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19 Mar 2025, Wed


Reprodução Instituto Tricontinental

Neoliberalismo: constituição, atuação e influências

por Jairo Marchesan, Sandro Luiz Bazzanella e Cíntia Neves Godoi

Este artigo ampara-se na leitura da obra “A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal”, publicada pela Editora Boitempo (2016), especialmente dos Prefácios à Edição Brasileira e Inglesa dos autores Pierre Dardot e Christian Laval. Além da leitura, há contribuições reflexivas e analíticas dos autores, na perspectiva de compreender a constituição e atuação do neoliberalismo.

Urge a necessidade de se conhecer a história do neoliberalismo, suas transformações no tempo e no espaço e como se apresentam as suas influências na atualidade. Nesta direção, torna-se imperativo entender a sua gênese e funcionamento, as transformações, contradições, sua lógica local, regional e global de atuação e sua influência na sociedade contemporânea. Mais especificamente, trata-se de compreender as transformações do liberalismo, que, na atualidade se apresentam, sob certos aspectos, como neoliberalismo; mas, também, considerando que o neoliberalismo não se apresenta como mera extensão do liberalismo, senão como um regime de governamentalidade política, jurídica e econômica, de normatização e normalização individual social em função da salvaguarda da liberdade econômica. Afinal, segundo os autores, “O neoliberalismo transformou profundamente o capitalismo, transformando profundamente as sociedades” (Dardot; Laval, 2016, p. 7).

Neste sentido, o neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida (p. 7).

Nesta direção, é preciso, primeiramente, mesmo que brevemente, compreender a história ou as origens do liberalismo – a sua constituição –, a qual foi um movimento político, social, econômico e também acadêmico burguês europeu, que ocorreu a partir do século 17 contra os regimes monárquicos e absolutistas da época, e que desencadeou o então emergente e hegemônico modo de produção capitalista.

O liberalismo, como doutrina política, ideológica e institucional que combateu a nobreza europeia e, também, como movimento político econômico, alastrou-se desde as metrópoles europeias para as novas colônias da América, África e Ásia. Neste sentido, influenciou, senão determinou, a organização social, política e econômica dos Estados e demais organizações das sociedades europeias e coloniais.

No contexto da constituição do liberalismo, alguns dos seus ideólogos, tais como John Locke (1632-1704), Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823), preconizavam que o Estado, na condição de estrutura política, econômica e, sobretudo, administrativa, não poderia intervir ou prejudicar os movimentos, interesses ou as ações dos indivíduos e a livre concorrência. Deste modo, desde o princípio, o liberalismo valorizou e defendeu os interesses individuais ou privados em detrimento das condições coletivas ou públicas.

Assim, no século 17, John Locke propunha considerar o direito à propriedade como um direito natural sagrado que proporcionasse a base material a partir da qual, por meio do trabalho, os indivíduos asseguravam suas vidas e, por decorrência, o alcance da felicidade (Dardot; Laval, 2016). Vejam, o direito à propriedade privada se apresentava como um dos fundamentos constitutivos e determinantes na vida dos indivíduos, sobretudo para aqueles que possuíssem maiores posses. Constituíram-se, portanto, relações de poder que se estenderam para outros contextos; afinal, a própria concepção de posse da terra, por exemplo, denota domínio territorial, poder, valor, utilidade, concorrência e competição. Paralelamente, emergiu e instaurou-se a livre concorrência nas relações de posse da terra, de trocas e comércio de mercadorias, produtos, bens, serviços e até da exploração humana, inclusive por meio da escravização de povos nas colônias da América, da África e da Ásia.

O liberalismo político e econômico fundamentou-se, igualmente, nas concepções do evolucionismo biológico, da seleção natural, da lei da natureza e do darwinismo social, as quais passaram a interferir, senão embasar e guiar o liberalismo e, consequentemente, a sociedade. Posteriormente, a mesma lógica se reproduziu no modo de produção capitalista e, na atualidade, com o neoliberalismo. Isso significa que certas interpretações que se pretendia serem científicas estabeleceram correlações entre a teoria e o processo da evolução biológica das espécies com as condições de competitividade econômica dos indivíduos entre si, sobrevivendo os mais fortes. Desdobra-se desta condição a concepção de que a sociedade é o conjunto de indivíduos em constante competição e luta pela sobrevivência.

  Esta perspectiva teórica justifica, então, a competição entre os indivíduos ou espécies da natureza e, da mesma forma, que tal condição pode ou será transferida para a sociedade humana nas suas relações e condições de vida. Sob tais pressupostos de competitividade, afirmam-se as ideias de concorrência, livre iniciativa, progresso e crescimento econômico. Por outro lado, aqueles que não conseguem concorrer ou sobreviver ao processo são excluídos ou deixados à própria sorte (Dardot; Laval, 2016, p. 53).

Desta maneira, desde o princípio das discussões sobre liberalismo, estiveram implícitas ideias e concepções de que cada indivíduo era responsável pelo seu sucesso ou fracasso pessoal, ou seja, as vitórias ou derrotas dependiam exclusivamente de cada indivíduo. Nesta direção, o acesso aos víveres, posses de bens, sucesso econômico e melhores condições de vida seriam resultado do trabalho, da gestão do interesse próprio, do tempo e dos recursos vitais e naturais que estivessem à disposição dos indivíduos. Esse discurso continua atual e reproduzido como forma de manutenção do modus operandi capitalista.

