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21 Mar 2025, Fri


Crianças e Exílio

por Maria Cláudia Badan Ribeiro

Quem do interior de São Paulo e da região de Ribeirão Preto como eu, não leu “Meninos sem pátria” de Luiz Puntel? O livro foi publicado em 1981 quando eu tinha apenas dois anos de idade. Se bem me lembro, a edição que li – já alfabetizada – foi a do ano de 1984 da coleção Vagalume, com uma capa bastante sugestiva. Foi este mesmo livro que sofreu recente tentativa de censura numa escola do Rio de Janeiro, cujos pais indignados, afirmaram que ele “enaltecia a ótica de esquerda” e deveria ser retirado da grade escolar. Felizmente os alunos reagiram a tempo e o livro foi liberado.

Muito jovem este livro me situou em um outro local dessa infância – que não era e não foi a minha – mas foi a de muitos brasileiros e brasileiras, fraturados no seu direito de viver em seu próprio país.

Outras censuras também existiram no nosso material didático. Me vem à memória o livro Reflexão e Ação em Língua Portuguesa de autoria de Marilda Prates, acusado de ser tendencioso e de formar a opinião crítica dos alunos sobre a realidade sociopolítica do país (?!). O livro através da gramática, discutia nossas mazelas: desemprego, discriminação racial e contra a mulher, marginalização, analfabetismo, drogas, a condição dos boias-frias, a fome, a violência, enfim, a opressão. Foi nele que eu soube pela primeira vez que havia um menino chamado Marcelo Paiva que brincava na varanda de sua casa esperando por um pai que nunca voltaria… Muito jovem, o tema do desaparecimento político já fazia parte das coisas que eu sabia e que me faziam perguntar: Por quê?

Trago essas lembranças de minha infância – vivi o rescaldo da ditadura civil-militar no Brasil- porque participei com muita emoção do debate do livro Crianças e Exílio- Memórias de Infâncias Marcadas pela Ditadura Militar, organizado pelas escritoras Nadejda Marques e Helena Dória Lucas de Oliveira. Junto a Afonso Jr, amigo e parceiro do Programa Caminhadas do Silêncio, realizamos uma conversa com Cláudia Pavan Lamarca e Nadejda Marques no último dia 16/03. Crianças e Exílio – lançamento

Como os jovens que impediram a censura ao livro de Luiz Puntel no Rio de Janeiro no ano de 2018, felizmente o secretário de educação à época, Paulo Renato de Souza foi contra a censura de Reflexão e Ação, que continuou a ser adotado na rede pública de educação. Anos depois, em minha atividade de pesquisa, soube que na cidade de São Carlos existiu inclusive uma campanha intitulada “Fogueira da Purificação” que pretendia queimá-lo em praça pública…

Para quem não conheceu Meninos sem pátria – ou até para aqueles que o conheceram – saberão que Luiz Puntel se inspirou na história do casal Terezinha Rabelo e José Maria Rabelo, quando ambos partiram para o exílio com seus sete filhos.

Ao participar do debate do livro, lembrei de minha infância, porque outras infâncias existiram antes da minha – aquelas sobre a quais Puntel escreveu para mostrar que a ditadura realmente existiu e que ela atingiu crianças.

O protagonista da história dava o tom de seu livro. No país do futebol que ia “pra frente”, o garoto emprestava sua voz ao narrador: “nós íamos ‘pra frente’, mas rumo ao desconhecido sendo colocados para fora dos gramados brasileiros”. Esse era o “negócio besta” que se chamava exílio.

Era isso que fazia crianças conhecerem mais cedo aeroportos e fronteiras e segundo o narrador-menino, perder a cada barreira policial, “o carimbo de brasileiro na nacionalidade, para receber, o internacional exilado (…) Jamais nos acostumaríamos àqueles bota-foras meio na marra, sem as despedidas dos amigos e parentes e lencinhos brancos acenando adeus”.

O livro que será lançado no dia 18/03 às 19h, no Auditório da Faced, Campus Central da Ufrgs, é a reparação que estas crianças esperam, a de terem seus nomes e suas histórias de exílio reveladas, obrigadas que foram a constantes travessias para permanecerem continuadamente na condição de estrangeiras, banidas, apátridas e até terroristas.

