figueira, dos morangos e das cerejas, e da minha mãe e eu.
Um verão inesquecível
Ilustrações: Mônica Ventura
Os Verões De Marcilene
Por Eliana Alves Cruz
Marcilene olhou-se no espelho e disse: “A hora é essa!”. A cara toda purpurinada e o corpo apertado dentro de um maiô de paetês dourados, ela se jogava desde janeiro na temporada pré-carnavalesca da cidade mais carnavalesca do planeta assim que o sol começava a esquentar, sempre confiante de que aquele seria não mais um verão, mas “o” verão inesquecível.
O ano era 2020 e como sempre ela não queria deixar a vida para depois. Achava-se jovem, bela, cheia de vontades de tudo. Jogou-se grandemente no fluxo lindo e incessante de outras caras purpurinadas e outros corpos em maiôs cintilantes, roupas de marinheiro, pirata, pierrô, sereia, bailarina, anjo. A sua era apenas mais uma cara na multidão suada e feliz. Seguiu todos os blocos que alcançou, em todos os sambas que achou, bebeu em todos os bares que pelo caminho topou. Beijar? Beijou, beijou sim! Marcilene era a imagem da juventude, da alegria e da felicidade. Choveu. Ela foi assim mesmo.
“A chuva no Carnaval é maravilhosa. Ela refresca e deixa na rua só os fortes, só os bons, só quem é folião de verdade.” Aquele verão seria mesmo memorável. Tinha que ser, pensava. Nunca se sabe quando será o último, dizia. Ele seria mesmo diferente de todos os outros. No segundo dia de folia, o corpo de Marcilene disse: “Basta!”. Uma tosse insuportável, uma falta de ar… que estranho, não sentia mais o gosto e o odor das coisas. Espantou os pensamentos: “Ah, gripe às vezes faz isso”.
Cansada de mandar mensagens ignoradas, a amiga Jussara ligou.
“Marci, …dá uma olhada nisso. Vai ao médico, mulher… não, Marcilene, pode não ser só uma gripe. Já deu uma olhada nas notícias? …Não, eu não sou hipocondríaca e é perigoso sim, Marcilene. Um vírus! ”
Foi parar no hospital com suspeita de pneumonia, tomou antibióticos, melhorou, mas saiu de lá sem saber bem o que era aquilo. Até que o que era desconhecido e distante foi chegando cada vez mais perto, perto demais. Entrou pelas vias respiratórias do planeta e fez o ano seguir sem nenhum confete e serpentina. O sol esfriou e as almas também. Um gelo glacial com odor de fim pairou por toda parte.
Não acreditava que tinha sido empurrada contra a vontade porta adentro. Arrastou-se por todos os cômodos da casa olhando a vida pela tela… da TV, do celular, do notebook… vendo tudo pelas janelas. Foi duro conseguir chegar ao verão seguinte e continuar com aquela vontade de não adiar a vida. Pensou: “Nunca mais haverá um verão como este… ou será que nunca mais haverá verão?”.
Reagiu. Trabalhou. Nunca deixaria de trabalhar! Fez pães, cultivou plantas, fez dança, ioga, alongamento. Fez aula de crochê. Fez vídeos motivacionais. Viu séries, viu filmes, pintou. Leu livros há muito adiados. Leu livros recém-descobertos. Ouviu suas músicas favoritas dos seus artistas prediletos. Descobriu outras vozes que entraram na lista de preferidas. Atualizou- se das notícias. Começou um curso de idiomas… on-line. Conversou com velhos amigos… on-line. Recebeu conselhos da família… on-line. Fez terapia… on-line.
Cansou. Deitou na cama e olhou o teto. Planejou. “Vou sair por aquela porta, sem máscara, pelada e vou mergulhar na praia.” Olhou para fora. Pelado, o vizinho regava as plantas na varanda. “Visão do inferno!” Fechou a cortina e os olhos. Queria escutar um som que lhe trouxesse o canto das cigarras dos dias mornos de sua infância, quando ouvia a algazarra que os bichos faziam prenunciando o amarelo do sol a chegar em breve. Depois cataria suas carcaças vazias grudadas pelas folhas antes de espalhá-las correndo pelo parque… mas não tinha cigarra, não tinha canto, não tinha parque. Jussara, mais uma vez preocupada com a falta de respostas da amiga para as mensagens, ligou. “Marci… você é ainda jovem, bonita, cheia de possibilidades de tudo.”
Não adiantava o que dissessem. Sentia seu tempo escoando, qualquer possibilidade de beleza descendo ralo abaixo toda manhã e com ânimo esgotado, esmagado pelo temor, pela falta de concentração, pela lembrança frágil, pela queda capilar, pelas unhas nunca mais feitas, pelas cabeças que negavam os fatos, a ciência, a existência. Pelas mãos que produziam ilusões criminosas e, enfim, pelas milhões de respirações que paravam para sempre em algum leito, em alguma parte de algum coração partido. As horas estavam contadas. Pela primeira vez ouvia o badalar deste relógio. Havia algo que queria. Sentia vontade de voltar desejar imaginar uma chance de algo que fosse positivamente inesquecível, pois achava mesmo que estava vivendo um momento único e impossível de ser apagado da memória, mas pelo seu caráter nefasto. Mergulhada num instante de treva único há dois verões. Dois anos?!
Foi como o som de um despertador, um galo madrugador fora de hora, um raio de sol anunciando a nova estação, que entrou pela janela da TV um bem-te-vi anunciando uma chance de férias do trabalho brutal que era não ter esperança: Vacina. A número um, a número dois, a número três… enfim chegou 2023. Marcilene olhou-se no espelho e disse: “A hora é essa!”. Pisou na calçada como o território novo a ser conquistado. Venceu o quarteirão, a avenida, o bairro. Olhou o céu sem nuvem, reclamou do calor. Não foi de carro ou de táxi. Foi a pé, de ônibus, desceu ao metrô. Caminhou pela areia, molhou a ponta dos pés. Queria amar. Achava que já era hora. Deixou a vontade voltar.
Viu o bloco pré-carnavalesco passar. Todos sorriam para ela com benevolência. Saberiam eles que ela esteve ali há poucos anos, com seu maiô dourado? Jussara certamente estaria lhe mandando mensagens que ela não leria procurando por ela, preocupando-se com ela. Em breve ligaria. Sorriu. Brindou a si mesma escrevendo na areia antes de decidir seguir os que antecipavam o Carnaval aproveitando desde já o calor que se anunciava:
De máscaras feitas de carne
Que suam alívios em risos por tempos guardados
Meu rosto é solidão
Mergulhada nas faces do mundo
Sem santos ou demônios fantasiados
Apenas um cansaço desaguado no asfalto
Meu rosto é procissão
Seguindo o fluxo do humano mar
Explodindo esquecimentos e implodindo amarguras
Meu rosto é folião
Brincante feito de pedaços espalhados por aí
Como confete caído no chão e recolhido pelas mãos das crianças
Meu rosto é multidão
Marcilene deixou o tempo chegar sem apressá-lo ou retrasá-lo. Furou uma onda da praia sem a ânsia dos 70 verões passados.
“Bem-vinda de volta, vontade de sol!”
Finalmente achou tudo o que viveu e que ainda viveria memorável e inesquecível.