Da mesma maneira como ocorreu com o processo de colonialismo das metrópoles europeias sobre as colônias, também com o liberalismo, o capitalismo e, mais recentemente, o neoliberalismo, estabeleceram-se relações de poder e superioridade de uns e inferioridade de outros. Paralelamente, tais situações foram e continuam sendo, deliberadamente e impositivamente, relações e implicações, subjugação e subjetivação de povos, mediante instrumentos econômicos impositivos, coercitivos e de dominação, escravização e exploração de povos e territórios.

Antes de ser um modelo ou projeto político-econômico, o liberalismo foi e é uma doutrina, senão uma racionalidade, tanto estatal quanto societária, que se materializa no contexto do modo de produção capitalista. Em tal racionalidade, sempre esteve implícita a ideia do progresso, do desenvolvimento econômico, da prosperidade, do sucesso, da produção e da acumulação ilimitada e a qualquer custo. Entende-se por racionalidade um conjunto de concepções, percepções, crenças e ações que se materializam nas relações de poder – sociais, políticas, jurídicas e econômicas –, constitutivas do regime de governamentalidade das sociedades ocidentais.

Por algum tempo, os Estados modernos, inclusive os contemporâneos, foram importantes apoios para o desenvolvimento e consolidação do capitalismo. No caso do Brasil, principalmente a partir da Segunda Guerra Mundial, o Estado contribuiu significativamente por meio de acordos de cooperação, subsídios e empréstimos, dentre outras estratégias, para o desenvolvimento econômico capitalista em vários setores, dentre os quais, da indústria siderúrgica, da agricultura, das comunicações e da energia.

Sobre estas questões, Dardot e Laval (2016) apontam, no Prefácio à Edição Brasileira, que:

Compreender politicamente o neoliberalismo pressupõe que se compreenda a natureza do projeto social e político que ele representa e promove desde os anos 1930. Ele traz em si uma ideia muito particular da democracia que, sob muitos aspectos, deriva de um antidemocratismo: o direito privado deveria ser isentado de qualquer deliberação e qualquer controle mesmo sob a forma do sufrágio universal. Essa é a razão pela qual a lógica não controlada de autofortalecimento e radicalização do neoliberalismo obedece, hoje, a um cenário histórico que não é o dos anos1930, quando ocorreu uma revisão das doutrinas e das políticas do “Laissez-faire”. Esse sistema fechado impede qualquer autocorreção de trajetória, em particular em razão da desativação do jogo democrático e até mesmo, sob certos aspectos, da política como atividade. O sistema neoliberal está nos fazendo entrar na era pós-democrática (p. 8).

Nesta direção, os autores nos convidam a compreender a geopolítica da época, as revisões doutrinárias do liberalismo, a expansão capitalista no mundo e, sobretudo, as características da individualização e os regimes de concorrência aos quais as pessoas estão submetidas em todos os níveis e esferas da sociedade. Afinal, o neoliberalismo apresenta-se sob certa perspectiva de análise como a reabilitação do laissez-faire (Dardot; Laval, 2016, p. 14).

Ainda no contexto do liberalismo, mais tarde, frente à crise do regime de acumulação capitalista, especialmente nas décadas de 1970 e 1980, ampliaram-se os movimentos, a difusão e a implementação de políticas neoliberais mundo afora, por meio da globalização política e econômica.

Nesta fase, o capitalismo se apresenta como a face mais perversa, violenta e cruel, conforme asseveram Dardot e Laval (2016):

[…] a história do capitalismo nunca é mais do que o desenvolvimento de uma mesma essência sempre idêntica a si mesma, aquém de suas formas fenomenais e fases, e, no fundo, leva de crise em crise até a ruína final (p. 22).

            Neste contexto capitalista, convive-se, mundialmente, com latentes e crescentes problemas sociais, dentre os quais as guerras, o desemprego, a fome, a violência, a insegurança, a concentração da riqueza social e mundialmente produzida, o avanço da miséria e da pobreza no mundo e tantas outras situações de destruição do ambiente físico natural, que afetam a qualidade de vida das pessoas e de outras formas de vida.

Sobre isso, é oportuno lembrar que, dentre as características fundantes do capitalismo, incluem-se a geração e os movimentos por crises recorrentes, as quais estão sempre imbricadas, direta ou indiretamente, sobre os sistemas de produção, distribuição, consumo, acumulação e, principalmente, de especulação. A partir da consolidação do neoliberalismo, as crises são, sobretudo, econômico-financeiras, ou ainda, denominadas ou vinculadas ao mercado financeiro. Assim, são crises geradas por agentes especuladores do mercado financeiro. Lembremos das crises da Argentina (1990), do México (1994), asiáticas (1997 a 1999), do México (1994), mundial de 2008, da Grécia (2009 e 2010) e de tantas outras mundo afora.

Dentre os elementos da gênese ou fundantes do neoliberalismo, é o próprio liberalismo que apregoa a plena liberdade à concorrência mercantil e, mais recentemente, o crescente enfraquecimento e desmonte dos Estados Nacionais, por meio, principalmente, das privatizações, para que possa operar com maior liberdade e “eficiência” nos processos de acumulação de capital. Ou seja, o Estado e suas instituições, que atuam ou deveriam atuar como reguladores ou mediadores entre capital e trabalho são, por um lado, considerados obstáculos para este projeto político ou modelo de economia e, portanto, precisam ser diminuídos, senão extirpados; por outro, se o neoliberalismo precisa do Estado, em sua condição mínima, na produção e na geração da riqueza, ele também necessita do Estado em sua condição máxima, para direcionar recursos financeiros a setores produtivos poderosos, bem como, para fazer uso, como detentor do legítimo direito de uso da força, contra todo e qualquer indivíduo, grupos humanos, movimentos, sindicatos, trabalhadores formais, informações, plataformizados ou precarizados que ousarem se contrapor ao regime de acumulação de capital em curso.

