Beata Halassy, 54, enfrentava pela terceira vez, em cerca de quatro anos, um câncer de mama, exatamente no mesmo lugar. A ideia de repetir os tratamentos já tentados antes não a animava. Mas, segundo ela, uma inspiração científica surgiu durante uma oração. A virologista, a partir daí, seguiu um caminho ainda mais incomum para o meio e método científicos: a autoexperimentação.
“Bem, tenho que dizer que rezei muito porque sou religiosa”, diz Beata à Folha em entrevista no último dia 6, reforçando algo que, coincidentemente, já está em seu próprio nome. Apesar de associar a inspiração à oração, ela também relaciona a ideia ao seu conhecimento científico.
Segundo a virologista, é comum no seu dia a dia de trabalho na Universidade de Zagreb, na Croácia, usar células para cultivar vírus. As células vivas oferecidas aos vírus dentro de frascos plásticos acabam destruídas depois de alguns dias. “Vi essa imagem na minha mente. Então, por que isso não aconteceria no meu corpo? E se selecionarmos os vírus adequados?”
Foi assim que começou o processo de autoexperimentação de Beata.
A partir daí, Beata conta que ela e outros colegas virologistas começaram a pesquisar sobre vírus oncolíticos. De forma simplificada, esse tipo de terapia se apoia no funcionamento normal dos vírus. Escolhe-se um tipo de vírus adequado que é aplicado no câncer. O vírus infecta as células cancerígenas e as destrói. O processo ainda pode acabar por estimular o sistema imune do próprio paciente a combater a doença.
Parece simples, mas esse campo de pesquisa oncológica ainda tem desafios. De toda forma, já há vírus oncolíticos aprovados para tratamento em alguns países. Segundo uma revisão de 2023 da revista Nature, naquele momento, já havia quatro drogas baseadas em vírus oncolíticos, a primeira delas aprovada contra melanoma na Letônia, em 2004.
Mais recentemente, em 2015, a FDA (agência que regulamenta e fiscaliza alimentos e remédios nos EUA) aprovou o T-VEC, também para melanoma recorrente. Por fim, em 2021, o Delytact foi aprovado para uso no Japão contra glioblastoma recorrente (uma forma de câncer cerebral). A revisão da Nature também apontava mais de 300 estudos em andamento.
Apesar de trabalhar com vírus, o campo de pesquisa oncológico não fazia parte da experiência de Beata e sua equipe.
Segundo a pesquisadora, a equipe foi atrás de vírus com os quais tinham familiaridade e que estivessem em teste para câncer de mama em modelo animal, mais especificamente em camundongos. O vírus tampouco poderia ser patogênico para humanos —ou seja, causar doenças— ou geneticamente modificado.
“Portanto, não liberaríamos algo que não existe na natureza. Somos cientistas responsáveis”, diz Beata. “A decisão foi usar esse vírus do sarampo com o qual adquirimos habilidade durante toda a nossa carreira. Esta é uma cepa vacinal que tem sido usada há décadas na vacinação contra o sarampo na Croácia, na antiga Iugoslávia e ao redor do mundo.”
Pelos mesmos critérios, o outro vírus selecionado foi o da estomatite vesicular.
A cientista afirma que, a partir daí, seguiram caminhos diferentes de outros testes que estão em curso —além do óbvio fato da autoexperimentação. Uma das diferenças foi não conseguirem produzir soluções com grande concentração de vírus. Por isso, fizeram diversas aplicações.
O câncer
Todo o processo mencionado nesta reportagem ocorria em 2020, durante o primeiro ano da pandemia de Covid-19. Ao mesmo tempo em que fazia a autoexperimentação, Beata lidava com projetos relacionados aos Sars-CoV-2.
O câncer de mama apareceu pela primeira vez na vida de Beata em 2016 e foi tratado com uma mastectomia e químio. Ele voltou, em 2018, logo abaixo da sutura da cirurgia anterior, e foi novamente retirado. Em 2020, pela terceira vez, o câncer estava lá.
Beata conta que o prognóstico não era dos melhores. Havia infiltração do câncer no músculo e na pele, e se tratava de um câncer triplo-negativo —quando não possui receptores de estrogênio e progesterona, e não expressa de modo significativo a proteína HER2, o que acaba limitando as possibilidades de tratamento; costuma também ter maior percentual de reincidência.