Um verão inesquecível
Ilustrações: Mônica Ventura
Fotonovela
Por Luciany Aparecida
parece que quando o verão chega
a vida é iluminada por uma áurea de ficção
em 1984, eu tinha dois anos
e minha tia me vestiu de escritora
naquele verão inesquecível, ela recebeu uma câmera fotográfica,
que havia pedido numa revista de fotonovelas,
a estação acendia o mundo e,
com aquele maquinário, titia registrou o meu futuro
talvez, esse período mais iluminado do ano faça isso: abrace, como um tempo espiralar, o presente, o passado e o futuro, fazendo parecer simples toda revelação
em nossas férias, minha tia lia fotonovelas e fazia retratos,
revelar era outro trânsito,
(os negativos seguiam pelos correios até a zona franca de Manaus e regressavam imagens em outra estação)
recebíamos em casa os registros da saudade
ela já havia voltado a partir para São Paulo
nós, no Charco, na Bahia, no vale do Rio Jiquiriçá,
ficávamos com a memória de sua presença
parece que, para uma família de migrantes,
todo verão ilumina, mas faz chorar
voltar (de um verão inesquecível)
é palmilhar o reencontro com uma casa estrangeira
esse sentimento de reinvenção existencial pode ter um efeito metaforizado pela aparição de uma cascavel e no exercício da escrita literária como uma troca de peles
cobras habitam a própria pele, por isso realizam sistemáticas trocas, a cascavel tem a peculiaridade de não abandonar de vez toda sua antiga morada,
parte do passado ela deixa embolado na cauda, acúmulo de pele que
vai gerando um chocalho, que fica no seu corpo como marca principal de sua espécie
cientistas afirmam que os chocalhos, dessa cobra americana, são (anúncios de sua presença) para evitar (assustar) possíveis confrontos
escrever literatura pode ser viver a experiência de uma dolorosa troca de peles
por isso foi significativo a visão da cascavel, pois aprendi que posso transitar entre as estações, pelas sombras, ouvindo o ecoar do verão.
e são imagens desse trânsito o que posso oferecer a uma literatura brasileira para a qual estou (chegando) com minha nova de tão velha sina (ser caminhante de livros).
mas agora, parece mesmo que o verão vai começar e que é chegado o tempo de brotar em si, renascendo para novos registros.
2 Semanas, 3 Horas, 2 Minutos e 23 Segundos
Ilustrações: Mônica Ventura
2 Semanas, 3 Horas, 2 Minutos e 23 Segundos
Por Bárbara Paz
Eu tinha sono, estava muito cansada. Vivia dormindo pelos cantos.
Nunca fui um ser humano que abraçasse o sentimento das relações online. Sempre fui do toque. Do olho no olho. Da fala. Da palavra, do poema. Dos silêncios.
Mas eu estava fraca, pois era um tempo onde não existiam mais humanos pelas ruas. Só em aparelhos – tudo parecia fazer parte de um filme de ficção científica. Ou melhor, futurista. Feito Barbarella. Sem corpos. Só pílulas.
— Eu tenho que parar de amar! Eu tenho que parar de sentir! Eu tenho que parar!
Visto minhas botas, minha calça de couro e meu sobretudo vintage – dele não abro mão.
—É verão!
Pois… Mas dentro de mima temperatura é sempre invernal. Bagunço o cabelo, passo meu rímel e abro a porta. O Brooklyn fica lindo no entardecer, o sol está se pondo.
Não tem ninguém nas ruas. Me lembro que estou cansada. Sigo sem rumo em direção ao metrô. Não sei para onde ir… mas caminho. Caminho… Paro num bar – Toca Dylan. Bebo um vinho (tinto).
Por um segundo, sinto o verão chegar, atrás de mim.
Não entendia o que ele falava. Dedilhou no ar algumas notas… como se fosse árabe… murmurou um choro. Bonito. Triste. Não me olhou. Também não me mexi.
Hoje é dia de Cristo.
Sempre fui católica, mas nesse verão resolvi ser ortodoxa. Ele tinha olhos fundos e uma boca carnuda. Não falava a minha língua. E ainda não me olhava.
Vestia uma camiseta preta do Sex Pistols e era bem feminino. Calça justa e uma bota de couro. Hum, me lembrava alguém…
“Pensei que o verão não chegasse em New York.”
Mas quando me vi eu já estava deitada, nua, sob o Sol de Manhattan. E o mel de Honeyland que escorria pelo colchão. Sim, o mel daquele filme, sabe aquele documentário belíssimo indicado ao Oscar que se passa na Macedônia? Onde se cultiva mel nas montanhas do norte… Há muito mel, o melhor.
O Macedônio me deu na boca o gosto daquelas abelhas… e ainda cantava. Fez um concerto só para mim. A voz dele era tão linda que ecoava por todo East e por todo West. Todos acordaram nas ruas. Fizeram um minuto de silêncio. Sua voz era como um canto bíblico.
Escutei meu riso e meu gemido. Já tinham se passado 8 horas desde a primeira taça de vinho. E eu coberta de abelhas. Não foi um verão comum. Durou 2 semanas, 3 horas, 2 minutos e 23 segundos.
O sino da igreja tocou exato às 6 da manhã do dia 7 de janeiro. Eu abri a porta só de botas e o mel que escorria sem cessar pelo meu corpo. Olhei o tempo. Olhei o céu, olhei a vida… Tinha tantos pássaros que pousavam em mim… tantas flores que nasciam dos meus pés…
Eu já não estava tão cansada. Na verdade não lembrava mais meu nome. Nem o mapa, nem onde ficava esse país.
“Quero que alguém me fale sobre a mensagem das águas nos nossos corpos, sobre o ar de ontem.”
Desde então aprendi que é preciso abrir a porta, comer favos e escutar a música que vem de outros tempos.
Hoje sonhei com as montanhas.
Me deu vontade de ver qual era a temperatura na Macedônia.
Era verão. Junho. Quente. Muito quente.
Um país olhando para a Grécia. Pensei no figurino, e se as abelhas me vestiriam novamente.
Comprei a passagem. Coloquei o pote de mel vazio na mala. E com minhas botas, firmes nos pés, subi as montanhas.
O resto é silêncio.
Ontem chegou pelo correio um texto do poeta macedônio Blazhe Koneski, dos anos 1960:
“Kada ljubav dođe”

Кога љубовта дојде,
се разбудив од сон.
Веќе не беше животот
како што беше претходно.
Го сретнав твојот поглед
и ми се расипа светот.
Ти беше настан и просторот беше претворен во време.
Ти беше и не беше,
и во тоа беше сè.
Ти беше и не беше,
и бев среќен.
“Quando o amor chega”
Quando o amor chega,
acordei de um sonho.
Já não era mais a vida como antes era.
Encontrei o teu olhar
e o meu mundo se despedaçou.
Tu foste um evento e o espaço se transformou em tempo.
Tu foste e não foste,
e nisso estava tudo.
Tu foste e não foste,
e eu fui feliz.

Um verão inesquecível
Ilustrações: Mônica Ventura
Amante Insuspeita
Por Betina Anton
Durante muito tempo tive a sensação de que a vida só era vivida de verdade no verão. Era a apoteose, o prêmio pelo qual eu esperava o ano inteiro. Calendário à parte, o verão começava para mim quando eu chegava a Santa Catarina. Isso acontecia em algum momento antes do Natal. Passava a melhor época de todas num apartamento de frente para o mar, com a minha família e uma vista que se estendia até o horizonte.