Assim, o neoliberalismo não é apenas uma política ou economia neoliberal, mas constitui uma sociedade neoliberal (Dardot; Laval, 2016, p. 26).

De maneira geral, o capitalismo foi imposto e apresentado como atrativo e contagiante para a maior parte da sociedade. Vende, constantemente, sonhos, utopias e ilusões de consumo e felicidade. Para isso, se utiliza de exemplos concretos de quem estava na pobreza e alcançou a prosperidade e a riqueza. Tal racionalidade atua em todas as relações – sociais, religiosas, políticas, econômicas e psíquicas, entre outras. É evidente, no entanto, que a maioria da sociedade não terá acesso e nem receberá, às vezes, nem minimamente, o que lhe foi prometido!

De igual modo, o neoliberalismo “produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades” (Dardot; Laval, 2016, p. 16), ou seja, o neoliberalismo produz a forma da nossa existência: “como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos” (Ibidem, p. 16). Deste modo, o neoliberalismo induz as sociedades a reproduzirem seus interesses de subjetivação e, assim, manterem a lógica da produtividade econômica, do consumismo e do descarte.

O neoliberalismo faz com que vivamos em plena concorrência, e nos conduz a aceitar, ou pior, a naturalizar as desigualdades socioeconômicas. Na lógica produtiva em curso, induz as pessoas a se comportarem como empresas, como sujeitos produtivos, competitivos, individualizados e egoístas.

Neste cenário, o neoliberalismo também reforça isso sistematicamente, conforme afirmado por Dardot e Laval:

Essa norma impõe a cada um de nós que vivamos em uma competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo de mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa (2016, p. 16).

            O neoliberalismo promove nos indivíduos o estímulo à “liberdade” como condição de conceder-lhes pretensa autonomia. E liberdade significa fazer o quê, quando e como se quer! Ou, dito de outra forma, no contexto neoliberal liberdade é a condição de indivíduos ensimesmados, plenos produtores (capital humano) e plenos consumidores, empresários de si mesmos, empreendedores a otimizarem sua condição laboral e vital desvencilhados de todo e qualquer compromisso, ou constrangimento social.

          Por este motivo, os autores defendem a tese de que o neoliberalismo é além de uma ideologia econômica. Para eles, é basicamente e fundamentalmente uma racionalidade (Dardot; Laval, 2016, p. 17). Dito de outro modo, o neoliberalismo vai além das questões econômicas, atingindo os aspectos psíquicos dos indivíduos. Afirmam, ainda, que envolve governantes e governados em um modelo de subjetivação. A isso, Foucault (2004, apud Dardot; Laval, 2016) denomina de razão de governamentalidade. Governar com instrumentos, poderes, técnicas e procedimentos destinados a conduzir ou dirigir a conduta das pessoas, “Porque o neoliberalismo não é apenas uma resposta a uma crise de acumulação, ele é uma resposta a uma crise de governamentalidade” (Dardot; Laval, 2016, p. 26).

          Para Foucault (1926 – 1984) (2004, apud Dardot; Laval, 2016), governamentalidade é o governo da vida das pessoas, ou seja, como conduzi-las, fazê-las crer, influenciá-las, enfim, governá-las de acordo com certa racionalidade.

Deste modo, “a concorrência e o modelo empresarial constituem um modo geral de governo” – a governamentalidade (Dardot; Laval, 2016, p. 16). Assim, o neoliberalismo é uma racionalidade da existência que captura aspectos subjetivos dos indivíduos – antropológicos –, em razão de que “O neoliberalismo emprega técnicas de poder inéditas sobre as condutas e subjetividades” (Ibidem, p. 21).

Para os autores, portanto, “O neoliberalismo é o portador de um processo de mercantilização generalizada das relações sociais” (Dardot; Laval, 2016, p. 23), o que David Harvey (2005, apud Dardot; Laval, 2016), por sua vez, denomina de neoliberalização da sociedade.

Por isso mesmo, no contexto da sociedade atual, o neoliberalismo capturou ou sequestrou a subjetividade dos indivíduos, tornando-os cada vez mais individualistas, competitivos e consumistas, em detrimento de perspectivas coletivas ou societárias.

Nesta direção, convive-se com crises societárias, decorrentes do regime de acumulação capitalista (financeira e de acumulação) e das crises do neoliberalismo, que não entregam à sociedade o que lhes é prometido e que, por consequência, desdobram-se em novas crises: insegurança física, problemas de saúde mental ou psíquica, de informações, influência e mentiras via big techs, ambiental, polarização entre classes e ideologias. Tudo isso promove um quadro de ataques sistemáticos aos indivíduos, à democracia, às instituições estatais, gerando conflito e um clima de tensão e inseguranças, inclusive de vida. Para os autores, “A crise que atravessamos aparece como aquilo que é: uma crise global do neoliberalismo como modo de governar as sociedades” (Dardot; Laval, 2016, p. 27). Eles asseveram, ainda, que “A crise mundial é uma crise geral de governamentalidade neoliberal” (p. 27), isto é, de um modo de governo das economias e das sociedades baseado na generalização do mercado e da concorrência.

