Keynes e os Estoques reguladores, por Nathan Caixeta


Conab – Agência Brasil

Keynes e os Estoques reguladores: as virtudes da prudência

por Nathan Caixeta

A instabilidade dos preços de alimentos e matérias-primas é um assunto sempre presente nos tempos de crise. Antes e agora.

No período entreguerras, John Maynard Keynes observou que a instabilidade de preços dos alimentos vinculava-se profundamente aos episódios de elevada volatilidade nos mercados futuros de commodities.

Sob o comando da finança, os preços das commodities frequentemente divergem do equilíbrio entre a oferta dos produtores de alimentos e matérias prima e a demanda de empresas e consumidores. O mesmo mecanismo que lubrifica o sistema de trocas internacionais, interligando cadeias de produção e mercados nacionais, cuida de espalhar desequilíbrios inerentes à forma de operação dos mercados financeiros.

A teoria econômica convencional concebe os agentes econômicos como “tomadores” de risco, plenamente sabedores e confiantes na trajetória provável dos mercados exibida pelos preços dos ativos (os atrelados às commodities, inclusive).

Na contramão, Keynes, e mais tarde, Hyman Minsky ousaram introduzir na teoria das expectativas os conceitos de incerteza e de irreversibilidade das ações humanas. O conhecimento efetivo dos agentes sobre a trajetória futura dos mercados é tão ou mais deficiente quanto sua capacidade de prever os efeitos futuros de suas ações e das ações alheias na construção dessa trajetória.

A única via razoavelmente segura de operação dos agentes individuais é acreditar na sabedoria das multidões e nos mecanismos de distribuição de riscos entre todos os operadores de mercado. Os agentes se tornam, então, “formadores” de riscos, assumindo posições sistemicamente dependentes entre si.

O GGN vai produzir um novo documentário sobre os crimes impunes da Operação Lava Jato. Clique aqui e saiba como apoiar o projeto!

Quando a confiança nos poderes dos mecanismos de mercado declina, abre-se o sorriso da volatilidade e os preços dos ativos sucumbem à preferência pela liquidez.

Em meio ao amplo debate a respeito da estabilização dos preços dos alimentos e matérias-primas ocorrido entre 1942-1944, Keynes expõe as razões que levam à “violência das flutuações individuais de preços e a incapacidade de um sistema competitivo não-regulado em evitá-las”:

“O sistema competitivo abomina a existência de estoques de reserva que suportem períodos de alta e baixa demanda, com um reflexo tão forte quanto a natureza abomina o vácuo, porque esses estoques produzem um retorno negativo em termos de si mesmos… o que não deveria ser surpresa, pois o sistema competitivo é, em sua forma ideal, o mecanismo perfeito para garantir o ajuste mais rápido e, ao mesmo tempo, mais implacável da oferta ou da demanda sob qualquer mudança nas condições, por mais transitórias que sejam. Ele é inerentemente oposto à segurança e à estabilidade, embora, pelo mesmo motivo, tenha a grande virtude de também ser oposto à estabilidade no sentido da estagnação”.

No “sistema competitivo”, explica Keynes, predomina a ação especulativa dos compradores, prontos para mover a demanda primária por alimentos e matérias-primas no ato de ajuste dos estoques endereçados à produção e ao consumo final.

Tais movimentos não podem ser rapidamente amparados pelos ofertantes, dadas as rigidezes da produção e extração das commodities. Essa instabilidade inerente das condições de oferta e demanda é aditivada pelas operações financeiras nos mercados futuros que tendem a amplificar a volatilidade nos preços das commodities.

A aparente reversibilidade empregada pelos mecanismos de mercado apresenta-se rapidamente como sucessões de atos irreversíveis por parte dos agentes individuais, eliminando a vacuidade abominada pelo sistema puramente competitivo: os especuladores mais hábeis preenchem o espaço, enquanto os demais são engolidos pelo vórtice da concorrência.