Mas, primeiro, tinha que se limpar tudo que passou o ano inteiro trancado. Lavar todos os pratos, a enorme varanda, esfregar com escova o carpete de pelo curto. Sim, nas décadas de 1980 e 1990 se usava carpete mesmo na praia. O Natal era um parênteses nesse crescendo de alegria e felicidade. O grande divisor de águas, o marco que fincava a verdadeira chegada do verão era o réveillon. Milhares de pessoas vestidas de branco enchiam a praia, esperavam a chegada do ano com flores e velas. Assistíamos aos preparos lá de cima, do vigésimo andar, como quem observa um formigueiro. Quando o ano já tinha virado, descíamos para a praia para ver de perto aquele espetáculo humano e, claro, pular as sete ondinhas. Passado o dia 31, o verão estava a todo vapor.
No café da manhã se tomava decisões importantes do dia: frequentar a praia logo em frente, se aprimorar no Morey Boogie – como todo mundo então chamava o bodyboard – ou então partir para uma excursão mais afastada, pegando a BR-116 rumo a Bombinhas, um lugar de águas cristalinas. Se era cedo suficiente, todos logo se animavam. Eu apanhava uma roupa reserva e muitos gibis para poder ler debaixo do guarda-sol. O trânsito carregado, muitas vezes parava, e tinha que ter paciência. Valia a pena o esforço. Passaríamos um dia inteiro na praia… na praia. Sem casa de apoio, nada. Nós, a areia, o mar e o céu.
Meu pai era “muito moderno” e passava uma faixa de Noskote fator oito no meu nariz. Normalmente, depois desse dia inteiro sob os raios fortes, voltava com as costas descascando. Tudo muito normal naquela época. Com a pele branquíssima, uma herança do meu bisavô que veio da Letônia, sou uma amante insuspeita do verão. Uma verdadeira rata de praia que ninguém diria. Ou para atualizar os termos, praticamente um Olaf, o bonequinho de neve da Frozen, que ama o verão, mas que por motivos óbvios não deveria. Não tava nem aí.
Debaixo de sol escaldante, eu adorava entrar na água transparente, boiar e disputar um lugar no colo da minha mãe. Uma espécie de volta ao útero: agarrar quem nos trouxe ao mundo e ficar abraçada sentindo a leveza produzida pela força do empuxo.
Mas meu pai sempre chegava com a ação e sua grande meta era que uma das quatro filhas conseguisse pescar um peixe. Ganhamos redes como aquelas de pegar borboletas e partíamos para as pedras no canto da praia. Era lá que os cardumes se concentravam. Parecia extremamente fácil pescar e quem conseguisse capturar um peixe ainda levava um picolé de prêmio. Estava ali a prova de que as coisas nem sempre são o que parecem. O saldo de vários verões foi zero peixes. Então me conformei em apenas admirar aquelas criaturas coloridas nadando em seu habitat natural.
O irônico é que foi também em Bombinhas que meu pai nos convenceu de que peixe é um prato delicioso. Nada de restaurantes caros – mesmo porque nem restaurante tinha ali. Comi meu primeiro peixe feito na brasa pelo guardinha do estacionamento, a quem meu pai chamava de “chefe”. Gostava da maneira simples com que ele lidava com as pessoas e de seu espírito de aventuras sempre aguçado. Tinha uma espécie de radar para a vida que o levava a experimentar tudo e todos os lugares que pudessem ser interessantes.
Seguindo esse espírito e a máxima de que “não queria criar filha fresca”, me deu de presente de 7 anos um passeio de caiaque em mar aberto. Fomos só nós dois. Tudo começou de forma tranquila, atravessamos as ondas e logo estávamos longe da praia. Foi aí que meu boné caiu na água. Tentei fisgar como remo, mas meu pai me impediu, dizendo que isso poderia me fazer virar. Ele então pegou o remo e tentou alcançar o boné. Imediatamente, sua premonição se tornou realidade: o caiaque tombou e ele ficou entalado de cabeça para baixo.
A corrente marítima foi me levando embora, para longe. Por sorte, notei que havia um apito amarrado ao meu colete e soprei com toda a força dos meus pulmões. Três argentinos apareceram do nada em seus caiaques. Ao contrário de nós, eram hábeis. Dois deles desviraram meu pai já sem fôlego e o terceiro foi atrás de mim. Estávamos salvos e com aquela sensação de que tinha sido por pouco. Na areia, minha mãe se recuperava depois de ter acreditado na minha morte como certa. Um pequeno susto, nada demais.
A volta para casa depois de um dia intenso costumava ser demorada por causa do engarrafamento e era temperada por uma sensação de corpo salgado. Ninguém tomava uma ducha antes de entrar no carro. Já era um luxo poder lavar os pés cheios de areia. Mesmo assim, voltávamos felizes.
Em dias sem grandes aventuras, como uma ida a Bombinhas, contentávamos com a rotina praieira básica. Recebemos uma doação de uma pilha de revistas Capricho de uma amiga da minha irmã mais velha. Luana Piovani era a grande estrela daquelas páginas, que ensinavam as adolescentes tantas coisas sobre o mundo. Na realidade, o que eu amava mesmo era ler. Não apenas revistas e gibis. Livros mesmo.
O retrato de Dorian Gray, As minas do rei Salomão, O médico e o Monstro e tantos outros clássicos da literatura que me faziam me perder no tempo e no espaço. Outro “clássico” era assistir com minhas irmãs ao filme Tubarão, de Steven Spielberg, com aquela musiquinha que marcou época, e depois ir direto pro mar para passar medo. Era divertidíssimo. Uma variação desse programa era ver Alligator e ir para piscina.
Só quem assistiu sabe a coragem que se precisa ter para ficar perto de um ralo depois de um filme desses. Às vezes meu pai surgia no meio da tarde para quebrar a rotina praieira com uma ida a sorveteria. Um grande momento. Sempre me achei muito diferente das minhas irmãs, e enquanto todo mundo se esbaldava no flocos e no chocolate, meu sabor preferido era o pistache. Décadas depois vim a descobrir que era também o favorito da minha mãe e da minha filha. Certamente, deve haver algo a mais aí que apenas um gosto.
Quando a adolescência avançou, os programas mudaram. A famosa “Barra Sul”, onde hoje o Neymar tem seu quadriplex, era o lugar das baladas que terminavam com o clarear do dia. As irmãs e a turma do prédio já não bastavam, e as amigas de São Paulo vinham conhecer aquele nosso universo. Os argentinos brotavam de todos os lugares. Eram simpáticos. E uma atração para jovens meninas fascinadas pelo exotismo dos rapazes estrangeiros. Apesar das baladas e dos argentinos, meu programa favorito ainda era passar horas lendo numa sombra, enquanto sentia a vibração e energia do verão.
Quando chegou o vestibular, me aconselhavam que eu deveria fazer o que mais gostava na vida, assim me sairia bem. Mas como revelar que o que mais gostava era ficar de maiô, lendo na praia ou ao lado da piscina, com o sol iluminando tudo ao meu redor? Não me parecia algo com que se podia ganhar a vida. Então pensei que era melhor inventar algo mais rentável, ou sociável. Que tal jornalismo? Mais apropriado.