A publicação é também um marco na historiografia do exílio brasileiro. Esses meninos e meninas que desapareceram dessa experiência- raramente verbalizada – e quase fadada ao ostracismo.

A história desse livro é a história de crianças que acompanharam total ou parcialmente uma vida marcada pela saída do território nacional, tendo que estabelecer elos em locais distantes, estranhos, com idas, vindas, retornos, permanências e perdas. História de crianças que disseram: “minha primeira viagem na vida, foi a viagem do exílio”.

Esse tempo que foi para elas um destino comum (a de seus pais) e ao mesmo um destino individual…Uma punição prolongada ou a salvação de uma situação de violência extrema por parte do Estado brasileiro. A fronteira ínfima entre ser filho do exílio ou filho exilado. Este afastamento forçado que podia acabar com o fim do exílio ou ser um exílio sem fim… (mesmo diante do retorno)

Nesta história estão expressas as fugas, os medos, as perseguições, as possibilidades, reais ou não, da volta. Ser filho do exílio é por um lado herança e por outro, construção, neste hiato histórico dos que tiveram que deixar o país.

Ter sido uma criança exilada foi – e é – viver de experiências transmitidas e sentir de modo inexplicável, uma nostalgia da comunidade e da própria cultura imaginadas. Um país quase irreal que existiu, na maior parte das vezes, no discurso dos adultos.

Nessa realidade, permaneceu o jogo dialético entre pertencimento e desenraizamento, e foi nela, que também se configurou uma identidade (para além do registro civil, arduamente conseguido).

São também dessas crianças os compromissos sociais e éticos recebidos dos pais militantes -orgânicos ou não – que lhes transmitiram sua firmeza ideológica.

Essas crianças fizeram parte desta família recomposta e em movimento, com a presença de tios e tias, que apareciam e desapareciam num piscar de olhos. Junto delas, a ” sensação de não ser” e também a ” busca de ser”.

Foram crianças- hoje adultas- que habitaram e habitam as fronteiras. Este estar a todo momento “aqui e lá”, assoladas pela fantasia de poder eleger aonde viver, pela multiplicidade de experiências do exílio – e pela ideia de um pertencimento único.

Este exílio representou também a tenacidade de sobrevivência dessas crianças, vivendo ou não num gueto migrante, a depender do país de acolhimento. Foi a adaptação contínua à língua, escola, cultura, comida, vizinhos, amigos. Foi falar a linguagem universal – a dos números- na aula de matemática ou a do corpo- na aula de educação física, quando a comunicação era impossível.

Vivê-lo foi perder muito cedo a inocência. Aliás, viver a perseguição de Estado representou deixar de ser criança e ter um olhar adulto para o mundo…

Crianças que seguiram os caminhos da vida clandestina e cuja única união era a das famílias revolucionárias. Crianças que tiveram nomes trocados, vida provisória, escola irregular, registros de nascimento em diferentes cantos pelo Brasil. Foi também conviver com bibliotecas secretas e com a falta de notícias num tempo largo. E curto. O de escapar. 

O exílio envolveu perdas sequenciais, este ir e vir, se estabelecer, ficar e ao mesmo tempo manter uma mala pronta. Falar do exílio é, portanto, falar de muitas gerações, três delas no mínimo…tal foi o seu efeito. Esse exílio que é vida e que é morte, que é chegada e despedida, que foi e continua a ser reconstrução. 

Este exílio feito também de reencontros e gestos de amor que se darão, às vezes, por uma última vez, como a piscadela de Marta Nehring para seu pai dentro de um elevador na capital cubana.

Relembro de Luiz Puntel e revejo seu protagonista menino querendo descer do avião que sobrevoava o Rio de Janeiro para não mais voltar. Penso nas crianças que fizeram este mesmo caminho sem poder olhar para trás, ameaçadas de prisão, tortura ou morte. Penso em todas aquelas que se demoraram nas embaixadas ou viveram dias e anos intermináveis à espera de descobrir-redescobrir seu país Brasil.