A proposta de Keynes para a defesa dos sistemas econômicos nacionais contra os desequilíbrios nos mercados de commodities visava combinar as virtudes do mecanismo competitivo com a ação estabilizadora de um órgão central responsável pela correção dos eventuais desequilíbrios entre oferta e demanda. Keynes tinha claro que, no imediato pós-Guerra, tal como no caso da operacionalidade do padrão monetário internacional, esforços individuais e isolados de estabilização seriam tragados pela violência das flutuações dos preços e das taxas de câmbio.

Assim, a Commod Control foi concebida como uma instituição supranacional responsável por constituir “estoques reguladores” de matérias primas e alimentos com a finalidade de amenizar flutuações excessivas nos preços das commodities e coordenar o abastecimento desses bens para os diferentes espaços nacionais, eliminando a escassez relativa responsável por difundir a instabilidade de preços.

O projeto de Keynes foi derrotado nas conferências de Bretton Woods, nele incluso a Clearing Union. Entretanto, a ideia central dos estoques reguladores permaneceu tanto na agenda de instituições internacionais como inspirou a institucionalização de políticas do gênero em diversos países, como mostra estudo produzido sob os auspícios do Oxford Institute for Energy Studies.

John Bower e Nawal Kamel procuraram averiguar as repercussões da semente plantada por Keynes nos debates sobre a estabilização dos preços das commodities. Eles demonstram que quanto mais integrados forem os sistemas de controle sobre os estoques de insumos e alimentos, mais estáveis são os mecanismos de formação de preços e mais eficiente é a distribuição dessa categoria de bens essenciais entre espaços nacionais.

O modelo oferecido pela dupla de pesquisadores cuida de introduzir a premissa essencial da política de estoques reguladores: a vinculação entre um mecanismo “correcional” de curto-prazo e um mecanismo “prudencial” de longo-prazo.

Como mostra Stefan Eich no ensaio Keynes e o Longo Prazo, a vinculação de mecanismos corretivos e prudenciais a partir de corpos autônomos e centralizados de decisão reflete a sensibilidade de Keynes em relação às manifestações concretas da relação dos homens com a temporalidade de suas ações.

A “naturalização do futuro”, insiste Eich, preside as incursões do pensamento convencional pelos áridos terrenos da razão e do tempo. O longo-prazo que aparece nos modelos expectacionais que hoje governam o desenho institucional das políticas econômicas trata de um futuro que existe apenas como reflexo oposto das decisões tomadas no passado. As trepidações ocasionais dos preços e da atividade econômica são tomadas como desvios indesejados da passagem “natural” do passado para o futuro.

A concepção naturalista a respeito da temporalidade dos fenômenos econômicos tem visitado com frequência as considerações espargidas por nossos economistas e analistas diante da crise inflacionária atual que, nos parece, tem se combinado com a desaceleração do ritmo de crescimento da economia nacional.

O esforço em relacionar a inflação de alimentos ao “risco fiscal” tem esfolado as costuras que tecem a argumentação dos nossos economistas, a cada (mal)feito da temporalidade irreversível, que castiga sem receio os modelos de equilíbrio e seus filhotes.

O GGN vai produzir um novo documentário sobre os crimes impunes da Operação Lava Jato. Clique aqui e saiba como apoiar o projeto!

A jornada não é fácil. Nos farnéis dos boateiros da Economics estão tanto a explicação da doença como o remédio. A doença, dizem, é a persistência do déficit fiscal, que provocou a fuga de capitais e a expressiva desvalorização do câmbio no último ano, acabando por elevar o preço dos alimentos. Os patógenos da inflação avançaram sem resistências diante de uma “economia aquecida”, que rodou acima de seu pobre potencial de crescimento nos últimos anos. O remédio, aplicado com competência pelos curandeiros da moeda, sejam os indicados por Lula ou Bolsonaro, é uma dosagem altíssima de contração da demanda via aumento da taxa de juros.

Enquanto os efeitos pretendidos não se materializam, os boateiros seguem “formando” os riscos que tanto querem amenizar. Diante do choque de juros, a persistência da inflação, sobretudo no segmento dos alimentos, contrasta com o efeito pretendido (e obtido) de contenção da demanda, que vem desaquecendo desde o último trimestre.