A verdade é que esses verões maravilhosos sempre ficaram dentro de mim e definiram quem eu sou. De uma forma ou de outra sempre tentei reproduzir esses momentos. Até passei a apreciar novas estações: o céu azul de São Paulo no outono, o tempo firme em Machu Picchu no inverno ou as primeiras folhas da primavera na Europa. Mas os verões, aqueles verões, são inigualáveis. Percebi que sempre tentei voltar no tempo e trazer aquelas sensações de volta. No entanto, são irreproduzíveis. Elas ficaram apenas na memória e são o parâmetro para a minha felicidade.
Um verão inesquecível
Ilustrações: Mônica Ventura
Os Leões
Por Mariana Salomão Carrara
No final de 1998, completei 12 anos, menstruei pela primeira vez, e o meu corpo ficou ainda mais inadequado para o verão. Quando eu me levantava, a sensação do fluxo periclitante avolumando uma nova espécie de fralda me fazia sentar de novo, imediatamente. Foi uma semana inteira de cadeira em cadeira. A cólica também veio compor essa ameaça mensal, uma ameaça que vem cumprindo há 25 anos o que me prometeu naquele verão. Da janela assistia às crianças correndo com a bola e outras saltando na água, gestos impensáveis pra mim. Tentava ouvir o que diziam, que gracejos faziam, quem seria a vítima da vez – de quem riam quando eu não estava? O meu corpo vasto além de tudo extravasava os seus limites, e eu sentia muito nojo.
Fiz as contas de quantas semanas por ano, e então quantas semanas na vida eu viveria assim suspensa, recolhida à minha torre, tomando banho cada vez que fosse fazer xixi, lá fora muito sol e calor e os outros pulavam tão limpos na piscina. O tempo àquela altura ainda passava devagar, mas já era exíguo, não seriam tantas as semanas que me restariam de vida, uma vez retiradas todas as semanas de menstruação – isso porque calculei apenas até os 40 anos, que era a idade que eu entendia que algumas revistas indicavam como menopausa enquanto me ofereciam testes que eu sempre perdia. Você tem lugar no coração dele?
Tentei imaginar uma forma de fazer com que todas as mulheres do mundo menstruassem juntas e, portanto, se recolhessem ao mesmo tempo – ou pelo menos todas as meninas do meu prédio. Assim nenhuma tomaria o meu lugar – se houvesse um lugar – no coração esquivo e dissimulado de um menino durante os 2.352 dias em que meu corpo ficaria especialmente repulsivo. Hoje o hábito e a tecnologia de tecidos e coletores me deixam quase esquecer as implicações externas dessas semanas, mas não sei se quero saltar na piscina ou correr atrás da bola. Os sete dias não são nojentos, mas dão mais calor e exaustão, e às vezes eu queria ser a menina sentada na janela, recolhida na torre, longe do trabalho.
Talvez ela estivesse certa, eu precisava daqueles sete dias pra mim, por mais que fosse perder o espaço no coração de algum menino. Naquele verão escrevi um continho que tenho até hoje, em que uma garota corria pela floresta, rindo, fugindo de outra criança, um vizinho que sempre a perseguia, mas era uma fuga boa, era um medo de mentira, era a vontade do medo e da fuga. Ao virar por entre as árvores, ela de repente estava cercada de leões. Ficou parada ofegante, sozinha com os animais. Eles comeram tudo que ela tinha vivido até então, e foram embora. Ela voltou devagar, diferente. Depois dos leões, nem tinha mais sentido correr do vizinho.
Um verão inesquecível
Ilustrações: Mônica Ventura
Sobre Amaré
Por Verena Smit
Era janeiro no Rio de Janeiro, começo dos anos 2000.
Aceitei fazer assistência de direção de arte para um curta-metragem.
Passava os dias de chinelo, coberta de tinta e olhando para o Pão de Açúcar.
Guardo fotografias mentais dos aviões subindo e descendo do aeroporto Santos Dumont.
Lembro do bando de pássaros se movendo em forma de V naquele lindo céu azul e daquela formação rochosa íngreme e pontiaguda que se encaixava perfeitamente na janela da cobertura abandonada. Eram imagens perfeitas.
Assisti aos mais lindos pores do sol.
Dividia uma kitnet em Copacabana com diversas pessoas e comia todo dia um PF com arroz, feijão, frango e macarrão. Tudo empilhado de forma magistral e adornado por uma embalagem de alumínio.
De dia roubávamos areia da praia do Recreio para construir nossa ilha de mentira e de noite íamos na Cinelândia tomar cerveja em bares mais sujos que nossos pés.
Sonhava com um mar de celofane e com aquele coqueiro onde as folhas eram contas de pérolas e pedras coloridas.
Deitava no sofá-cama e ouvia meus batimentos cardíacos altos e fortes, eles gritavam uma aterrorizante sensação de liberdade. Não tinha medo de nada.
No dia que me deram folga fui no Museu Nacional de Belas Artes, nosso Louvre Tupiniquim. Mas eu não queria ver Victor Meirelles ou Pedro Américo, queria era ver o Ilo Krugli interpretando aquele velho marinheiro solitário que vivia no alto daquele prédio abraçado pela Baía de Guanabara sonhando com a sereia que ele um dia havia amado.
“Sobre a maré” era sobre amor e “Sobre a maré” me fez amar o set de cinema como nunca. Depois disso todos os outros sets foram chatos, todos os outros filmes medíocres e eu voltei a sentir medo.
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A convite de Vogue, Lorena Portela, Eliana Alves Cruz, Luciany Aparecida, Bárbara Paz, Betina Anton, Mariana Salomão Carrara e Verena Smit trazem um presente literário para inspirar os dias de calor Morangos e Cerejas
por Lorena Portela
Dizem os registros que a Praça da Figueira, na região da Baixa de Lisboa, foi criada lá por 1775 por causa dos muitos vendedores ambulantes da época. Bagunça demais, a cidade precisava de um mercado central e Marquês de Pombal resolveu concentrar tudo ali, mas nem tinha esse nome, nem era como é agora, claro. Hoje em dia os ambulantes, não os mesmos do século 18, continuam lá e dividem o tumulto com guest houses, hotéis, lojas feias, estações de metrô, ônibus, tuk-tuks, táxis, motoristas de Uber. Turistas, centenas, milhares. O largo está a uma quadra do Rossio, a oito curtas quadras do Rio Tejo, tem vista para o Castelo de São Jorge e, motivo pelo qual escrevo aqui, fica a duas quadras do primeiro apartamento em que morei na capital portuguesa.
Muitos anos depois da praça ter sido criada, foi ali que eu e minha mãe começamos o que seria o meu primeiro verão oficial. Porque eu nasci no Ceará e lá não tem verão. Quer dizer, tem, só tem, e justamente por isso não tem. Em Fortaleza as temperaturas variam, o ano inteiro, entre 25 e 33 graus, sem trégua, mesmo com chuva. Sem mudanças trimestrais ou conceito de estação. Eu havia trocado Fortaleza por Lisboa no início do outono de 2015. Ou seja, fora a estação corrente, vivi um inverno e uma primavera até receber a visita da minha mãe bem na época em que a Europa vira o lugar mais charmoso do mundo.