Tentaram escondê-lo de nós. Mandaram vocês embora. Mas, vocês voltaram para contar agora, a nossa verdadeira história.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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Crianças e Exílio

por Maria Cláudia Badan Ribeiro

Quem do interior de São Paulo e da região de Ribeirão Preto como eu, não leu “Meninos sem pátria” de Luiz Puntel? O livro foi publicado em 1981 quando eu tinha apenas dois anos de idade. Se bem me lembro, a edição que li – já alfabetizada – foi a do ano de 1984 da coleção Vagalume, com uma capa bastante sugestiva. Foi este mesmo livro que sofreu recente tentativa de censura numa escola do Rio de Janeiro, cujos pais indignados, afirmaram que ele “enaltecia a ótica de esquerda” e deveria ser retirado da grade escolar. Felizmente os alunos reagiram a tempo e o livro foi liberado.

Muito jovem este livro me situou em um outro local dessa infância – que não era e não foi a minha – mas foi a de muitos brasileiros e brasileiras, fraturados no seu direito de viver em seu próprio país.

Outras censuras também existiram no nosso material didático. Me vem à memória o livro Reflexão e Ação em Língua Portuguesa de autoria de Marilda Prates, acusado de ser tendencioso e de formar a opinião crítica dos alunos sobre a realidade sociopolítica do país (?!). O livro através da gramática, discutia nossas mazelas: desemprego, discriminação racial e contra a mulher, marginalização, analfabetismo, drogas, a condição dos boias-frias, a fome, a violência, enfim, a opressão. Foi nele que eu soube pela primeira vez que havia um menino chamado Marcelo Paiva que brincava na varanda de sua casa esperando por um pai que nunca voltaria… Muito jovem, o tema do desaparecimento político já fazia parte das coisas que eu sabia e que me faziam perguntar: Por quê?

Trago essas lembranças de minha infância – vivi o rescaldo da ditadura civil-militar no Brasil- porque participei com muita emoção do debate do livro Crianças e Exílio- Memórias de Infâncias Marcadas pela Ditadura Militar, organizado pelas escritoras Nadejda Marques e Helena Dória Lucas de Oliveira. Junto a Afonso Jr, amigo e parceiro do Programa Caminhadas do Silêncio, realizamos uma conversa com Cláudia Pavan Lamarca e Nadejda Marques no último dia 16/03. Crianças e Exílio – lançamento

Como os jovens que impediram a censura ao livro de Luiz Puntel no Rio de Janeiro no ano de 2018, felizmente o secretário de educação à época, Paulo Renato de Souza foi contra a censura de Reflexão e Ação, que continuou a ser adotado na rede pública de educação. Anos depois, em minha atividade de pesquisa, soube que na cidade de São Carlos existiu inclusive uma campanha intitulada “Fogueira da Purificação” que pretendia queimá-lo em praça pública…

Para quem não conheceu Meninos sem pátria – ou até para aqueles que o conheceram – saberão que Luiz Puntel se inspirou na história do casal Terezinha Rabelo e José Maria Rabelo, quando ambos partiram para o exílio com seus sete filhos.

Ao participar do debate do livro, lembrei de minha infância, porque outras infâncias existiram antes da minha – aquelas sobre a quais Puntel escreveu para mostrar que a ditadura realmente existiu e que ela atingiu crianças.

O protagonista da história dava o tom de seu livro. No país do futebol que ia “pra frente”, o garoto emprestava sua voz ao narrador: “nós íamos ‘pra frente’, mas rumo ao desconhecido sendo colocados para fora dos gramados brasileiros”. Esse era o “negócio besta” que se chamava exílio.

Era isso que fazia crianças conhecerem mais cedo aeroportos e fronteiras e segundo o narrador-menino, perder a cada barreira policial, “o carimbo de brasileiro na nacionalidade, para receber, o internacional exilado (…) Jamais nos acostumaríamos àqueles bota-foras meio na marra, sem as despedidas dos amigos e parentes e lencinhos brancos acenando adeus”.

O livro que será lançado no dia 18/03 às 19h, no Auditório da Faced, Campus Central da Ufrgs, é a reparação que estas crianças esperam, a de terem seus nomes e suas histórias de exílio reveladas, obrigadas que foram a constantes travessias para permanecerem continuadamente na condição de estrangeiras, banidas, apátridas e até terroristas.