          Neste sentido, a concorrência é o “dispositivo” ou imperativo utilizado em todos os contextos da vida das pessoas, seja no âmbito familiar, social, político, nos setores empresariais e nas demais instituições de modo geral. Isso leva o sujeito a se constituir, agir e se reproduzir como “capital humano” – produtivo, competitivo ou concorrente até de si mesmo.

É importante mencionar que os Estados Nacionais contribuíram para o estabelecimento desta situação de crises, na medida em que aderiram, de modo voluntário, por opção ou por coação do mercado, às influências das grandes corporações. Muitos Estados deixaram de ser, e outros estão longe, ou ainda, ignoram que são entes mediadores ou reguladores das relações entre capital e trabalho, para se lançarem nos braços ou a serviço do capital, seja produtivo, especulativo ou pelo neoliberalismo, como um desdobramento do capitalismo. Claro, de forma histórica os Estados foram apropriados, senão sequestrados pelas elites econômicas, e isso é perceptível quando, por exemplo, os Ministros de Estado – normalmente e especialmente os da Economia ou da Fazenda –, são especulados e posteriormente indicados ou escolhidos para o cargo por serem agentes de mercado!

Há contínuas narrativas em curso de que o Estado é lento e burocrático, entre outros adjetivos, contudo, estas são geradas para forçar o Estado a fazer o jogo ou atuar de acordo com os interesses do capital.

Está em andamento uma concorrência mercantil, simbólica e de vida incompatível, destoante da realidade e que não permite uma paridade, em virtude dos níveis de desigualdade e parâmetros de competição. Para isso, um conjunto de possibilidades é acionado, com o intuito de potencializar nos indivíduos pensamentos e ações de liberdade, inclusive econômicas! Por este motivo, são usados termos como desregulamentar, desburocratizar, reduzir ou até acabar com o Estado, ou seja, “desdemocratizar” e estimular a competitividade.

Atualmente, em termos econômicos, de mercado e instituições, as investidas neoliberais atuam para desmontar os parcos avanços dos Estados e as conquistas sociais, por meio da mercantilização de setores básicos da sociedade, tais como educação, saúde, segurança, energia, transportes, saneamento básico e outros.

Já em termos de governamentalidade, as intenções e práticas neoliberais incluem cooptar a sociedade, sobretudo os trabalhadores, com narrativas de liberdade, de autonomia e captura das subjetividades, visando moldar o comportamento dos indivíduos e torná-los meramente consumidores de produtos. Sobre esta questão, Dardot e Laval afirmam que “O neoliberalismo é um sistema de normas que hoje estão profundamente inscritas nas práticas governamentais, nas políticas institucionais, nos estilos gerenciais” (2016, p. 30). Ou seja, esse projeto neoliberal penetrou nos Estados e alastrou-se na sociedade.

Neste cenário, os sujeitos são assujeitados pelo sistema capitalista em sua versão neoliberal e levados a serem concorrentes de si mesmos, como protótipos ou comparados a empresas! São conduzidos a pensar e agir como empreendedores, empresários de si mesmos, potencialmente produtivos, não mais como trabalhadores, mas colaboradores, ou seja, estão implícitas concepções e práticas de produtivismo sistemático, do lucro e da individualização. Aliás, isso ocorre nas instituições, nas empresas e em outros setores, e constitui-se numa racionalidade de produção e consumo.

Este artigo teve a intenção de trazer algumas interpretações e reflexões a partir da leitura da obra “A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal”, publicada pela Editora Boitempo (2016), especialmente dos Prefácios à Edição Brasileira e Inglesa dos autores Pierre Dardot e Christian Laval. Trata-se de uma oportunidade para melhor compreender a constituição do liberalismo, que se apresenta na contemporaneidade na forma de neoliberalismo. O neoliberalismo se apresenta na atualidade como visão de mundo, como modo de ser, produzir, explorar e expropriar a vida em sua totalidade. Afinal, o neoliberalismo apresenta-se como a atual faceta do capitalismo e sua falaciosa estratégia de mercado. Mas, o que é o mercado? O mercado é, na atualidade, a forma por excelência de exploração e destruição das relações humanas entre si e da sociedade humana com o ambiente. É bom lembrar, no entanto, que relações comerciais ou de mercado, sejam elas trocas de produtos por produtos ou de serviços entre pessoas e grupos humanos, são muito anteriores ao capitalismo, e, nas atuais relações capitalistas ou de mercado, pautadas e executadas sobretudo na lógica de uma economia financeirizada, as relações são hostis e de muita exploração dos humanos entre si e destes sobre o ambiente físico natural.

Por outro lado, há e ocorrem outros modos de viver, inclusive discussões que fazem uso de ideias advindas das mais diversas ciências, entre elas as naturais, que alegam que os indivíduos que cooperam têm mais chances e possibilidades de resistir, sobreviver, serem prósperos e bem-sucedidos ou de conviverem de modo mais harmonioso entre humanos e com a natureza. Tais situações e condições se contrapõem às do neoliberalismo, mas este pode e deve ser tema de outras, novas e oportunas discussões.

REFERÊNCIAS

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.

