Vocês também têm a impressão de que algumas pessoas bloquearam mentalmente o que foi a pandemia? Acho que o trauma coletivo foi tão brutal que boa parte de nós ainda está vivendo em um estado de estresse pós-traumático.
O assunto voltou com mais força alguns dias atrás, quando o seu início completou impressionantes cinco anos. Quase a idade do meu filho. Não dá nem para querer chamar de aniversário um marco tão nefasto, mas foi no dia 11 de março de 2020 que a Organização Mundial de Saúde finalmente passou a chamar de pandemia o que vinha sendo considerada, até então, uma Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional.
Eu estava grávida de 27 semanas, petrificada por sentimentos ambivalentes sobre o que significava gerar uma vida enquanto o mundo vibrava em uma frequência de morte. Foi potente, desesperador, enchia o peito de medo, leite, angústia e gratidão.
Gestar, por si só, é abraçar o desconhecido. Mas nada nos prepara para a falta de controle total que é viver isso tudo no meio de uma pandemia. Pensava em todas as mulheres que gestaram e pariram durante guerras e pestes, tentando confiar no processo da vida.
Aquele sentimento de não saber qual mundo viria depois daquele, apenas com a certeza de que nada mais seria como antes. Seria um mundo melhor? Pessoas estocando papel higiênico e álcool gel foi um spoiler de que, definitivamente, não.
Dei a luz ao meu filho no pico da primeira onda, com hospitais colapsados, usando uma máscara N95 em um trabalho de parto que durou mais de 30 horas. Muitas passaram pelo mesmo que eu e ainda totalmente sozinhas, já que em algumas cidades do Brasil foi proibida a entrada de qualquer acompanhante na sala.
Nos noticiários, a informação era de que o país teve 77% das mortes de gestantes e puérperas por Covid-19 no mundo, ou seja, morreram mais mulheres grávidas ou no pós parto aqui do que em todos os outros países somados em julho de 2020.
Passei o primeiro ano da pandemia entre a gravidez e o puerpério, morrendo de medo até do elevador e ainda mais isolada de quem já estava isolado, longe da família, da minha rede de apoio. Meu pai, que morava no Rio Grande do Sul na época, só foi conhecer o Benjamin quando ele já estava com um ano de idade, depois de ter tomado suas primeiras duas doses da vacina.
Nunca me recuperei desse trauma. Não vejo muito como ser diferente, depois de passar meses lavando tudo que vinha dentro das sacolas do supermercado, inclusive as próprias sacolas. Sentindo um medo incontornável enquanto amamentava e assistia, diariamente, aos números de infectados e mortos aumentarem de forma meteórica em todo o mundo enquanto o presidente do nosso próprio país tratava tudo com uma crueldade monstruosa.
Como esquecer da imagem de Bolsonaro imitando uma pessoa morrendo sufocada em tom jocoso enquanto milhares de brasileiros estavam vivendo exatamente aquele drama naquele momento? Até hoje não entendo como consegui produzir leite em um contexto como aquele.
Embora cada uma tenha vivido sua própria pandemia, só quem gestou e pariu em 2020 sabe o pesadelo que foi. Tanto que hoje, quando vejo outra criança da mesma idade do meu filho e pergunto sobre como foi o processo para a mãe, na maioria das vezes faltam palavras para responder.
Tínhamos tudo para ter passado muito melhor por tudo isso. Dos anos 1970 em diante, o Brasil se tornou referência mundial em vacinação, oferecendo mais de vinte tipos de imunizantes aos brasileiros, e tendo conquistado feitos relevantes, como a erradicação da varíola e da poliomielite. Nossa cobertura vacinal esteve por décadas entre as maiores do mundo, sempre andando pela casa dos 90%.
Mas elegemos um governo negacionista que, no primeiro teste de fogo, fracassou terrivelmente. Seja perdendo tempo para comprar vacinas, propagando medicamentos ineficazes, relutando em aplicar medidas de restrição de circulação ou até mesmo lutando a favor do vírus, espalhando mentiras que beiravam o mais puro delírio.