Alheias à multidão de turistas e – culpa de agosto – aos termômetros marcando muitos graus acima do agradável, minha mãe e eu sentamos num dos bancos em frente ao Mercado da Figueira para comer morangos e cerejas. Em muito tempo, éramos só nós duas e mais ninguém. O calor e a luz imbatível de Lisboa chegavam marcando na pele algumas das mudanças definitivas da minha vida, as que dividi com minha mãe ali no meio da muvuca: eu havia conhecido outras pessoas. Havia me apaixonado. Tinha um novo trabalho. Uma cidade que amava.
Eu era outra pessoa. Não voltaria para retomar em nada a vida que havia deixado no lugar em que nasci. Minha mãe ouvia a sequência dessas frases, com a boca cheia de morangos. E de cerejas. São enormes as cerejas no verão. Os morangos chegam a brilhar. Minha mãe ouvia, comia, e o verão fazia o resto. Nos demais dias, fomos à praia pegando o trem com cheiro de sovaco que faz a Linha de Cascais. Nadamos juntas no mar gelado das Avencas, ouvimos músicas dividindo o mesmo fone de ouvido, dormimos na mesma cama do apartamento da Rua dos Fanqueiros, amparadas por um ventilador que não nos deixava morrer de calor por pouco, muito pouco. Jantamos no Largo dos Trigueiros, matamos a sede com vinho verde. Andamos a pé numa cidade quente, ensolarada, que escurecia só às dez da noite. Foi a primeira vez em que eu soube o que verão significava. A melhor estação do ano coroando o fim da vida que eu não pegaria de volta. O verão da Praça da Figueira, dos morangos e das cerejas, e da minha mãe e eu.
Um verão inesquecível
Ilustrações: Mônica Ventura
Os Verões De Marcilene
Por Eliana Alves Cruz
Marcilene olhou-se no espelho e disse: “A hora é essa!”. A cara toda purpurinada e o corpo apertado dentro de um maiô de paetês dourados, ela se jogava desde janeiro na temporada pré-carnavalesca da cidade mais carnavalesca do planeta assim que o sol começava a esquentar, sempre confiante de que aquele seria não mais um verão, mas “o” verão inesquecível.
O ano era 2020 e como sempre ela não queria deixar a vida para depois. Achava-se jovem, bela, cheia de vontades de tudo. Jogou-se grandemente no fluxo lindo e incessante de outras caras purpurinadas e outros corpos em maiôs cintilantes, roupas de marinheiro, pirata, pierrô, sereia, bailarina, anjo. A sua era apenas mais uma cara na multidão suada e feliz. Seguiu todos os blocos que alcançou, em todos os sambas que achou, bebeu em todos os bares que pelo caminho topou. Beijar? Beijou, beijou sim! Marcilene era a imagem da juventude, da alegria e da felicidade. Choveu. Ela foi assim mesmo.
“A chuva no Carnaval é maravilhosa. Ela refresca e deixa na rua só os fortes, só os bons, só quem é folião de verdade.” Aquele verão seria mesmo memorável. Tinha que ser, pensava. Nunca se sabe quando será o último, dizia. Ele seria mesmo diferente de todos os outros. No segundo dia de folia, o corpo de Marcilene disse: “Basta!”. Uma tosse insuportável, uma falta de ar… que estranho, não sentia mais o gosto e o odor das coisas. Espantou os pensamentos: “Ah, gripe às vezes faz isso”.
Cansada de mandar mensagens ignoradas, a amiga Jussara ligou.
“Marci, …dá uma olhada nisso. Vai ao médico, mulher… não, Marcilene, pode não ser só uma gripe. Já deu uma olhada nas notícias? …Não, eu não sou hipocondríaca e é perigoso sim, Marcilene. Um vírus! ”
Foi parar no hospital com suspeita de pneumonia, tomou antibióticos, melhorou, mas saiu de lá sem saber bem o que era aquilo. Até que o que era desconhecido e distante foi chegando cada vez mais perto, perto demais. Entrou pelas vias respiratórias do planeta e fez o ano seguir sem nenhum confete e serpentina. O sol esfriou e as almas também. Um gelo glacial com odor de fim pairou por toda parte.
Não acreditava que tinha sido empurrada contra a vontade porta adentro. Arrastou-se por todos os cômodos da casa olhando a vida pela tela… da TV, do celular, do notebook… vendo tudo pelas janelas. Foi duro conseguir chegar ao verão seguinte e continuar com aquela vontade de não adiar a vida. Pensou: “Nunca mais haverá um verão como este… ou será que nunca mais haverá verão?”.
Reagiu. Trabalhou. Nunca deixaria de trabalhar! Fez pães, cultivou plantas, fez dança, ioga, alongamento. Fez aula de crochê. Fez vídeos motivacionais. Viu séries, viu filmes, pintou. Leu livros há muito adiados. Leu livros recém-descobertos. Ouviu suas músicas favoritas dos seus artistas prediletos. Descobriu outras vozes que entraram na lista de preferidas. Atualizou- se das notícias. Começou um curso de idiomas… on-line. Conversou com velhos amigos… on-line. Recebeu conselhos da família… on-line. Fez terapia… on-line.
Cansou. Deitou na cama e olhou o teto. Planejou. “Vou sair por aquela porta, sem máscara, pelada e vou mergulhar na praia.” Olhou para fora. Pelado, o vizinho regava as plantas na varanda. “Visão do inferno!” Fechou a cortina e os olhos. Queria escutar um som que lhe trouxesse o canto das cigarras dos dias mornos de sua infância, quando ouvia a algazarra que os bichos faziam prenunciando o amarelo do sol a chegar em breve. Depois cataria suas carcaças vazias grudadas pelas folhas antes de espalhá-las correndo pelo parque… mas não tinha cigarra, não tinha canto, não tinha parque. Jussara, mais uma vez preocupada com a falta de respostas da amiga para as mensagens, ligou. “Marci… você é ainda jovem, bonita, cheia de possibilidades de tudo.”
Não adiantava o que dissessem. Sentia seu tempo escoando, qualquer possibilidade de beleza descendo ralo abaixo toda manhã e com ânimo esgotado, esmagado pelo temor, pela falta de concentração, pela lembrança frágil, pela queda capilar, pelas unhas nunca mais feitas, pelas cabeças que negavam os fatos, a ciência, a existência. Pelas mãos que produziam ilusões criminosas e, enfim, pelas milhões de respirações que paravam para sempre em algum leito, em alguma parte de algum coração partido. As horas estavam contadas. Pela primeira vez ouvia o badalar deste relógio. Havia algo que queria. Sentia vontade de voltar desejar imaginar uma chance de algo que fosse positivamente inesquecível, pois achava mesmo que estava vivendo um momento único e impossível de ser apagado da memória, mas pelo seu caráter nefasto. Mergulhada num instante de treva único há dois verões. Dois anos?!
