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28 Mar 2025, Fri


Capitol Records/ Wikimedia Commons

Jantar com Sinatra

por Daniel Afonso da Silva

O ano era 1992. O mês era outubro. O dia, o segundo.

2 de outubro de 1992.

Chovia frio em Washington. Ricupero e Marisa recebiam Ruth Escobar e Shirley MacLaine na embaixada. Alguma descontração encantava o lugar. Ruth era amiga de Ricupero desde a juventude. Desde 1957. Desde os tempos em que não sabiam nem queriam saber o que viriam a ser. Shirley MacLaine, todos sabiam. Além de linda, era uma musa. Estrela de cinema. Literalmente. Premiada em todas as partes. Monumento sagrado da sétima arte. Agora ali. Acompanhada de sua amiga Ruth. Diante de Marisa e de Ricupero.

Risadas, diversão, trivialidades.

O dia prometia. Iriam todos – Ricupero e Marisa inclusos – contemplar o show de Frank Sinatra ao anoitecer. Tudo ia bem.

Diversão, trivialidades, risadas.

Mas, pelas tantas, o telefone toca. Era para o embaixador. Era para o Ricupero. Ricupero atende. A ligação vinha do Brasil. Talvez de São Paulo ou do Rio. Quem sabe, Brasília. Era o chanceler do outro lado. Era Fernando Henrique Cardoso querendo falar. Antigo senador que virou chanceler da presidência Itamar. Trazia um recado de Itamar. Um recado quase pessoal, direcionado ao embaixador Ricupero, transformado numa mensagem curta e grossa: Itamar quer Ricupero no Ministério da Fazenda.

Ricupero ouviu sem falar. E, em seguida, reagiu sem pestanejar nem hesitar. Recusou prontamente. Indicou ser engano. E apresentou as suas razões. Restando ao chanceler escutar e partir. Marcílio Moreira Marques seguia no cargo. Sucedia a Zélia Cardoso de Mello. Mas, agora, ia deixar. Mas não era o caso de largar. Itamar queria Ricupero. E fez Fernando Henrique de mensageiro para sutilmente avisar. Ricupero disse não. Itamar foi informado. E, por claro, não gostou nem aceitou. Retornou, ele próprio, presidente da República, a ligação para Washington. Queria falar diretamente com Ricupero. Em sua contrição interior deveria se martirizar com a indagação o onde é que já se viu?!

O telefone tocou em Washington. Ricupero atendeu. Era Itamar. História similar. Ricupero ouviu. Novamente, desconversou. Apresentou novas razões. Disse estar longe do Brasil. Ser estranho à área – economia e finanças. Estar distante de seus operadores. Desconhecer empresários. E assim por diante.

Itamar, mineiro, por temperamento, silenciou. Ricupero também.

Despedida, seguramente, bem seca.

Tenha um bom dia, presidente. Tenha um bom dia, embaixador.

Mas uma aflição no ar. Longe, muito longe de assunto encerrado. Passados uns instantes, mais uma vez, o telefone em Washington tocou. Ricupero atendeu. Do outro lado, quem poderia ser? Sim, claro: José Sarney. O homem que sucedeu a Tancredo de Almeida Neves e por quem Ricupero sempre demonstrou afeição. Mas, agora, aflição. Assunto similar. O desejo de Itamar. Ricupero não teve como. Recrudesceu. Declinou novamente e disse adeus. Sabe-se lá se o antigo presidente entendeu. Pouco importa. Ricupero disse não; e o seu não era não. Mas o seu telefone voltou a tocar e tocar. Maiorais da vida nacional brasileira queriam lhe falar. Convencer. Quem sabe, até intimidar. O poderoso governador do seu estado natal, São Paulo, Luiz Antônio Fleury pediu a Ricupero que aceitasse o novo posto em seu favor. O extraordinariamente nobre senador gaúcho Pedro Simon moveu esforços pelo mesmo. Mas, não. Ricupero reiterava o seu não.