É atribuída ao Jesuíta António Vieira uma frase instrutiva neste caso: quem remedeia o remédio? No ímpeto de corrigir os desvios causados pela política fiscal à trajetória dos preços ruma à meta de inflação, os curandeiros do BACEN são gentilmente convidados pela boataria geral a aumentar a dose, matando a doença junto com o paciente.

O dito popular ensina que há várias maneiras de se combater o carrapato. Uma delas é matando a vaca. Parece ser esse o caso.

Nathan Caixeta, pós-graduando em desenvolvimento econômico no IE/UNICAMP e pesquisador do núcleo de estudos de conjuntura da FACAMP (NEC-FACAMP).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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Keynes e os Estoques reguladores: as virtudes da prudência

por Nathan Caixeta

A instabilidade dos preços de alimentos e matérias-primas é um assunto sempre presente nos tempos de crise. Antes e agora.

No período entreguerras, John Maynard Keynes observou que a instabilidade de preços dos alimentos vinculava-se profundamente aos episódios de elevada volatilidade nos mercados futuros de commodities.

Sob o comando da finança, os preços das commodities frequentemente divergem do equilíbrio entre a oferta dos produtores de alimentos e matérias prima e a demanda de empresas e consumidores. O mesmo mecanismo que lubrifica o sistema de trocas internacionais, interligando cadeias de produção e mercados nacionais, cuida de espalhar desequilíbrios inerentes à forma de operação dos mercados financeiros.

A teoria econômica convencional concebe os agentes econômicos como “tomadores” de risco, plenamente sabedores e confiantes na trajetória provável dos mercados exibida pelos preços dos ativos (os atrelados às commodities, inclusive).

Na contramão, Keynes, e mais tarde, Hyman Minsky ousaram introduzir na teoria das expectativas os conceitos de incerteza e de irreversibilidade das ações humanas. O conhecimento efetivo dos agentes sobre a trajetória futura dos mercados é tão ou mais deficiente quanto sua capacidade de prever os efeitos futuros de suas ações e das ações alheias na construção dessa trajetória.

A única via razoavelmente segura de operação dos agentes individuais é acreditar na sabedoria das multidões e nos mecanismos de distribuição de riscos entre todos os operadores de mercado. Os agentes se tornam, então, “formadores” de riscos, assumindo posições sistemicamente dependentes entre si.

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Quando a confiança nos poderes dos mecanismos de mercado declina, abre-se o sorriso da volatilidade e os preços dos ativos sucumbem à preferência pela liquidez.

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“O sistema competitivo abomina a existência de estoques de reserva que suportem períodos de alta e baixa demanda, com um reflexo tão forte quanto a natureza abomina o vácuo, porque esses estoques produzem um retorno negativo em termos de si mesmos… o que não deveria ser surpresa, pois o sistema competitivo é, em sua forma ideal, o mecanismo perfeito para garantir o ajuste mais rápido e, ao mesmo tempo, mais implacável da oferta ou da demanda sob qualquer mudança nas condições, por mais transitórias que sejam. Ele é inerentemente oposto à segurança e à estabilidade, embora, pelo mesmo motivo, tenha a grande virtude de também ser oposto à estabilidade no sentido da estagnação”.

No “sistema competitivo”, explica Keynes, predomina a ação especulativa dos compradores, prontos para mover a demanda primária por alimentos e matérias-primas no ato de ajuste dos estoques endereçados à produção e ao consumo final.

Tais movimentos não podem ser rapidamente amparados pelos ofertantes, dadas as rigidezes da produção e extração das commodities. Essa instabilidade inerente das condições de oferta e demanda é aditivada pelas operações financeiras nos mercados futuros que tendem a amplificar a volatilidade nos preços das commodities.

A aparente reversibilidade empregada pelos mecanismos de mercado apresenta-se rapidamente como sucessões de atos irreversíveis por parte dos agentes individuais, eliminando a vacuidade abominada pelo sistema puramente competitivo: os especuladores mais hábeis preenchem o espaço, enquanto os demais são engolidos pelo vórtice da concorrência.