Foi como o som de um despertador, um galo madrugador fora de hora, um raio de sol anunciando a nova estação, que entrou pela janela da TV um bem-te-vi anunciando uma chance de férias do trabalho brutal que era não ter esperança: Vacina. A número um, a número dois, a número três… enfim chegou 2023. Marcilene olhou-se no espelho e disse: “A hora é essa!”. Pisou na calçada como o território novo a ser conquistado. Venceu o quarteirão, a avenida, o bairro. Olhou o céu sem nuvem, reclamou do calor. Não foi de carro ou de táxi. Foi a pé, de ônibus, desceu ao metrô. Caminhou pela areia, molhou a ponta dos pés. Queria amar. Achava que já era hora. Deixou a vontade voltar.
Viu o bloco pré-carnavalesco passar. Todos sorriam para ela com benevolência. Saberiam eles que ela esteve ali há poucos anos, com seu maiô dourado? Jussara certamente estaria lhe mandando mensagens que ela não leria procurando por ela, preocupando-se com ela. Em breve ligaria. Sorriu. Brindou a si mesma escrevendo na areia antes de decidir seguir os que antecipavam o Carnaval aproveitando desde já o calor que se anunciava:
De máscaras feitas de carne
Que suam alívios em risos por tempos guardados
Meu rosto é solidão
Mergulhada nas faces do mundo
Sem santos ou demônios fantasiados
Apenas um cansaço desaguado no asfalto
Meu rosto é procissão
Seguindo o fluxo do humano mar
Explodindo esquecimentos e implodindo amarguras
Meu rosto é folião
Brincante feito de pedaços espalhados por aí
Como confete caído no chão e recolhido pelas mãos das crianças
Meu rosto é multidão
Marcilene deixou o tempo chegar sem apressá-lo ou retrasá-lo. Furou uma onda da praia sem a ânsia dos 70 verões passados.
“Bem-vinda de volta, vontade de sol!”
Finalmente achou tudo o que viveu e que ainda viveria memorável e inesquecível.
Um verão inesquecível
Ilustrações: Mônica Ventura
Fotonovela
Por Luciany Aparecida
parece que quando o verão chega
a vida é iluminada por uma áurea de ficção
em 1984, eu tinha dois anos
e minha tia me vestiu de escritora
naquele verão inesquecível, ela recebeu uma câmera fotográfica,
que havia pedido numa revista de fotonovelas,
a estação acendia o mundo e,
com aquele maquinário, titia registrou o meu futuro
talvez, esse período mais iluminado do ano faça isso: abrace, como um tempo espiralar, o presente, o passado e o futuro, fazendo parecer simples toda revelação
em nossas férias, minha tia lia fotonovelas e fazia retratos,
revelar era outro trânsito,
(os negativos seguiam pelos correios até a zona franca de Manaus e regressavam imagens em outra estação)
recebíamos em casa os registros da saudade
ela já havia voltado a partir para São Paulo
nós, no Charco, na Bahia, no vale do Rio Jiquiriçá,
ficávamos com a memória de sua presença
parece que, para uma família de migrantes,
todo verão ilumina, mas faz chorar
voltar (de um verão inesquecível)
é palmilhar o reencontro com uma casa estrangeira
esse sentimento de reinvenção existencial pode ter um efeito metaforizado pela aparição de uma cascavel e no exercício da escrita literária como uma troca de peles
cobras habitam a própria pele, por isso realizam sistemáticas trocas, a cascavel tem a peculiaridade de não abandonar de vez toda sua antiga morada,
parte do passado ela deixa embolado na cauda, acúmulo de pele que
vai gerando um chocalho, que fica no seu corpo como marca principal de sua espécie
cientistas afirmam que os chocalhos, dessa cobra americana, são (anúncios de sua presença) para evitar (assustar) possíveis confrontos
escrever literatura pode ser viver a experiência de uma dolorosa troca de peles
por isso foi significativo a visão da cascavel, pois aprendi que posso transitar entre as estações, pelas sombras, ouvindo o ecoar do verão.
e são imagens desse trânsito o que posso oferecer a uma literatura brasileira para a qual estou (chegando) com minha nova de tão velha sina (ser caminhante de livros).
mas agora, parece mesmo que o verão vai começar e que é chegado o tempo de brotar em si, renascendo para novos registros.
2 Semanas, 3 Horas, 2 Minutos e 23 Segundos
Ilustrações: Mônica Ventura
2 Semanas, 3 Horas, 2 Minutos e 23 Segundos
Por Bárbara Paz
Eu tinha sono, estava muito cansada. Vivia dormindo pelos cantos.
Nunca fui um ser humano que abraçasse o sentimento das relações online. Sempre fui do toque. Do olho no olho. Da fala. Da palavra, do poema. Dos silêncios.
Mas eu estava fraca, pois era um tempo onde não existiam mais humanos pelas ruas. Só em aparelhos – tudo parecia fazer parte de um filme de ficção científica. Ou melhor, futurista. Feito Barbarella. Sem corpos. Só pílulas.
— Eu tenho que parar de amar! Eu tenho que parar de sentir! Eu tenho que parar!
Visto minhas botas, minha calça de couro e meu sobretudo vintage – dele não abro mão.
—É verão!
Pois… Mas dentro de mima temperatura é sempre invernal. Bagunço o cabelo, passo meu rímel e abro a porta. O Brooklyn fica lindo no entardecer, o sol está se pondo.
Não tem ninguém nas ruas. Me lembro que estou cansada. Sigo sem rumo em direção ao metrô. Não sei para onde ir… mas caminho. Caminho… Paro num bar – Toca Dylan. Bebo um vinho (tinto).
Por um segundo, sinto o verão chegar, atrás de mim.
Não entendia o que ele falava. Dedilhou no ar algumas notas… como se fosse árabe… murmurou um choro. Bonito. Triste. Não me olhou. Também não me mexi.
Hoje é dia de Cristo.
Sempre fui católica, mas nesse verão resolvi ser ortodoxa. Ele tinha olhos fundos e uma boca carnuda. Não falava a minha língua. E ainda não me olhava.
Vestia uma camiseta preta do Sex Pistols e era bem feminino. Calça justa e uma bota de couro. Hum, me lembrava alguém…
“Pensei que o verão não chegasse em New York.”
Mas quando me vi eu já estava deitada, nua, sob o Sol de Manhattan. E o mel de Honeyland que escorria pelo colchão. Sim, o mel daquele filme, sabe aquele documentário belíssimo indicado ao Oscar que se passa na Macedônia? Onde se cultiva mel nas montanhas do norte… Há muito mel, o melhor.
O Macedônio me deu na boca o gosto daquelas abelhas… e ainda cantava. Fez um concerto só para mim. A voz dele era tão linda que ecoava por todo East e por todo West. Todos acordaram nas ruas. Fizeram um minuto de silêncio. Sua voz era como um canto bíblico.
Escutei meu riso e meu gemido. Já tinham se passado 8 horas desde a primeira taça de vinho. E eu coberta de abelhas. Não foi um verão comum. Durou 2 semanas, 3 horas, 2 minutos e 23 segundos.
O sino da igreja tocou exato às 6 da manhã do dia 7 de janeiro. Eu abri a porta só de botas e o mel que escorria sem cessar pelo meu corpo. Olhei o tempo. Olhei o céu, olhei a vida… Tinha tantos pássaros que pousavam em mim… tantas flores que nasciam dos meus pés…
Eu já não estava tão cansada. Na verdade não lembrava mais meu nome. Nem o mapa, nem onde ficava esse país.