Era um dia especial. Fenomenal. Era o 2 de outubro de 1992 e todos em Washington queriam ver Sinatra. Ricupero também. Que coisa era aquela de ficarem querendo que ele assumisse o Ministério que tanto mal causara ao seu mentor e amigo San Tiago Dantas quando, em Brasília, tudo em sua vida começou? Que coisa era aquela? Que coisa era aquela de quererem jogá-lo na piscina sem água, na fogueira sem fogo, no abismo sem fundo, na floresta sem bússola, num Ministério – o da Fazenda – que até Deus – brasileiro ou não – hesitaria em aceitar?

Caiu a tarde. Todos ver Sinatra à rua 13, no Warner Theatre. Esqueça-se, por ora, mesmo sendo embaixador, o Brasil.

Diria um bom mineiro: tenha-se a santa paciência.

Belo show, findo o show, o jantar.

Sinatra – amigo próximo de MacLaine – convidou Ruth e Marisa, que adicionaram Ricupero. O projeto era jantar chinês. Foram todos. Sinatra guiando. Chegam ao restaurante. Ricupero deveria estar cantarolando mentalmente algum sucesso do ídolo, tamborilando algum ritmo com os dedos das mãos ou fazendo o chão de percussão com as pontas dos pés quando a invenção de Graham Bell volta, mais uma vez, a tocar. Não teve jeito. Cortou-se o clima. Teve que atender. Era, novamente, do Brasil. Mas não era o chanceler nem o presidente. Era o jornalista Elio Gaspari, que ligara para dizer que o economista Gustavo Krause acabara de aceitar ser Ministro da Fazenda. E – quem sabe – também para recomendar a Ricupero que dormisse tranquilo e aliviado pois não tinha sido daquela vez. Ricupero, por certo, ouviu aquilo e suspirou. Mas, claro, agora, ele não ia dormir. A noite estava só começando. Sinatra – sim, Frank Sinatra – o aguardava lá dentro para jantar.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

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Jantar com Sinatra

por Daniel Afonso da Silva

O ano era 1992. O mês era outubro. O dia, o segundo.

2 de outubro de 1992.

Chovia frio em Washington. Ricupero e Marisa recebiam Ruth Escobar e Shirley MacLaine na embaixada. Alguma descontração encantava o lugar. Ruth era amiga de Ricupero desde a juventude. Desde 1957. Desde os tempos em que não sabiam nem queriam saber o que viriam a ser. Shirley MacLaine, todos sabiam. Além de linda, era uma musa. Estrela de cinema. Literalmente. Premiada em todas as partes. Monumento sagrado da sétima arte. Agora ali. Acompanhada de sua amiga Ruth. Diante de Marisa e de Ricupero.

Risadas, diversão, trivialidades.

O dia prometia. Iriam todos – Ricupero e Marisa inclusos – contemplar o show de Frank Sinatra ao anoitecer. Tudo ia bem.

Diversão, trivialidades, risadas.

Mas, pelas tantas, o telefone toca. Era para o embaixador. Era para o Ricupero. Ricupero atende. A ligação vinha do Brasil. Talvez de São Paulo ou do Rio. Quem sabe, Brasília. Era o chanceler do outro lado. Era Fernando Henrique Cardoso querendo falar. Antigo senador que virou chanceler da presidência Itamar. Trazia um recado de Itamar. Um recado quase pessoal, direcionado ao embaixador Ricupero, transformado numa mensagem curta e grossa: Itamar quer Ricupero no Ministério da Fazenda.