Autores:
Jairo Marchesan – Geógrafo. E-mail: [email protected]
Sandro Luiz Bazzanella – Filósofo: E-mail: [email protected] 
Cíntia Neves Godoi – Geógrafa: E-mail: [email protected]

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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Neoliberalismo: constituição, atuação e influências

por Jairo Marchesan, Sandro Luiz Bazzanella e Cíntia Neves Godoi

Este artigo ampara-se na leitura da obra “A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal”, publicada pela Editora Boitempo (2016), especialmente dos Prefácios à Edição Brasileira e Inglesa dos autores Pierre Dardot e Christian Laval. Além da leitura, há contribuições reflexivas e analíticas dos autores, na perspectiva de compreender a constituição e atuação do neoliberalismo.

Urge a necessidade de se conhecer a história do neoliberalismo, suas transformações no tempo e no espaço e como se apresentam as suas influências na atualidade. Nesta direção, torna-se imperativo entender a sua gênese e funcionamento, as transformações, contradições, sua lógica local, regional e global de atuação e sua influência na sociedade contemporânea. Mais especificamente, trata-se de compreender as transformações do liberalismo, que, na atualidade se apresentam, sob certos aspectos, como neoliberalismo; mas, também, considerando que o neoliberalismo não se apresenta como mera extensão do liberalismo, senão como um regime de governamentalidade política, jurídica e econômica, de normatização e normalização individual social em função da salvaguarda da liberdade econômica. Afinal, segundo os autores, “O neoliberalismo transformou profundamente o capitalismo, transformando profundamente as sociedades” (Dardot; Laval, 2016, p. 7).

Neste sentido, o neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida (p. 7).

Nesta direção, é preciso, primeiramente, mesmo que brevemente, compreender a história ou as origens do liberalismo – a sua constituição –, a qual foi um movimento político, social, econômico e também acadêmico burguês europeu, que ocorreu a partir do século 17 contra os regimes monárquicos e absolutistas da época, e que desencadeou o então emergente e hegemônico modo de produção capitalista.

O liberalismo, como doutrina política, ideológica e institucional que combateu a nobreza europeia e, também, como movimento político econômico, alastrou-se desde as metrópoles europeias para as novas colônias da América, África e Ásia. Neste sentido, influenciou, senão determinou, a organização social, política e econômica dos Estados e demais organizações das sociedades europeias e coloniais.

No contexto da constituição do liberalismo, alguns dos seus ideólogos, tais como John Locke (1632-1704), Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823), preconizavam que o Estado, na condição de estrutura política, econômica e, sobretudo, administrativa, não poderia intervir ou prejudicar os movimentos, interesses ou as ações dos indivíduos e a livre concorrência. Deste modo, desde o princípio, o liberalismo valorizou e defendeu os interesses individuais ou privados em detrimento das condições coletivas ou públicas.

Assim, no século 17, John Locke propunha considerar o direito à propriedade como um direito natural sagrado que proporcionasse a base material a partir da qual, por meio do trabalho, os indivíduos asseguravam suas vidas e, por decorrência, o alcance da felicidade (Dardot; Laval, 2016). Vejam, o direito à propriedade privada se apresentava como um dos fundamentos constitutivos e determinantes na vida dos indivíduos, sobretudo para aqueles que possuíssem maiores posses. Constituíram-se, portanto, relações de poder que se estenderam para outros contextos; afinal, a própria concepção de posse da terra, por exemplo, denota domínio territorial, poder, valor, utilidade, concorrência e competição. Paralelamente, emergiu e instaurou-se a livre concorrência nas relações de posse da terra, de trocas e comércio de mercadorias, produtos, bens, serviços e até da exploração humana, inclusive por meio da escravização de povos nas colônias da América, da África e da Ásia.

O liberalismo político e econômico fundamentou-se, igualmente, nas concepções do evolucionismo biológico, da seleção natural, da lei da natureza e do darwinismo social, as quais passaram a interferir, senão embasar e guiar o liberalismo e, consequentemente, a sociedade. Posteriormente, a mesma lógica se reproduziu no modo de produção capitalista e, na atualidade, com o neoliberalismo. Isso significa que certas interpretações que se pretendia serem científicas estabeleceram correlações entre a teoria e o processo da evolução biológica das espécies com as condições de competitividade econômica dos indivíduos entre si, sobrevivendo os mais fortes. Desdobra-se desta condição a concepção de que a sociedade é o conjunto de indivíduos em constante competição e luta pela sobrevivência.

  Esta perspectiva teórica justifica, então, a competição entre os indivíduos ou espécies da natureza e, da mesma forma, que tal condição pode ou será transferida para a sociedade humana nas suas relações e condições de vida. Sob tais pressupostos de competitividade, afirmam-se as ideias de concorrência, livre iniciativa, progresso e crescimento econômico. Por outro lado, aqueles que não conseguem concorrer ou sobreviver ao processo são excluídos ou deixados à própria sorte (Dardot; Laval, 2016, p. 53).

Desta maneira, desde o princípio das discussões sobre liberalismo, estiveram implícitas ideias e concepções de que cada indivíduo era responsável pelo seu sucesso ou fracasso pessoal, ou seja, as vitórias ou derrotas dependiam exclusivamente de cada indivíduo. Nesta direção, o acesso aos víveres, posses de bens, sucesso econômico e melhores condições de vida seriam resultado do trabalho, da gestão do interesse próprio, do tempo e dos recursos vitais e naturais que estivessem à disposição dos indivíduos. Esse discurso continua atual e reproduzido como forma de manutenção do modus operandi capitalista.