“Quero que alguém me fale sobre a mensagem das águas nos nossos corpos, sobre o ar de ontem.”
Desde então aprendi que é preciso abrir a porta, comer favos e escutar a música que vem de outros tempos.
Hoje sonhei com as montanhas.
Me deu vontade de ver qual era a temperatura na Macedônia.
Era verão. Junho. Quente. Muito quente.
Um país olhando para a Grécia. Pensei no figurino, e se as abelhas me vestiriam novamente.
Comprei a passagem. Coloquei o pote de mel vazio na mala. E com minhas botas, firmes nos pés, subi as montanhas.
O resto é silêncio.
Ontem chegou pelo correio um texto do poeta macedônio Blazhe Koneski, dos anos 1960:
“Kada ljubav dođe”

Кога љубовта дојде,
се разбудив од сон.
Веќе не беше животот
како што беше претходно.
Го сретнав твојот поглед
и ми се расипа светот.
Ти беше настан и просторот беше претворен во време.
Ти беше и не беше,
и во тоа беше сè.
Ти беше и не беше,
и бев среќен.
“Quando o amor chega”
Quando o amor chega,
acordei de um sonho.
Já não era mais a vida como antes era.
Encontrei o teu olhar
e o meu mundo se despedaçou.
Tu foste um evento e o espaço se transformou em tempo.
Tu foste e não foste,
e nisso estava tudo.
Tu foste e não foste,
e eu fui feliz.

Um verão inesquecível
Ilustrações: Mônica Ventura
Amante Insuspeita
Por Betina Anton
Durante muito tempo tive a sensação de que a vida só era vivida de verdade no verão. Era a apoteose, o prêmio pelo qual eu esperava o ano inteiro. Calendário à parte, o verão começava para mim quando eu chegava a Santa Catarina. Isso acontecia em algum momento antes do Natal. Passava a melhor época de todas num apartamento de frente para o mar, com a minha família e uma vista que se estendia até o horizonte.
Mas, primeiro, tinha que se limpar tudo que passou o ano inteiro trancado. Lavar todos os pratos, a enorme varanda, esfregar com escova o carpete de pelo curto. Sim, nas décadas de 1980 e 1990 se usava carpete mesmo na praia. O Natal era um parênteses nesse crescendo de alegria e felicidade. O grande divisor de águas, o marco que fincava a verdadeira chegada do verão era o réveillon. Milhares de pessoas vestidas de branco enchiam a praia, esperavam a chegada do ano com flores e velas. Assistíamos aos preparos lá de cima, do vigésimo andar, como quem observa um formigueiro. Quando o ano já tinha virado, descíamos para a praia para ver de perto aquele espetáculo humano e, claro, pular as sete ondinhas. Passado o dia 31, o verão estava a todo vapor.
No café da manhã se tomava decisões importantes do dia: frequentar a praia logo em frente, se aprimorar no Morey Boogie – como todo mundo então chamava o bodyboard – ou então partir para uma excursão mais afastada, pegando a BR-116 rumo a Bombinhas, um lugar de águas cristalinas. Se era cedo suficiente, todos logo se animavam. Eu apanhava uma roupa reserva e muitos gibis para poder ler debaixo do guarda-sol. O trânsito carregado, muitas vezes parava, e tinha que ter paciência. Valia a pena o esforço. Passaríamos um dia inteiro na praia… na praia. Sem casa de apoio, nada. Nós, a areia, o mar e o céu.
Meu pai era “muito moderno” e passava uma faixa de Noskote fator oito no meu nariz. Normalmente, depois desse dia inteiro sob os raios fortes, voltava com as costas descascando. Tudo muito normal naquela época. Com a pele branquíssima, uma herança do meu bisavô que veio da Letônia, sou uma amante insuspeita do verão. Uma verdadeira rata de praia que ninguém diria. Ou para atualizar os termos, praticamente um Olaf, o bonequinho de neve da Frozen, que ama o verão, mas que por motivos óbvios não deveria. Não tava nem aí.
Debaixo de sol escaldante, eu adorava entrar na água transparente, boiar e disputar um lugar no colo da minha mãe. Uma espécie de volta ao útero: agarrar quem nos trouxe ao mundo e ficar abraçada sentindo a leveza produzida pela força do empuxo.
Mas meu pai sempre chegava com a ação e sua grande meta era que uma das quatro filhas conseguisse pescar um peixe. Ganhamos redes como aquelas de pegar borboletas e partíamos para as pedras no canto da praia. Era lá que os cardumes se concentravam. Parecia extremamente fácil pescar e quem conseguisse capturar um peixe ainda levava um picolé de prêmio. Estava ali a prova de que as coisas nem sempre são o que parecem. O saldo de vários verões foi zero peixes. Então me conformei em apenas admirar aquelas criaturas coloridas nadando em seu habitat natural.
O irônico é que foi também em Bombinhas que meu pai nos convenceu de que peixe é um prato delicioso. Nada de restaurantes caros – mesmo porque nem restaurante tinha ali. Comi meu primeiro peixe feito na brasa pelo guardinha do estacionamento, a quem meu pai chamava de “chefe”. Gostava da maneira simples com que ele lidava com as pessoas e de seu espírito de aventuras sempre aguçado. Tinha uma espécie de radar para a vida que o levava a experimentar tudo e todos os lugares que pudessem ser interessantes.
Seguindo esse espírito e a máxima de que “não queria criar filha fresca”, me deu de presente de 7 anos um passeio de caiaque em mar aberto. Fomos só nós dois. Tudo começou de forma tranquila, atravessamos as ondas e logo estávamos longe da praia. Foi aí que meu boné caiu na água. Tentei fisgar como remo, mas meu pai me impediu, dizendo que isso poderia me fazer virar. Ele então pegou o remo e tentou alcançar o boné. Imediatamente, sua premonição se tornou realidade: o caiaque tombou e ele ficou entalado de cabeça para baixo.
A corrente marítima foi me levando embora, para longe. Por sorte, notei que havia um apito amarrado ao meu colete e soprei com toda a força dos meus pulmões. Três argentinos apareceram do nada em seus caiaques. Ao contrário de nós, eram hábeis. Dois deles desviraram meu pai já sem fôlego e o terceiro foi atrás de mim. Estávamos salvos e com aquela sensação de que tinha sido por pouco. Na areia, minha mãe se recuperava depois de ter acreditado na minha morte como certa. Um pequeno susto, nada demais.
A volta para casa depois de um dia intenso costumava ser demorada por causa do engarrafamento e era temperada por uma sensação de corpo salgado. Ninguém tomava uma ducha antes de entrar no carro. Já era um luxo poder lavar os pés cheios de areia. Mesmo assim, voltávamos felizes.
Em dias sem grandes aventuras, como uma ida a Bombinhas, contentávamos com a rotina praieira básica. Recebemos uma doação de uma pilha de revistas Capricho de uma amiga da minha irmã mais velha. Luana Piovani era a grande estrela daquelas páginas, que ensinavam as adolescentes tantas coisas sobre o mundo. Na realidade, o que eu amava mesmo era ler. Não apenas revistas e gibis. Livros mesmo.
