Criar na própria casa, sem qualquer direção ou limites impostos por clientes ou mercado, é talvez o maior combustível para a liberdade criativa. A casa, assim como o ateliê, é um espaço de experimentação e intimidade, onde muitos artistas se sentem confortáveis para testar, errar, tentar novamente e acertar muito. E não é diferente com João Incerti em seu apartamento em Copacabana. Se de um lado o arquiteto mexicano buscou, nas cores e na arte, serenidade e espiritualidade; do outro, Incerti acredita na alegria e na vitalidade dos tons e formas que leva para as paredes, telas, móveis e roupas, e se entrega à loucura, ao excesso e ao poder criativo da própria dúvida.
Ao invés de criar mais palmeiras, flores, frutos e animais que compõem o universo da marca carioca, ele começou a pesquisar formas humanas, mãos e olhos – apesar da referência a Barragán e ao muralismo de seu país ter marcado a curta e explosiva trajetória de Incerti, sua casa lembra mais a residência de Jean Cocteau, na Riviera Francesa, do que a obra-prima do mexicano. Mas comum toque próprio, claro.
O novo vocabulário foi se revelando aos poucos, à medida que Incerti se deparou como trabalho de artistas como Henri Matisse, Wassily Kandinsky, Yayoi Kusama, Keith Haring e Alberto Pitta. “Visitei o ateliê do Pitta quando trabalhava na Farm e fiquei muito apaixonado. Estou feliz porque ele está tendo reconhecimento agora. A casa do Monet também mexeu muito comigo porque ela é toda segmentada: um cômodo é amarelo, outro é verde, outro, azul”, recorda o artista, sobre sua visita à residência onde o precursor do impressionismo viveu por mais de 40 anos em Giverny, na França.
Rapidamente, o apartamento onde vivia na Tijuca ficou pequeno demais para seus impulsos criativos e ele se mudou para um maior em Copacabana. “Meu referencial do Rio é Copacabana, eu só poderia morar aqui mesmo”, conta o artista. “Gosto muito de andar nas ruas e ver todos os tipos de pessoas. Tem uma mistura de classes, de personalidades. Gosto dessa cara de bairro para turista, com muito comércio de suvenir, lado a lado com o Copacabana Palace e a orla. E quando você vai morando aqui você vai ficando mais apegado.”
Foi lá que Incerti resolveu se libertar das travas da moldura: pintou todo o corredor e o teto. Começou a postar e ganhar chuva de likes. Até que a diretora criativa carioca Gigi Barreto o encontrou e convidou o artista para pintar o quarto da filha: as leoas, inspiradas na relação de Gigi com sua filha Clara, cercadas por uma linha gráfica, composta por flores e triângulos, em rosa e vermelho, mudaram sua vida. A partir daquele momento, mais convites começaram a acontecer; ele saiu da Farm e mudou para o atual apartamento no mesmo bairro – agora, uma cobertura com direito a cozinha aberta e varanda ensolarada num prédio estilo art déco de 1938 na Rua Santa Clara.
Mas com o brilho, também vieram as decepções: uma pessoa começou a representá-lo, vendeu todos os quadros, mas ele nunca viu a cor do dinheiro. “Foi um golpe duro, mas essa figura foi importante porque entendi o valor dos meus quadros e ganhei confiança para continuar produzindo”, pontua o artista, hoje com 29 anos. Depois do baque, ele fez uma residência no México e acabou viajando por três meses pelo país, passando ainda em Miami, Nova York e Los Angeles. “No início estava muito receoso, não queria pintar esse apartamento. Mas voltei do México querendo usar muitas cores! E pensei: sou artista. Se eu não tiver coragem de pintar a minha própria casa, como eu vou querer que as pessoas me chamem para pintar as delas?”, reflete.
Na volta de viagem, ele cobriu o teto da sala de estrelas douradas, ondas, elementos geométricos e seres dançantes à la Matisse. No centro, uma espécie de sol e uma disco ball decorada com olhos e narizes também dourados. “Quis testar algo mais gestual e fluido porque esta sala era uma pista de dança. Comprei esses sofás que viram cama recentemente, para receber amigos”, explica.
Abajures, espelhos, vasos de cerâmica, mesas, sofás e cadeiras – hoje ele simplesmente cobre a casa inteira com tinta acrílica e giz pastel oleoso. Sobre a mesa de centro, flores de plástico (da coleção Playmobil) porque elas não morrem. Na sala de jantar, encontramos lembranças de viagens, cestarias indígenas, além de peças mais kitsch como uma cabeça da La Ursa (movimento carnavalesco pernambucano), o ramo de flores saindo de um coração de cerâmica ou o vaso criado pelo artista Estevão Silva Conceição, conhecido como Seu Gaudí, a partir do amalgamento de pequenos objetos – é claro que o olhar curioso e barroco de Incerti foi atraído pela inspiração clara na estética do arquiteto espanhol.