Da mesma maneira como ocorreu com o processo de colonialismo das metrópoles europeias sobre as colônias, também com o liberalismo, o capitalismo e, mais recentemente, o neoliberalismo, estabeleceram-se relações de poder e superioridade de uns e inferioridade de outros. Paralelamente, tais situações foram e continuam sendo, deliberadamente e impositivamente, relações e implicações, subjugação e subjetivação de povos, mediante instrumentos econômicos impositivos, coercitivos e de dominação, escravização e exploração de povos e territórios.

Antes de ser um modelo ou projeto político-econômico, o liberalismo foi e é uma doutrina, senão uma racionalidade, tanto estatal quanto societária, que se materializa no contexto do modo de produção capitalista. Em tal racionalidade, sempre esteve implícita a ideia do progresso, do desenvolvimento econômico, da prosperidade, do sucesso, da produção e da acumulação ilimitada e a qualquer custo. Entende-se por racionalidade um conjunto de concepções, percepções, crenças e ações que se materializam nas relações de poder – sociais, políticas, jurídicas e econômicas –, constitutivas do regime de governamentalidade das sociedades ocidentais.

Por algum tempo, os Estados modernos, inclusive os contemporâneos, foram importantes apoios para o desenvolvimento e consolidação do capitalismo. No caso do Brasil, principalmente a partir da Segunda Guerra Mundial, o Estado contribuiu significativamente por meio de acordos de cooperação, subsídios e empréstimos, dentre outras estratégias, para o desenvolvimento econômico capitalista em vários setores, dentre os quais, da indústria siderúrgica, da agricultura, das comunicações e da energia.

Sobre estas questões, Dardot e Laval (2016) apontam, no Prefácio à Edição Brasileira, que:

Compreender politicamente o neoliberalismo pressupõe que se compreenda a natureza do projeto social e político que ele representa e promove desde os anos 1930. Ele traz em si uma ideia muito particular da democracia que, sob muitos aspectos, deriva de um antidemocratismo: o direito privado deveria ser isentado de qualquer deliberação e qualquer controle mesmo sob a forma do sufrágio universal. Essa é a razão pela qual a lógica não controlada de autofortalecimento e radicalização do neoliberalismo obedece, hoje, a um cenário histórico que não é o dos anos1930, quando ocorreu uma revisão das doutrinas e das políticas do “Laissez-faire”. Esse sistema fechado impede qualquer autocorreção de trajetória, em particular em razão da desativação do jogo democrático e até mesmo, sob certos aspectos, da política como atividade. O sistema neoliberal está nos fazendo entrar na era pós-democrática (p. 8).

Nesta direção, os autores nos convidam a compreender a geopolítica da época, as revisões doutrinárias do liberalismo, a expansão capitalista no mundo e, sobretudo, as características da individualização e os regimes de concorrência aos quais as pessoas estão submetidas em todos os níveis e esferas da sociedade. Afinal, o neoliberalismo apresenta-se sob certa perspectiva de análise como a reabilitação do laissez-faire (Dardot; Laval, 2016, p. 14).

Ainda no contexto do liberalismo, mais tarde, frente à crise do regime de acumulação capitalista, especialmente nas décadas de 1970 e 1980, ampliaram-se os movimentos, a difusão e a implementação de políticas neoliberais mundo afora, por meio da globalização política e econômica.

Nesta fase, o capitalismo se apresenta como a face mais perversa, violenta e cruel, conforme asseveram Dardot e Laval (2016):

[…] a história do capitalismo nunca é mais do que o desenvolvimento de uma mesma essência sempre idêntica a si mesma, aquém de suas formas fenomenais e fases, e, no fundo, leva de crise em crise até a ruína final (p. 22).

            Neste contexto capitalista, convive-se, mundialmente, com latentes e crescentes problemas sociais, dentre os quais as guerras, o desemprego, a fome, a violência, a insegurança, a concentração da riqueza social e mundialmente produzida, o avanço da miséria e da pobreza no mundo e tantas outras situações de destruição do ambiente físico natural, que afetam a qualidade de vida das pessoas e de outras formas de vida.

Sobre isso, é oportuno lembrar que, dentre as características fundantes do capitalismo, incluem-se a geração e os movimentos por crises recorrentes, as quais estão sempre imbricadas, direta ou indiretamente, sobre os sistemas de produção, distribuição, consumo, acumulação e, principalmente, de especulação. A partir da consolidação do neoliberalismo, as crises são, sobretudo, econômico-financeiras, ou ainda, denominadas ou vinculadas ao mercado financeiro. Assim, são crises geradas por agentes especuladores do mercado financeiro. Lembremos das crises da Argentina (1990), do México (1994), asiáticas (1997 a 1999), do México (1994), mundial de 2008, da Grécia (2009 e 2010) e de tantas outras mundo afora.

Dentre os elementos da gênese ou fundantes do neoliberalismo, é o próprio liberalismo que apregoa a plena liberdade à concorrência mercantil e, mais recentemente, o crescente enfraquecimento e desmonte dos Estados Nacionais, por meio, principalmente, das privatizações, para que possa operar com maior liberdade e “eficiência” nos processos de acumulação de capital. Ou seja, o Estado e suas instituições, que atuam ou deveriam atuar como reguladores ou mediadores entre capital e trabalho são, por um lado, considerados obstáculos para este projeto político ou modelo de economia e, portanto, precisam ser diminuídos, senão extirpados; por outro, se o neoliberalismo precisa do Estado, em sua condição mínima, na produção e na geração da riqueza, ele também necessita do Estado em sua condição máxima, para direcionar recursos financeiros a setores produtivos poderosos, bem como, para fazer uso, como detentor do legítimo direito de uso da força, contra todo e qualquer indivíduo, grupos humanos, movimentos, sindicatos, trabalhadores formais, informações, plataformizados ou precarizados que ousarem se contrapor ao regime de acumulação de capital em curso.