Ricupero ouviu sem falar. E, em seguida, reagiu sem pestanejar nem hesitar. Recusou prontamente. Indicou ser engano. E apresentou as suas razões. Restando ao chanceler escutar e partir. Marcílio Moreira Marques seguia no cargo. Sucedia a Zélia Cardoso de Mello. Mas, agora, ia deixar. Mas não era o caso de largar. Itamar queria Ricupero. E fez Fernando Henrique de mensageiro para sutilmente avisar. Ricupero disse não. Itamar foi informado. E, por claro, não gostou nem aceitou. Retornou, ele próprio, presidente da República, a ligação para Washington. Queria falar diretamente com Ricupero. Em sua contrição interior deveria se martirizar com a indagação o onde é que já se viu?!

O telefone tocou em Washington. Ricupero atendeu. Era Itamar. História similar. Ricupero ouviu. Novamente, desconversou. Apresentou novas razões. Disse estar longe do Brasil. Ser estranho à área – economia e finanças. Estar distante de seus operadores. Desconhecer empresários. E assim por diante.

Itamar, mineiro, por temperamento, silenciou. Ricupero também.

Despedida, seguramente, bem seca.

Tenha um bom dia, presidente. Tenha um bom dia, embaixador.

Mas uma aflição no ar. Longe, muito longe de assunto encerrado. Passados uns instantes, mais uma vez, o telefone em Washington tocou. Ricupero atendeu. Do outro lado, quem poderia ser? Sim, claro: José Sarney. O homem que sucedeu a Tancredo de Almeida Neves e por quem Ricupero sempre demonstrou afeição. Mas, agora, aflição. Assunto similar. O desejo de Itamar. Ricupero não teve como. Recrudesceu. Declinou novamente e disse adeus. Sabe-se lá se o antigo presidente entendeu. Pouco importa. Ricupero disse não; e o seu não era não. Mas o seu telefone voltou a tocar e tocar. Maiorais da vida nacional brasileira queriam lhe falar. Convencer. Quem sabe, até intimidar. O poderoso governador do seu estado natal, São Paulo, Luiz Antônio Fleury pediu a Ricupero que aceitasse o novo posto em seu favor. O extraordinariamente nobre senador gaúcho Pedro Simon moveu esforços pelo mesmo. Mas, não. Ricupero reiterava o seu não.

Era um dia especial. Fenomenal. Era o 2 de outubro de 1992 e todos em Washington queriam ver Sinatra. Ricupero também. Que coisa era aquela de ficarem querendo que ele assumisse o Ministério que tanto mal causara ao seu mentor e amigo San Tiago Dantas quando, em Brasília, tudo em sua vida começou? Que coisa era aquela? Que coisa era aquela de quererem jogá-lo na piscina sem água, na fogueira sem fogo, no abismo sem fundo, na floresta sem bússola, num Ministério – o da Fazenda – que até Deus – brasileiro ou não – hesitaria em aceitar?

Caiu a tarde. Todos ver Sinatra à rua 13, no Warner Theatre. Esqueça-se, por ora, mesmo sendo embaixador, o Brasil.

Diria um bom mineiro: tenha-se a santa paciência.

Belo show, findo o show, o jantar.

Sinatra – amigo próximo de MacLaine – convidou Ruth e Marisa, que adicionaram Ricupero. O projeto era jantar chinês. Foram todos. Sinatra guiando. Chegam ao restaurante. Ricupero deveria estar cantarolando mentalmente algum sucesso do ídolo, tamborilando algum ritmo com os dedos das mãos ou fazendo o chão de percussão com as pontas dos pés quando a invenção de Graham Bell volta, mais uma vez, a tocar. Não teve jeito. Cortou-se o clima. Teve que atender. Era, novamente, do Brasil. Mas não era o chanceler nem o presidente. Era o jornalista Elio Gaspari, que ligara para dizer que o economista Gustavo Krause acabara de aceitar ser Ministro da Fazenda. E – quem sabe – também para recomendar a Ricupero que dormisse tranquilo e aliviado pois não tinha sido daquela vez. Ricupero, por certo, ouviu aquilo e suspirou. Mas, claro, agora, ele não ia dormir. A noite estava só começando. Sinatra – sim, Frank Sinatra – o aguardava lá dentro para jantar.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

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