A proposta de Keynes para a defesa dos sistemas econômicos nacionais contra os desequilíbrios nos mercados de commodities visava combinar as virtudes do mecanismo competitivo com a ação estabilizadora de um órgão central responsável pela correção dos eventuais desequilíbrios entre oferta e demanda. Keynes tinha claro que, no imediato pós-Guerra, tal como no caso da operacionalidade do padrão monetário internacional, esforços individuais e isolados de estabilização seriam tragados pela violência das flutuações dos preços e das taxas de câmbio.

Assim, a Commod Control foi concebida como uma instituição supranacional responsável por constituir “estoques reguladores” de matérias primas e alimentos com a finalidade de amenizar flutuações excessivas nos preços das commodities e coordenar o abastecimento desses bens para os diferentes espaços nacionais, eliminando a escassez relativa responsável por difundir a instabilidade de preços.

O projeto de Keynes foi derrotado nas conferências de Bretton Woods, nele incluso a Clearing Union. Entretanto, a ideia central dos estoques reguladores permaneceu tanto na agenda de instituições internacionais como inspirou a institucionalização de políticas do gênero em diversos países, como mostra estudo produzido sob os auspícios do Oxford Institute for Energy Studies.

John Bower e Nawal Kamel procuraram averiguar as repercussões da semente plantada por Keynes nos debates sobre a estabilização dos preços das commodities. Eles demonstram que quanto mais integrados forem os sistemas de controle sobre os estoques de insumos e alimentos, mais estáveis são os mecanismos de formação de preços e mais eficiente é a distribuição dessa categoria de bens essenciais entre espaços nacionais.

O modelo oferecido pela dupla de pesquisadores cuida de introduzir a premissa essencial da política de estoques reguladores: a vinculação entre um mecanismo “correcional” de curto-prazo e um mecanismo “prudencial” de longo-prazo.

Como mostra Stefan Eich no ensaio Keynes e o Longo Prazo, a vinculação de mecanismos corretivos e prudenciais a partir de corpos autônomos e centralizados de decisão reflete a sensibilidade de Keynes em relação às manifestações concretas da relação dos homens com a temporalidade de suas ações.

A “naturalização do futuro”, insiste Eich, preside as incursões do pensamento convencional pelos áridos terrenos da razão e do tempo. O longo-prazo que aparece nos modelos expectacionais que hoje governam o desenho institucional das políticas econômicas trata de um futuro que existe apenas como reflexo oposto das decisões tomadas no passado. As trepidações ocasionais dos preços e da atividade econômica são tomadas como desvios indesejados da passagem “natural” do passado para o futuro.

A concepção naturalista a respeito da temporalidade dos fenômenos econômicos tem visitado com frequência as considerações espargidas por nossos economistas e analistas diante da crise inflacionária atual que, nos parece, tem se combinado com a desaceleração do ritmo de crescimento da economia nacional.

O esforço em relacionar a inflação de alimentos ao “risco fiscal” tem esfolado as costuras que tecem a argumentação dos nossos economistas, a cada (mal)feito da temporalidade irreversível, que castiga sem receio os modelos de equilíbrio e seus filhotes.

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Enquanto os efeitos pretendidos não se materializam, os boateiros seguem “formando” os riscos que tanto querem amenizar. Diante do choque de juros, a persistência da inflação, sobretudo no segmento dos alimentos, contrasta com o efeito pretendido (e obtido) de contenção da demanda, que vem desaquecendo desde o último trimestre.

É atribuída ao Jesuíta António Vieira uma frase instrutiva neste caso: quem remedeia o remédio? No ímpeto de corrigir os desvios causados pela política fiscal à trajetória dos preços ruma à meta de inflação, os curandeiros do BACEN são gentilmente convidados pela boataria geral a aumentar a dose, matando a doença junto com o paciente.

O dito popular ensina que há várias maneiras de se combater o carrapato. Uma delas é matando a vaca. Parece ser esse o caso.

Nathan Caixeta, pós-graduando em desenvolvimento econômico no IE/UNICAMP e pesquisador do núcleo de estudos de conjuntura da FACAMP (NEC-FACAMP).

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