Assim, o neoliberalismo não é apenas uma política ou economia neoliberal, mas constitui uma sociedade neoliberal (Dardot; Laval, 2016, p. 26).

De maneira geral, o capitalismo foi imposto e apresentado como atrativo e contagiante para a maior parte da sociedade. Vende, constantemente, sonhos, utopias e ilusões de consumo e felicidade. Para isso, se utiliza de exemplos concretos de quem estava na pobreza e alcançou a prosperidade e a riqueza. Tal racionalidade atua em todas as relações – sociais, religiosas, políticas, econômicas e psíquicas, entre outras. É evidente, no entanto, que a maioria da sociedade não terá acesso e nem receberá, às vezes, nem minimamente, o que lhe foi prometido!

De igual modo, o neoliberalismo “produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades” (Dardot; Laval, 2016, p. 16), ou seja, o neoliberalismo produz a forma da nossa existência: “como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos” (Ibidem, p. 16). Deste modo, o neoliberalismo induz as sociedades a reproduzirem seus interesses de subjetivação e, assim, manterem a lógica da produtividade econômica, do consumismo e do descarte.

O neoliberalismo faz com que vivamos em plena concorrência, e nos conduz a aceitar, ou pior, a naturalizar as desigualdades socioeconômicas. Na lógica produtiva em curso, induz as pessoas a se comportarem como empresas, como sujeitos produtivos, competitivos, individualizados e egoístas.

Neste cenário, o neoliberalismo também reforça isso sistematicamente, conforme afirmado por Dardot e Laval:

Essa norma impõe a cada um de nós que vivamos em uma competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo de mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa (2016, p. 16).

            O neoliberalismo promove nos indivíduos o estímulo à “liberdade” como condição de conceder-lhes pretensa autonomia. E liberdade significa fazer o quê, quando e como se quer! Ou, dito de outra forma, no contexto neoliberal liberdade é a condição de indivíduos ensimesmados, plenos produtores (capital humano) e plenos consumidores, empresários de si mesmos, empreendedores a otimizarem sua condição laboral e vital desvencilhados de todo e qualquer compromisso, ou constrangimento social.

          Por este motivo, os autores defendem a tese de que o neoliberalismo é além de uma ideologia econômica. Para eles, é basicamente e fundamentalmente uma racionalidade (Dardot; Laval, 2016, p. 17). Dito de outro modo, o neoliberalismo vai além das questões econômicas, atingindo os aspectos psíquicos dos indivíduos. Afirmam, ainda, que envolve governantes e governados em um modelo de subjetivação. A isso, Foucault (2004, apud Dardot; Laval, 2016) denomina de razão de governamentalidade. Governar com instrumentos, poderes, técnicas e procedimentos destinados a conduzir ou dirigir a conduta das pessoas, “Porque o neoliberalismo não é apenas uma resposta a uma crise de acumulação, ele é uma resposta a uma crise de governamentalidade” (Dardot; Laval, 2016, p. 26).

          Para Foucault (1926 – 1984) (2004, apud Dardot; Laval, 2016), governamentalidade é o governo da vida das pessoas, ou seja, como conduzi-las, fazê-las crer, influenciá-las, enfim, governá-las de acordo com certa racionalidade.

Deste modo, “a concorrência e o modelo empresarial constituem um modo geral de governo” – a governamentalidade (Dardot; Laval, 2016, p. 16). Assim, o neoliberalismo é uma racionalidade da existência que captura aspectos subjetivos dos indivíduos – antropológicos –, em razão de que “O neoliberalismo emprega técnicas de poder inéditas sobre as condutas e subjetividades” (Ibidem, p. 21).

Para os autores, portanto, “O neoliberalismo é o portador de um processo de mercantilização generalizada das relações sociais” (Dardot; Laval, 2016, p. 23), o que David Harvey (2005, apud Dardot; Laval, 2016), por sua vez, denomina de neoliberalização da sociedade.

Por isso mesmo, no contexto da sociedade atual, o neoliberalismo capturou ou sequestrou a subjetividade dos indivíduos, tornando-os cada vez mais individualistas, competitivos e consumistas, em detrimento de perspectivas coletivas ou societárias.

Nesta direção, convive-se com crises societárias, decorrentes do regime de acumulação capitalista (financeira e de acumulação) e das crises do neoliberalismo, que não entregam à sociedade o que lhes é prometido e que, por consequência, desdobram-se em novas crises: insegurança física, problemas de saúde mental ou psíquica, de informações, influência e mentiras via big techs, ambiental, polarização entre classes e ideologias. Tudo isso promove um quadro de ataques sistemáticos aos indivíduos, à democracia, às instituições estatais, gerando conflito e um clima de tensão e inseguranças, inclusive de vida. Para os autores, “A crise que atravessamos aparece como aquilo que é: uma crise global do neoliberalismo como modo de governar as sociedades” (Dardot; Laval, 2016, p. 27). Eles asseveram, ainda, que “A crise mundial é uma crise geral de governamentalidade neoliberal” (p. 27), isto é, de um modo de governo das economias e das sociedades baseado na generalização do mercado e da concorrência.

