Em poucas semanas de seu segundo mandato, Donald Trump assinou duas ordens executivas restringindo os direitos dos trabalhadores transgêneros no governo federal. A primeira foi uma renovação da proibição de ingressarem nas Forças Armadas dos EUA —inicialmente assinada em 2017 e, posteriormente, revogada pelo presidente Joe Biden, em 2021. A segunda foi um memorando mais abrangente que reconhece apenas dois sexos em registros e políticas federais.
No mundo romano antigo, o sexo biológico e a expressão de gênero nem sempre se alinhavam tão perfeitamente quanto o presidente exige ver no governo atual.
Na antiguidade, havia mulheres masculinas, homens femininos e pessoas que alteravam seus corpos para corresponder mais de perto à sua expressão de gênero. Em particular, duas figuras –o cinaedus (maneira pejorativa de referir-se a homossexuais) e o gallus (sarcedotes eunucos)– fornecem exemplos de homens cujo comportamento efeminado e anatomias modificadas eram marcantes, mas, ainda assim, integrados à sociedade romana.
O cinaedus e o comandante em chefe
Na Roma antiga, alguns homens que não se encaixavam perfeitamente nas categorias de gênero eram chamados de “cinaedi”. Em geral, eram homens adultos escolhidos por sua extrema efeminação e desejos sexuais vistos como não normativos.
O “cinaedus” já era uma figura reconhecível na Grécia antiga e foi mencionado pela primeira vez no século 4º a.C. por Platão. Ele diz que a vida de um transgênero era terrível, vil e miserável. Autores romanos posteriores fornecem mais detalhes.
Marcial, um poeta romano que escreveu em um epigrama no século 1º d.C., por exemplo, descreve o pênis disfuncional de um homossexual como uma “tira de couro encharcada”. No mesmo século, o romancista romano Petrônio sugeriu que tanto ele quanto seus companheiros (homossexuais) tiveram seus genitais removidos.
Em uma fábula de Fedro, também escrita no século 1º d.C., um bárbaro está ameaçando as tropas do líder militar, Pompeu, o Grande. Todos têm medo de desafiar esse feroz oponente até que um “cinaedus” se oferece para lutar. Ele é descrito como um soldado de grande porte, mas com uma voz rouca e um andar similar ao feminino.
Após implorar permissão, de uma maneira estereotipada e balbuciante, a Pompeu, seu comandante-chefe, o “cinaedus” entra na batalha. Ele rapidamente corta a cabeça do bárbaro e, com o Exército agitado, é recompensado por Pompeu.
Na fábula de Fedro, um “cinaedus” não é confiável. Ele é descrito como tendo roubado objetos de valor de Pompeu no começo da história e, mais tarde, jura que não o fez.
No entanto, a moral da fábula de Fedro sobre o soldado efeminado é que tais aparências e ações enganosas podem ser estrategicamente bem-sucedidas em questões militares. Esses soldados têm uma vantagem sobre os outros justamente devido à efeminação desarmante. No conto, isso não diminui em nada suas habilidades como um lutador letal. Em vez disso, a efeminação do “cinaedus” combinada com seu valor resoluto finalmente levou à derrota do bárbaro.
Sarcedotes trans e a segurança do estado romano
Os galli, outro grupo que vivia no coração da cidade de Roma, também confundiam os papéis de gênero. Eram homens que tinham castrado suas genitálias em dedicação à Grande Mãe, a deusa Cibele, que era a protetora.
Conforme relatado por várias fontes antigas, incluindo Cícero e Lívio, em 204 a.C. o Estado romano consultou um conjunto de pergaminhos proféticos chamados Oráculos Sibilinos sobre a melhor forma de responder às pressões que enfrentava como resultado da Segunda Guerra Púnica —o conflito prolongado de Roma com Cartago e seu feroz general militar, Aníbal.
A resposta dos oráculos —e a ação subsequente de Roma— foi importar uma ordem religiosa estranha da Ásia Menor para o coração de Roma, onde permaneceria pelas centenas de anos seguintes.
O templo de Cibele estava localizado no Monte Palatino (colina de Roma) próximo a vários santuários importantes, monumentos e, mais tarde, até mesmo a residência do Imperador romano Augusto. Como o poeta Ovídio nos conta, a cada ano, durante o festival da deusa Cibele, os galli seguiam pelas ruas de Roma carregando uma estátua dela, enquanto ululavam descontroladamente ao som de flautas, tambores e címbalos (percussão).
Mais do que a figura do “cinaedus”, fontes literárias antigas apresentam a diferença de gênero dos galli de forma semelhante às mulheres trans atuais, muitas vezes usando pronomes femininos ao descrevê-las.
Por exemplo, o poeta lírico da Roma Antiga Catulo detalha a história da origem da figura fundadora dos galli, Átis, que era o amante mítico e sacerdote chefe de Cibele. Notavelmente, Catulo muda o uso de adjetivos masculinos para femininos no exato momento da autocastração de Átis.
Da mesma forma, em seu romance, “O Asno de Ouro”, o escritor e filósofo do século 2º d.C. (Lúcio) Apuleio faz com que um gallus se dirija a seus companheiros devotos como “garotas”.
Embora várias fontes antigas zombem dessas figuras por sua aparência e comportamentos que não se conformam com o gênero, é evidente que os galli ocupavam um lugar sagrado dentro do Estado romano. Eles eram vistos como importantes para a segurança e a proeminência contínuas de Roma.
Por exemplo, (Lúcio Méstrio) Plutarco, em sua ” Vida de Mário” relata que um sacerdote da Grande Mãe foi à Roma em 103 a.C. para transmitir um oráculo que dizia que os romanos seriam triunfantes na guerra. Embora acreditado pelo Senado, este sacerdote, Bataces, foi ridicularizado impiedosamente na assembleia plebeia. No entanto, quando um indivíduo que insultou Bataces morreu rapidamente de uma febre terrível, os plebeus também deram apoio a este oráculo e aos poderes proféticos da deusa.
Questões trans atuais
Por trás das ordens executivas de Trump há duas afirmações: primeiro, que a identidade transgênero é uma forma de ideologia, uma invenção moderna criada para justificar o desvio do sexo atribuído ao nascer; segundo, que a identidade transgênero é uma forma de doença e desonestidade.
A proibição militar reeditada reforça a percepção de indignidade de pessoas trans, contrastando-a com os ideais e princípios necessários para o combate. A ordem declara que a “adoção de uma identidade de gênero inconsistente com o sexo de um indivíduo entra em conflito com o comprometimento de um soldado com um estilo de vida honrado, verdadeiro e disciplinado”.
Analisar a diversidade de gênero ao longo dos milênios me mostrou que muitos indivíduos na antiguidade certamente viveram vidas fora da fórmula clara que o governo Trump declarou, ou seja, que “as mulheres são biologicamente femininas e os homens são biologicamente masculinos “.
A diversidade de gênero não é simplesmente um fenômeno do final do século 20 ou início do século 21. No entanto, o medo de que pessoas transgênero sejam doentes e desonestas também surge em várias fontes antigas. No mundo clássico, esses temores parecem limitados aos reinos da sátira e da fantasia; em nossa época atual, estamos vendo esses medos sendo aproveitados para políticas governamentais.
Este texto foi publicado no The Conversation. Clique aqui para ler a versão original