O retrato de Dorian Gray, As minas do rei Salomão, O médico e o Monstro e tantos outros clássicos da literatura que me faziam me perder no tempo e no espaço. Outro “clássico” era assistir com minhas irmãs ao filme Tubarão, de Steven Spielberg, com aquela musiquinha que marcou época, e depois ir direto pro mar para passar medo. Era divertidíssimo. Uma variação desse programa era ver Alligator e ir para piscina.
Só quem assistiu sabe a coragem que se precisa ter para ficar perto de um ralo depois de um filme desses. Às vezes meu pai surgia no meio da tarde para quebrar a rotina praieira com uma ida a sorveteria. Um grande momento. Sempre me achei muito diferente das minhas irmãs, e enquanto todo mundo se esbaldava no flocos e no chocolate, meu sabor preferido era o pistache. Décadas depois vim a descobrir que era também o favorito da minha mãe e da minha filha. Certamente, deve haver algo a mais aí que apenas um gosto.
Quando a adolescência avançou, os programas mudaram. A famosa “Barra Sul”, onde hoje o Neymar tem seu quadriplex, era o lugar das baladas que terminavam com o clarear do dia. As irmãs e a turma do prédio já não bastavam, e as amigas de São Paulo vinham conhecer aquele nosso universo. Os argentinos brotavam de todos os lugares. Eram simpáticos. E uma atração para jovens meninas fascinadas pelo exotismo dos rapazes estrangeiros. Apesar das baladas e dos argentinos, meu programa favorito ainda era passar horas lendo numa sombra, enquanto sentia a vibração e energia do verão.
Quando chegou o vestibular, me aconselhavam que eu deveria fazer o que mais gostava na vida, assim me sairia bem. Mas como revelar que o que mais gostava era ficar de maiô, lendo na praia ou ao lado da piscina, com o sol iluminando tudo ao meu redor? Não me parecia algo com que se podia ganhar a vida. Então pensei que era melhor inventar algo mais rentável, ou sociável. Que tal jornalismo? Mais apropriado.
A verdade é que esses verões maravilhosos sempre ficaram dentro de mim e definiram quem eu sou. De uma forma ou de outra sempre tentei reproduzir esses momentos. Até passei a apreciar novas estações: o céu azul de São Paulo no outono, o tempo firme em Machu Picchu no inverno ou as primeiras folhas da primavera na Europa. Mas os verões, aqueles verões, são inigualáveis. Percebi que sempre tentei voltar no tempo e trazer aquelas sensações de volta. No entanto, são irreproduzíveis. Elas ficaram apenas na memória e são o parâmetro para a minha felicidade.
Um verão inesquecível
Ilustrações: Mônica Ventura
Os Leões
Por Mariana Salomão Carrara
No final de 1998, completei 12 anos, menstruei pela primeira vez, e o meu corpo ficou ainda mais inadequado para o verão. Quando eu me levantava, a sensação do fluxo periclitante avolumando uma nova espécie de fralda me fazia sentar de novo, imediatamente. Foi uma semana inteira de cadeira em cadeira. A cólica também veio compor essa ameaça mensal, uma ameaça que vem cumprindo há 25 anos o que me prometeu naquele verão. Da janela assistia às crianças correndo com a bola e outras saltando na água, gestos impensáveis pra mim. Tentava ouvir o que diziam, que gracejos faziam, quem seria a vítima da vez – de quem riam quando eu não estava? O meu corpo vasto além de tudo extravasava os seus limites, e eu sentia muito nojo.
Fiz as contas de quantas semanas por ano, e então quantas semanas na vida eu viveria assim suspensa, recolhida à minha torre, tomando banho cada vez que fosse fazer xixi, lá fora muito sol e calor e os outros pulavam tão limpos na piscina. O tempo àquela altura ainda passava devagar, mas já era exíguo, não seriam tantas as semanas que me restariam de vida, uma vez retiradas todas as semanas de menstruação – isso porque calculei apenas até os 40 anos, que era a idade que eu entendia que algumas revistas indicavam como menopausa enquanto me ofereciam testes que eu sempre perdia. Você tem lugar no coração dele?
Tentei imaginar uma forma de fazer com que todas as mulheres do mundo menstruassem juntas e, portanto, se recolhessem ao mesmo tempo – ou pelo menos todas as meninas do meu prédio. Assim nenhuma tomaria o meu lugar – se houvesse um lugar – no coração esquivo e dissimulado de um menino durante os 2.352 dias em que meu corpo ficaria especialmente repulsivo. Hoje o hábito e a tecnologia de tecidos e coletores me deixam quase esquecer as implicações externas dessas semanas, mas não sei se quero saltar na piscina ou correr atrás da bola. Os sete dias não são nojentos, mas dão mais calor e exaustão, e às vezes eu queria ser a menina sentada na janela, recolhida na torre, longe do trabalho.
Talvez ela estivesse certa, eu precisava daqueles sete dias pra mim, por mais que fosse perder o espaço no coração de algum menino. Naquele verão escrevi um continho que tenho até hoje, em que uma garota corria pela floresta, rindo, fugindo de outra criança, um vizinho que sempre a perseguia, mas era uma fuga boa, era um medo de mentira, era a vontade do medo e da fuga. Ao virar por entre as árvores, ela de repente estava cercada de leões. Ficou parada ofegante, sozinha com os animais. Eles comeram tudo que ela tinha vivido até então, e foram embora. Ela voltou devagar, diferente. Depois dos leões, nem tinha mais sentido correr do vizinho.
Um verão inesquecível
Ilustrações: Mônica Ventura
Sobre Amaré
Por Verena Smit
Era janeiro no Rio de Janeiro, começo dos anos 2000.
Aceitei fazer assistência de direção de arte para um curta-metragem.
Passava os dias de chinelo, coberta de tinta e olhando para o Pão de Açúcar.
Guardo fotografias mentais dos aviões subindo e descendo do aeroporto Santos Dumont.
Lembro do bando de pássaros se movendo em forma de V naquele lindo céu azul e daquela formação rochosa íngreme e pontiaguda que se encaixava perfeitamente na janela da cobertura abandonada. Eram imagens perfeitas.
Assisti aos mais lindos pores do sol.
Dividia uma kitnet em Copacabana com diversas pessoas e comia todo dia um PF com arroz, feijão, frango e macarrão. Tudo empilhado de forma magistral e adornado por uma embalagem de alumínio.
De dia roubávamos areia da praia do Recreio para construir nossa ilha de mentira e de noite íamos na Cinelândia tomar cerveja em bares mais sujos que nossos pés.
Sonhava com um mar de celofane e com aquele coqueiro onde as folhas eram contas de pérolas e pedras coloridas.
Deitava no sofá-cama e ouvia meus batimentos cardíacos altos e fortes, eles gritavam uma aterrorizante sensação de liberdade. Não tinha medo de nada.
No dia que me deram folga fui no Museu Nacional de Belas Artes, nosso Louvre Tupiniquim. Mas eu não queria ver Victor Meirelles ou Pedro Américo, queria era ver o Ilo Krugli interpretando aquele velho marinheiro solitário que vivia no alto daquele prédio abraçado pela Baía de Guanabara sonhando com a sereia que ele um dia havia amado.
“Sobre a maré” era sobre amor e “Sobre a maré” me fez amar o set de cinema como nunca. Depois disso todos os outros sets foram chatos, todos os outros filmes medíocres e eu voltei a sentir medo.
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