          Neste sentido, a concorrência é o “dispositivo” ou imperativo utilizado em todos os contextos da vida das pessoas, seja no âmbito familiar, social, político, nos setores empresariais e nas demais instituições de modo geral. Isso leva o sujeito a se constituir, agir e se reproduzir como “capital humano” – produtivo, competitivo ou concorrente até de si mesmo.

É importante mencionar que os Estados Nacionais contribuíram para o estabelecimento desta situação de crises, na medida em que aderiram, de modo voluntário, por opção ou por coação do mercado, às influências das grandes corporações. Muitos Estados deixaram de ser, e outros estão longe, ou ainda, ignoram que são entes mediadores ou reguladores das relações entre capital e trabalho, para se lançarem nos braços ou a serviço do capital, seja produtivo, especulativo ou pelo neoliberalismo, como um desdobramento do capitalismo. Claro, de forma histórica os Estados foram apropriados, senão sequestrados pelas elites econômicas, e isso é perceptível quando, por exemplo, os Ministros de Estado – normalmente e especialmente os da Economia ou da Fazenda –, são especulados e posteriormente indicados ou escolhidos para o cargo por serem agentes de mercado!

Há contínuas narrativas em curso de que o Estado é lento e burocrático, entre outros adjetivos, contudo, estas são geradas para forçar o Estado a fazer o jogo ou atuar de acordo com os interesses do capital.

Está em andamento uma concorrência mercantil, simbólica e de vida incompatível, destoante da realidade e que não permite uma paridade, em virtude dos níveis de desigualdade e parâmetros de competição. Para isso, um conjunto de possibilidades é acionado, com o intuito de potencializar nos indivíduos pensamentos e ações de liberdade, inclusive econômicas! Por este motivo, são usados termos como desregulamentar, desburocratizar, reduzir ou até acabar com o Estado, ou seja, “desdemocratizar” e estimular a competitividade.

Atualmente, em termos econômicos, de mercado e instituições, as investidas neoliberais atuam para desmontar os parcos avanços dos Estados e as conquistas sociais, por meio da mercantilização de setores básicos da sociedade, tais como educação, saúde, segurança, energia, transportes, saneamento básico e outros.

Já em termos de governamentalidade, as intenções e práticas neoliberais incluem cooptar a sociedade, sobretudo os trabalhadores, com narrativas de liberdade, de autonomia e captura das subjetividades, visando moldar o comportamento dos indivíduos e torná-los meramente consumidores de produtos. Sobre esta questão, Dardot e Laval afirmam que “O neoliberalismo é um sistema de normas que hoje estão profundamente inscritas nas práticas governamentais, nas políticas institucionais, nos estilos gerenciais” (2016, p. 30). Ou seja, esse projeto neoliberal penetrou nos Estados e alastrou-se na sociedade.

Neste cenário, os sujeitos são assujeitados pelo sistema capitalista em sua versão neoliberal e levados a serem concorrentes de si mesmos, como protótipos ou comparados a empresas! São conduzidos a pensar e agir como empreendedores, empresários de si mesmos, potencialmente produtivos, não mais como trabalhadores, mas colaboradores, ou seja, estão implícitas concepções e práticas de produtivismo sistemático, do lucro e da individualização. Aliás, isso ocorre nas instituições, nas empresas e em outros setores, e constitui-se numa racionalidade de produção e consumo.

Este artigo teve a intenção de trazer algumas interpretações e reflexões a partir da leitura da obra “A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal”, publicada pela Editora Boitempo (2016), especialmente dos Prefácios à Edição Brasileira e Inglesa dos autores Pierre Dardot e Christian Laval. Trata-se de uma oportunidade para melhor compreender a constituição do liberalismo, que se apresenta na contemporaneidade na forma de neoliberalismo. O neoliberalismo se apresenta na atualidade como visão de mundo, como modo de ser, produzir, explorar e expropriar a vida em sua totalidade. Afinal, o neoliberalismo apresenta-se como a atual faceta do capitalismo e sua falaciosa estratégia de mercado. Mas, o que é o mercado? O mercado é, na atualidade, a forma por excelência de exploração e destruição das relações humanas entre si e da sociedade humana com o ambiente. É bom lembrar, no entanto, que relações comerciais ou de mercado, sejam elas trocas de produtos por produtos ou de serviços entre pessoas e grupos humanos, são muito anteriores ao capitalismo, e, nas atuais relações capitalistas ou de mercado, pautadas e executadas sobretudo na lógica de uma economia financeirizada, as relações são hostis e de muita exploração dos humanos entre si e destes sobre o ambiente físico natural.

Por outro lado, há e ocorrem outros modos de viver, inclusive discussões que fazem uso de ideias advindas das mais diversas ciências, entre elas as naturais, que alegam que os indivíduos que cooperam têm mais chances e possibilidades de resistir, sobreviver, serem prósperos e bem-sucedidos ou de conviverem de modo mais harmonioso entre humanos e com a natureza. Tais situações e condições se contrapõem às do neoliberalismo, mas este pode e deve ser tema de outras, novas e oportunas discussões.

REFERÊNCIAS

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.

Autores:
Jairo Marchesan – Geógrafo. E-mail: [email protected]
Sandro Luiz Bazzanella – Filósofo: E-mail: [email protected] 
Cíntia Neves Godoi – Geógrafa: E-mail: [email protected]

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