Os murais fazem, hoje, um sucesso estrondoso e ele não para de receber encomendas da hotelaria. Já criou para o Belmond Hotel das Cataratas, em Foz do Iguaçu; o Hotel Selina, em Búzios; o Casa Faena e o The Moore, em Miami; Lafayette Hotel, em San Diego; e para o Tartane Hôtel, em Saint-Tropez. Incerti vende prints na Colab55 e Society6, mas parou de vender as telas por hora. Mas, entre uma collab e outra, ele resolveu fazer uma exposição de suas obras na própria casa. “Foi nesse momento que eu entendi que sempre fui exagerado e que eu posso misturar gestos rígidos com outros mais soltos. E também que não posso ficar preso ao que já fiz e fez sucesso.” Por isso, a sua casa funciona como uma grande tela sempre mutante, aberta para suas investigações.
A admiração por Keith Haring, fonte evidente de inspiração para Incerti, veio depois de ver uma exposição em Los Angeles e compreender todo discurso político por trás daquelas “figuras, cachorros e corações fofos” e sua importância na história da cultura gay, recorda o artista. “Até então eu já tinha refletido muito sobre a minha própria sexualidade, mas nunca tinha exposto isso no meu trabalho. Foi quando desenhei a coleção Olhar em chamas para a marca de um amigo chamada Lacre.” As peças trazem um ar mais rock’n’roll com estampas de figuras pegando fogo e serão lançadas este mês. “Sempre amei moda, mas sempre fiquei incomodado com o fato de tudo ser muito descartável tão rapidamente. Como artista, quero fazer roupas e estampas mais duradouras.”
Ano passado, assinou a coleção Um Delírio Tropical para o Monoprix inspirada na loucura coletiva do Carnaval carioca que inclui objetos decorativos, além de uma moda praia ultracolorida e alegre. Seu estilo também esteve nas vitrines da Riachuelo e da carioca Wasabi, na coleção É tempo de sonhar. “Vem com cores mais clássicas e traços lúdicos e surrealistas porque é sobre esta sensação de me sentir maluco quando sigo meus sonhos”, reflete. “Tenho pensado muito sobre a loucura. Que talvez eu devesse me render à minha loucura, deixar meu trabalho realmente tomar conta de tudo”, completa. A casa já está dominada!
Criar na própria casa, sem qualquer direção ou limites impostos por clientes ou mercado, é talvez o maior combustível para a liberdade criativa. A casa, assim como o ateliê, é um espaço de experimentação e intimidade, onde muitos artistas se sentem confortáveis para testar, errar, tentar novamente e acertar muito. E não é diferente com João Incerti em seu apartamento em Copacabana. Se de um lado o arquiteto mexicano buscou, nas cores e na arte, serenidade e espiritualidade; do outro, Incerti acredita na alegria e na vitalidade dos tons e formas que leva para as paredes, telas, móveis e roupas, e se entrega à loucura, ao excesso e ao poder criativo da própria dúvida.
Ao invés de criar mais palmeiras, flores, frutos e animais que compõem o universo da marca carioca, ele começou a pesquisar formas humanas, mãos e olhos – apesar da referência a Barragán e ao muralismo de seu país ter marcado a curta e explosiva trajetória de Incerti, sua casa lembra mais a residência de Jean Cocteau, na Riviera Francesa, do que a obra-prima do mexicano. Mas comum toque próprio, claro.
O novo vocabulário foi se revelando aos poucos, à medida que Incerti se deparou como trabalho de artistas como Henri Matisse, Wassily Kandinsky, Yayoi Kusama, Keith Haring e Alberto Pitta. “Visitei o ateliê do Pitta quando trabalhava na Farm e fiquei muito apaixonado. Estou feliz porque ele está tendo reconhecimento agora. A casa do Monet também mexeu muito comigo porque ela é toda segmentada: um cômodo é amarelo, outro é verde, outro, azul”, recorda o artista, sobre sua visita à residência onde o precursor do impressionismo viveu por mais de 40 anos em Giverny, na França.
Rapidamente, o apartamento onde vivia na Tijuca ficou pequeno demais para seus impulsos criativos e ele se mudou para um maior em Copacabana. “Meu referencial do Rio é Copacabana, eu só poderia morar aqui mesmo”, conta o artista. “Gosto muito de andar nas ruas e ver todos os tipos de pessoas. Tem uma mistura de classes, de personalidades. Gosto dessa cara de bairro para turista, com muito comércio de suvenir, lado a lado com o Copacabana Palace e a orla. E quando você vai morando aqui você vai ficando mais apegado.”