“De acordo com a experiência da minha oncologista, ela disse que, se o câncer começar a voltar, o prognóstico é ruim. Me parecia que estávamos caminhando para uma doença crônica, que exigiria o uso constante de algum medicamento. E esses medicamentos, você sabe, não são fáceis”, diz Beata. “Então, eu estava me perguntando se havia alguma chance naquele estágio de ficar completamente saudável novamente.”
Apesar do potencial metastático do câncer, a virologista destaca que não era uma paciente terminal. Ela conta também que os médicos não ficaram nada felizes ou encorajaram a ideia de autoexperimentação, mas continuaram a acompanhando durante todo o processo.
“Eu via minha doença como uma situação de vida ou morte, mas tenho que dizer que estava em paz com isso”, afirma Beata. “Não foi uma ação de pânico. Eu processei e aceitei que todos nós vamos morrer. Sabe, estou sem palavras para te contar adequadamente, mas, quando você está saudável e poderoso e tudo mais, você não pensa nisso. Mas, na verdade, percebi que isso vai acontecer mais cedo ou mais tarde e estava completamente em paz com isso. Eu aceitei. Eu não estava sob pressão por causa disso.”
A autoexperimentação
Nas primeiras duas semanas de aplicações de vírus, o câncer começou a crescer.
“Claro que eu estava com medo. Quer dizer, não com medo, mas também questionando. Injetávamos esse tumor a cada 3, 4 dias. E não apenas uma única injeção, mas várias, em diferentes partes. Então eu pensava: ‘E se não funcionar? Estou apenas fazendo buracos para que ele se espalhe mais facilmente’.”
Após isso, porém, o câncer passou a diminuir, chegando a ficar duas vezes e meia menor do que no início, e ganhou características próximas às encontradas depois de quimioterapia pré-operatória bem-sucedida, diz a virologista, relatando o que lhe teria sido dito por patologistas.
“Estou em remissão há mais de quatro anos e meio. Então, veremos como isso vai progredir. E não estou mais tomando nenhum medicamento, apenas realizando exames regulares”, afirma a virologista.
Questões éticas
Ao se pensar em autoexperimentação, é bem provável que apareçam questões éticas na cabeça de qualquer pessoa. O estudo em questão, por exemplo, não passou por um comitê de ética de pesquisa, como seria o normal em testes clínicos.
“Estou convencida de que não foi antiético. Não tenho nenhuma preocupação quanto a isso”, afirma Beata.
Em resposta a um comentário de um revisor do estudo, Beata e os demais autores afirmaram: “O principal postulado de qualquer consideração ética —que o paciente deve estar totalmente informado— foi completamente cumprido. Não há paciente mais bem informado do que aquele que se autoexperimenta”.
Houve dificuldade para publicar o relato do autoexperimento. Mais de dez revistas científicas rejeitaram a publicação, que acabou saindo em agosto de 2024.
A reportagem procurou especialistas do campo da bioética para comentar o tema. Segundo eles, não há, em linhas gerais, regulamentação sobre autoexperimentação.
Henderson Fürst de Oliveira, presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP, aponta que, apesar de não haver, na legislação brasileira, restrições, algumas situações podem exigir o dever de atuação de outras pessoas, por exemplo, se houve riscos de contaminação de terceiros.
“Internacionalmente também há um silêncio no tema”, afirma Oliveira.
Apesar de não podermos vender órgãos, por exemplo, temos autonomia sobre nossos corpos, afirma Elda Bussinguer, presidenta da Sociedade Brasileira de Bioética.
“Nós podemos fazer com nossos corpos o que nós quisermos. Estou dentro da minha esfera de liberdade. Eu posso fazer experimentos”, afirma a especialista em bioética. “Você não pode fazer no outro, mas em si próprio não há impedimento ético.”
Mas, além da ética, há questões que dizem respeito à própria pesquisa em si. Bussinguer destaca que o relato de um caso não significa nenhuma descoberta de cura.
E nisso, a própria Beata concorda.
“Temos que nos preocupar em deixar claro que este é apenas um caso e isso não significa que funcionará para todo mundo. Precisa ser estudado antes. Mas acho que pode dar ideias de como proceder mais rapidamente no desenvolvimento [dessas terapias].”
E, tentando impactar nessa área de pesquisa, a virologista diz que o foco do seu laboratório agora é outro. Terapias por vírus oncolíticos.