Não consigo esquecer do dia em que o presidente insinuou que a vacina podia transmitir HIV. Perdemos centenas de milhares de vidas. Lamentavelmente, um estudo da Oxfam Brasil estimou que, no primeiro ano da pandemia, de março de 2020 até março de 2021, cerca de 120 mil mortes poderiam ter sido evitadas se o Brasil tivesse adotado medidas de distanciamento social mais eficazes.
Sempre achei curioso o fato de que algumas pessoas passaram a se referir a tudo aquilo que estávamos vivendo como “essa pandemia”, como se em algum lugar já soubéssemos que seria a primeira da nossa geração, mas não a última.
E, sim, outras pandemias certamente virão. Quem diz isso não sou eu, mas a ciência. Em primeiro lugar, porque embora tenhamos reagido com uma velocidade incrível, e de forma global, para evitar que a catástrofe fosse ainda maior, não parece que estamos fazendo muita coisa para evitar que uma nova doença misteriosa provoque um novo surto a qualquer momento.
Cada grau a mais na temperatura do planeta colabora de forma decisiva para o derretimento do permafrost, uma camada de gelo permanente localizada quase toda no norte do globo, na região do Ártico. E, com isso, novos vírus e bactérias contra os quais não temos defesas são liberados na atmosfera.
Será que vai dar bom isso? Será que tem alguém realmente preocupado com isso? Sabe quantos países estão, atualmente, investindo para evitar que essa camada de gelo desapareça completamente? Zero.
Não sou a única traumatizada com o que passamos todos, aqueles que sobreviveram e aqueles que não conseguiram. Torço muito para que o meu pavor, minha raiva e meu desespero de passar novamente por tudo aquilo também estejam muito vivos nas mentes e nos corações de gente que não apenas possa como esteja trabalhando muito duro para evitar que algo assim se repita, mas, infelizmente, os últimos cinco anos –e a realidade que vivemos atualmente– me tornaram muito mais realista do que otimista.
Vocês também têm a impressão de que algumas pessoas bloquearam mentalmente o que foi a pandemia? Acho que o trauma coletivo foi tão brutal que boa parte de nós ainda está vivendo em um estado de estresse pós-traumático.
O assunto voltou com mais força alguns dias atrás, quando o seu início completou impressionantes cinco anos. Quase a idade do meu filho. Não dá nem para querer chamar de aniversário um marco tão nefasto, mas foi no dia 11 de março de 2020 que a Organização Mundial de Saúde finalmente passou a chamar de pandemia o que vinha sendo considerada, até então, uma Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional.
Eu estava grávida de 27 semanas, petrificada por sentimentos ambivalentes sobre o que significava gerar uma vida enquanto o mundo vibrava em uma frequência de morte. Foi potente, desesperador, enchia o peito de medo, leite, angústia e gratidão.
Gestar, por si só, é abraçar o desconhecido. Mas nada nos prepara para a falta de controle total que é viver isso tudo no meio de uma pandemia. Pensava em todas as mulheres que gestaram e pariram durante guerras e pestes, tentando confiar no processo da vida.
Aquele sentimento de não saber qual mundo viria depois daquele, apenas com a certeza de que nada mais seria como antes. Seria um mundo melhor? Pessoas estocando papel higiênico e álcool gel foi um spoiler de que, definitivamente, não.
Dei a luz ao meu filho no pico da primeira onda, com hospitais colapsados, usando uma máscara N95 em um trabalho de parto que durou mais de 30 horas. Muitas passaram pelo mesmo que eu e ainda totalmente sozinhas, já que em algumas cidades do Brasil foi proibida a entrada de qualquer acompanhante na sala.
Nos noticiários, a informação era de que o país teve 77% das mortes de gestantes e puérperas por Covid-19 no mundo, ou seja, morreram mais mulheres grávidas ou no pós parto aqui do que em todos os outros países somados em julho de 2020.