A publicação é também um marco na historiografia do exílio brasileiro. Esses meninos e meninas que desapareceram dessa experiência- raramente verbalizada – e quase fadada ao ostracismo.

A história desse livro é a história de crianças que acompanharam total ou parcialmente uma vida marcada pela saída do território nacional, tendo que estabelecer elos em locais distantes, estranhos, com idas, vindas, retornos, permanências e perdas. História de crianças que disseram: “minha primeira viagem na vida, foi a viagem do exílio”.

Esse tempo que foi para elas um destino comum (a de seus pais) e ao mesmo um destino individual…Uma punição prolongada ou a salvação de uma situação de violência extrema por parte do Estado brasileiro. A fronteira ínfima entre ser filho do exílio ou filho exilado. Este afastamento forçado que podia acabar com o fim do exílio ou ser um exílio sem fim… (mesmo diante do retorno)

Nesta história estão expressas as fugas, os medos, as perseguições, as possibilidades, reais ou não, da volta. Ser filho do exílio é por um lado herança e por outro, construção, neste hiato histórico dos que tiveram que deixar o país.

Ter sido uma criança exilada foi – e é – viver de experiências transmitidas e sentir de modo inexplicável, uma nostalgia da comunidade e da própria cultura imaginadas. Um país quase irreal que existiu, na maior parte das vezes, no discurso dos adultos.

Nessa realidade, permaneceu o jogo dialético entre pertencimento e desenraizamento, e foi nela, que também se configurou uma identidade (para além do registro civil, arduamente conseguido).

São também dessas crianças os compromissos sociais e éticos recebidos dos pais militantes -orgânicos ou não – que lhes transmitiram sua firmeza ideológica.

Essas crianças fizeram parte desta família recomposta e em movimento, com a presença de tios e tias, que apareciam e desapareciam num piscar de olhos. Junto delas, a ” sensação de não ser” e também a ” busca de ser”.

Foram crianças- hoje adultas- que habitaram e habitam as fronteiras. Este estar a todo momento “aqui e lá”, assoladas pela fantasia de poder eleger aonde viver, pela multiplicidade de experiências do exílio – e pela ideia de um pertencimento único.

Este exílio representou também a tenacidade de sobrevivência dessas crianças, vivendo ou não num gueto migrante, a depender do país de acolhimento. Foi a adaptação contínua à língua, escola, cultura, comida, vizinhos, amigos. Foi falar a linguagem universal – a dos números- na aula de matemática ou a do corpo- na aula de educação física, quando a comunicação era impossível.

Vivê-lo foi perder muito cedo a inocência. Aliás, viver a perseguição de Estado representou deixar de ser criança e ter um olhar adulto para o mundo…

Crianças que seguiram os caminhos da vida clandestina e cuja única união era a das famílias revolucionárias. Crianças que tiveram nomes trocados, vida provisória, escola irregular, registros de nascimento em diferentes cantos pelo Brasil. Foi também conviver com bibliotecas secretas e com a falta de notícias num tempo largo. E curto. O de escapar. 

O exílio envolveu perdas sequenciais, este ir e vir, se estabelecer, ficar e ao mesmo tempo manter uma mala pronta. Falar do exílio é, portanto, falar de muitas gerações, três delas no mínimo…tal foi o seu efeito. Esse exílio que é vida e que é morte, que é chegada e despedida, que foi e continua a ser reconstrução. 

Este exílio feito também de reencontros e gestos de amor que se darão, às vezes, por uma última vez, como a piscadela de Marta Nehring para seu pai dentro de um elevador na capital cubana.

Relembro de Luiz Puntel e revejo seu protagonista menino querendo descer do avião que sobrevoava o Rio de Janeiro para não mais voltar. Penso nas crianças que fizeram este mesmo caminho sem poder olhar para trás, ameaçadas de prisão, tortura ou morte. Penso em todas aquelas que se demoraram nas embaixadas ou viveram dias e anos intermináveis à espera de descobrir-redescobrir seu país Brasil.

Tentaram escondê-lo de nós. Mandaram vocês embora. Mas, vocês voltaram para contar agora, a nossa verdadeira história.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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