Foi lá que Incerti resolveu se libertar das travas da moldura: pintou todo o corredor e o teto. Começou a postar e ganhar chuva de likes. Até que a diretora criativa carioca Gigi Barreto o encontrou e convidou o artista para pintar o quarto da filha: as leoas, inspiradas na relação de Gigi com sua filha Clara, cercadas por uma linha gráfica, composta por flores e triângulos, em rosa e vermelho, mudaram sua vida. A partir daquele momento, mais convites começaram a acontecer; ele saiu da Farm e mudou para o atual apartamento no mesmo bairro – agora, uma cobertura com direito a cozinha aberta e varanda ensolarada num prédio estilo art déco de 1938 na Rua Santa Clara.
Mas com o brilho, também vieram as decepções: uma pessoa começou a representá-lo, vendeu todos os quadros, mas ele nunca viu a cor do dinheiro. “Foi um golpe duro, mas essa figura foi importante porque entendi o valor dos meus quadros e ganhei confiança para continuar produzindo”, pontua o artista, hoje com 29 anos. Depois do baque, ele fez uma residência no México e acabou viajando por três meses pelo país, passando ainda em Miami, Nova York e Los Angeles. “No início estava muito receoso, não queria pintar esse apartamento. Mas voltei do México querendo usar muitas cores! E pensei: sou artista. Se eu não tiver coragem de pintar a minha própria casa, como eu vou querer que as pessoas me chamem para pintar as delas?”, reflete.
Na volta de viagem, ele cobriu o teto da sala de estrelas douradas, ondas, elementos geométricos e seres dançantes à la Matisse. No centro, uma espécie de sol e uma disco ball decorada com olhos e narizes também dourados. “Quis testar algo mais gestual e fluido porque esta sala era uma pista de dança. Comprei esses sofás que viram cama recentemente, para receber amigos”, explica.
Abajures, espelhos, vasos de cerâmica, mesas, sofás e cadeiras – hoje ele simplesmente cobre a casa inteira com tinta acrílica e giz pastel oleoso. Sobre a mesa de centro, flores de plástico (da coleção Playmobil) porque elas não morrem. Na sala de jantar, encontramos lembranças de viagens, cestarias indígenas, além de peças mais kitsch como uma cabeça da La Ursa (movimento carnavalesco pernambucano), o ramo de flores saindo de um coração de cerâmica ou o vaso criado pelo artista Estevão Silva Conceição, conhecido como Seu Gaudí, a partir do amalgamento de pequenos objetos – é claro que o olhar curioso e barroco de Incerti foi atraído pela inspiração clara na estética do arquiteto espanhol.
Os murais fazem, hoje, um sucesso estrondoso e ele não para de receber encomendas da hotelaria. Já criou para o Belmond Hotel das Cataratas, em Foz do Iguaçu; o Hotel Selina, em Búzios; o Casa Faena e o The Moore, em Miami; Lafayette Hotel, em San Diego; e para o Tartane Hôtel, em Saint-Tropez. Incerti vende prints na Colab55 e Society6, mas parou de vender as telas por hora. Mas, entre uma collab e outra, ele resolveu fazer uma exposição de suas obras na própria casa. “Foi nesse momento que eu entendi que sempre fui exagerado e que eu posso misturar gestos rígidos com outros mais soltos. E também que não posso ficar preso ao que já fiz e fez sucesso.” Por isso, a sua casa funciona como uma grande tela sempre mutante, aberta para suas investigações.
A admiração por Keith Haring, fonte evidente de inspiração para Incerti, veio depois de ver uma exposição em Los Angeles e compreender todo discurso político por trás daquelas “figuras, cachorros e corações fofos” e sua importância na história da cultura gay, recorda o artista. “Até então eu já tinha refletido muito sobre a minha própria sexualidade, mas nunca tinha exposto isso no meu trabalho. Foi quando desenhei a coleção Olhar em chamas para a marca de um amigo chamada Lacre.” As peças trazem um ar mais rock’n’roll com estampas de figuras pegando fogo e serão lançadas este mês. “Sempre amei moda, mas sempre fiquei incomodado com o fato de tudo ser muito descartável tão rapidamente. Como artista, quero fazer roupas e estampas mais duradouras.”
Ano passado, assinou a coleção Um Delírio Tropical para o Monoprix inspirada na loucura coletiva do Carnaval carioca que inclui objetos decorativos, além de uma moda praia ultracolorida e alegre. Seu estilo também esteve nas vitrines da Riachuelo e da carioca Wasabi, na coleção É tempo de sonhar. “Vem com cores mais clássicas e traços lúdicos e surrealistas porque é sobre esta sensação de me sentir maluco quando sigo meus sonhos”, reflete. “Tenho pensado muito sobre a loucura. Que talvez eu devesse me render à minha loucura, deixar meu trabalho realmente tomar conta de tudo”, completa. A casa já está dominada!