Passei o primeiro ano da pandemia entre a gravidez e o puerpério, morrendo de medo até do elevador e ainda mais isolada de quem já estava isolado, longe da família, da minha rede de apoio. Meu pai, que morava no Rio Grande do Sul na época, só foi conhecer o Benjamin quando ele já estava com um ano de idade, depois de ter tomado suas primeiras duas doses da vacina.
Nunca me recuperei desse trauma. Não vejo muito como ser diferente, depois de passar meses lavando tudo que vinha dentro das sacolas do supermercado, inclusive as próprias sacolas. Sentindo um medo incontornável enquanto amamentava e assistia, diariamente, aos números de infectados e mortos aumentarem de forma meteórica em todo o mundo enquanto o presidente do nosso próprio país tratava tudo com uma crueldade monstruosa.
Como esquecer da imagem de Bolsonaro imitando uma pessoa morrendo sufocada em tom jocoso enquanto milhares de brasileiros estavam vivendo exatamente aquele drama naquele momento? Até hoje não entendo como consegui produzir leite em um contexto como aquele.
Embora cada uma tenha vivido sua própria pandemia, só quem gestou e pariu em 2020 sabe o pesadelo que foi. Tanto que hoje, quando vejo outra criança da mesma idade do meu filho e pergunto sobre como foi o processo para a mãe, na maioria das vezes faltam palavras para responder.
Tínhamos tudo para ter passado muito melhor por tudo isso. Dos anos 1970 em diante, o Brasil se tornou referência mundial em vacinação, oferecendo mais de vinte tipos de imunizantes aos brasileiros, e tendo conquistado feitos relevantes, como a erradicação da varíola e da poliomielite. Nossa cobertura vacinal esteve por décadas entre as maiores do mundo, sempre andando pela casa dos 90%.
Mas elegemos um governo negacionista que, no primeiro teste de fogo, fracassou terrivelmente. Seja perdendo tempo para comprar vacinas, propagando medicamentos ineficazes, relutando em aplicar medidas de restrição de circulação ou até mesmo lutando a favor do vírus, espalhando mentiras que beiravam o mais puro delírio.
Não consigo esquecer do dia em que o presidente insinuou que a vacina podia transmitir HIV. Perdemos centenas de milhares de vidas. Lamentavelmente, um estudo da Oxfam Brasil estimou que, no primeiro ano da pandemia, de março de 2020 até março de 2021, cerca de 120 mil mortes poderiam ter sido evitadas se o Brasil tivesse adotado medidas de distanciamento social mais eficazes.
Sempre achei curioso o fato de que algumas pessoas passaram a se referir a tudo aquilo que estávamos vivendo como “essa pandemia”, como se em algum lugar já soubéssemos que seria a primeira da nossa geração, mas não a última.
E, sim, outras pandemias certamente virão. Quem diz isso não sou eu, mas a ciência. Em primeiro lugar, porque embora tenhamos reagido com uma velocidade incrível, e de forma global, para evitar que a catástrofe fosse ainda maior, não parece que estamos fazendo muita coisa para evitar que uma nova doença misteriosa provoque um novo surto a qualquer momento.
Cada grau a mais na temperatura do planeta colabora de forma decisiva para o derretimento do permafrost, uma camada de gelo permanente localizada quase toda no norte do globo, na região do Ártico. E, com isso, novos vírus e bactérias contra os quais não temos defesas são liberados na atmosfera.
Será que vai dar bom isso? Será que tem alguém realmente preocupado com isso? Sabe quantos países estão, atualmente, investindo para evitar que essa camada de gelo desapareça completamente? Zero.
Não sou a única traumatizada com o que passamos todos, aqueles que sobreviveram e aqueles que não conseguiram. Torço muito para que o meu pavor, minha raiva e meu desespero de passar novamente por tudo aquilo também estejam muito vivos nas mentes e nos corações de gente que não apenas possa como esteja trabalhando muito duro para evitar que algo assim se repita, mas, infelizmente, os últimos cinco anos –e a realidade que vivemos atualmente– me tornaram muito mais realista do que otimista.