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30 Mar 2025, Sun


Cynthia Brito

Millôr Fernandes

por Urariano Mota

O calendário informa que neste 27 de março faz 13 anos da morte de Millôr Fernandes. 

Ele, cuja maior qualidade não era a modéstia, certa vez disse de si mesmo que  melhorou Shakespeare nas traduções em português, e que era um Bernard Shaw, além de gênio inexcedível no desenho, que os mencionados gênios não possuíam.

Manifestações assim de exagero não comportam estranheza em quem lê um obituário. Apenas cabe, em quem as lê, a surpresa de que artista desse valor não tenha sido notado em vida com tais magnificências. Se os sobreviventes não exageram agora, foram relapsos, mesquinhos e insensíveis antes. Mas agora Millôr Fernandes é memória. Como uma lembrança distante dos seus famosos retratos 3 x 4, tentarei esboçar algo em preto e branco da sua pessoa.

É chover no molhado falar de suas qualidades como escritor, dono de humor moderno e de vanguarda, gênio no desenho e nas mais diversas criações. Se estivesse vivo, ele diria: “Sim, mas fale ainda assim, chover no molhado tem lá sua graça”. Aquilo que se disse de Chico Anysio, que era homem de mais de 200 personagens, porque fazia mais de 200 caricaturas, de Millôr pode ser dito que era mais de 200 criadores, sem apoio da muleta da maquiagem. Ele era tão bom nos textos para sorrir quanto melhor nos sérios, como no retrato de Sérgio Porto e nas frases sobre a sua infância dickensiana. Esse chover no molhado, é fato, ainda não recebeu a consagração das academias, talvez como uma resposta delas à antipatia de Millôr pelos estudos acadêmicos.

De passagem anoto que a mitificação em vida de Millôr não se deu por falta de esforços próprios. Em trecho da sua autobiografia escreveu: “1943 – Começam os anos gloriosos da revista O Cruzeiro, que um grupo de meninos levaria dos estagnados 11.000 exemplares tradicionais a 750.000.”E um dos meninos era ele. Isso foi repetido nos obituários da televisão, mas é mais falso que nota de milhão de cruzeiros. Millôr estava em O Cruzeiro na época, mas é tão responsável pelo sucesso da revista quanto um relógio é responsável pela hora da passagem do trem. Notem: a sua página, O Pif Paf, em O Cruzeiro, não conseguia grande leitura porque a popularidade sempre rejeitou a vanguarda. O que era bem diferente do maior sucesso de humor entre o povo até hoje, em todo o Brasil: O Amigo da Onça, de Péricles Maranhão. Péricles, mais a dupla David Nasser-Jean Manzon, repórteres desonestos e sensacionalistas ao extremo, é que foram os responsáveis pelo sucesso de O Cruzeiro.

Numa apagada e breve antologia de textos, lembramos:

“A Viúva

Quando a amiga lhe apresentou o garotinho lindo dizendo que era seu filho mais novo, ela não pôde resistir e exclamou: ‘Mas como, seu marido não morreu há cinco anos?’ ‘Sim, é verdade’ — respondeu então a outra, cheia daquela compreensão, sabedoria e calor que fazem os seres humanos — ‘mas eu não’.

MORAL: Não morre a passarada quando morre um pássaro”. 
(Livro “Fábulas Fabulosas”)

“Música, divina música!

Tanto duvidaram dele, da teoria daquele jovem gênio musical, que ele resolveu provar pra si mesmo, empiricamente, a teoria de que não existem animais selvagens. Que os animais são tão ou mais sensíveis do que os seres humanos. E que são sensíveis sobretudo ao envolvimento da música, quando esta é competentemente interpretada.

Por isso, uma noite, esgueirou-se sozinho pra dentro do Jardim Zoológico da cidade e, silenciosamente, se aproximou da jaula dos orangotangos. Começou a tocar baixinho, bem suave, a sua magnífica flauta doce, ao mesmo tempo em que abria a porta da jaula. Os macacões quase que não pestanejaram. Se moveram devagarinho, fascinados, apenas pra se aproximar mais do músico e do som.

O músico continuou as volutas de sua fantasia musical enquanto abria a jaula dos leões. Os leões, também hipnotizados, foram saindo, pé ante pé, com o respeito que só têm os grandes aficionados da música. E assim a flauta continuou soando no meio da noite, mágica e sedutora, enquanto o gênio ia abrindo jaula após jaula e os animais o acompanhavam, definitivamente seduzidos, como ele previra.

Uma lua enorme, de prata e ouro, iluminava os jacarés, elefantes, cobras, onças, tudo quanto é animal de Deus ali reunido, envolvidos na sinfonia improvisada no meio das árvores. Até que o músico, sempre tocando, abriu a última jaula do último animal – um tigre.
Que, mal viu a porta aberta, saltou sobre ele, engolindo músico e música – e flauta doce de quebra. Os bichos todos deram um oh! de consternação. A onça, chocada, exprimiu o espanto e a revolta de todos:

– Mas, tigre, era um músico estupendo, uma música sublime! Por que você fez isso? E o tigre, colocando as patas em concha nas orelhas, perguntou:

– Ahn? O quê, o quê? Fala mais alto, pô!

MORAL: OS ANIMAIS TAMBÉM TÊM DEFICIÊNCIAS HUMANAS”

Mas com o passar do tempo, em meio à sua genialidade, aflorou um claro reacionarismo. Assim, alcançamos o ponto mais sério. O que nele era graça se tornou azedume, ou gracinha para os amigos reacionários bem postos. Sobre o Barão de Itararé, o primeiro e grande humorista moderno do Brasil, na entrevista ao Roda Viva Millôr declarou:

“Agora, querer fazer com que eu engula o Barão de Itararé porque está engolido há 50 anos. Ele é um idiota. A moça quer saber, é um idiota. Faz uns trocadilhos bons, meia dúzia de trocadilhos imbecis…”

E mais, sobre Lula, em outra oportunidade: “É evidente que a ignorância lhe subiu à cabeça, não tem dúvida nenhuma. Porque de repente ele começou a se sentir culto, falar sobre tudo.” Socialismo: “A ideia do socialismo é incrível, mas está fadada a não dar certo. Porque o ser humano não é isso. Ele é capitalista na essência.”E esta pérola sobre o feminismo: “O melhor movimento feminino ainda é o dos quadris.”

Há uma característica em muitos humoristas de retirar humor do preconceito. Na época, as patadas nem se notam. Isso vem desde Aristófanes, que fazia gozação em suas comédias sobre o grande Sócrates. Ainda bem que não se confirmou, tal atraso, no gênio insuperável de Molière. No caso particular de Millôr, houve  a tragédia de homens brilhantes, criadores na maturidade, que se tornam na velhice primeiro uma caricatura do próprio gênio. Eles respondam ao mercado com uma transformação da originalidade em uma fórmula consagrada pela fama. Em Millôr Fernandes, em Gilberto Freyre, entre outros, mais adiante passam da caricatura à negação de si mesmos, como num lento apagar de luzes da velhice, em fade-out. Para nossa felicidade, resta a obra, o fogo da rebeldia dos melhores anos. Em Millôr há de sobreviver o prosador das Fábulas Fabulosas, de A história do paraíso, do revolucionário O Pif-Paf. E de modo mais claro, o frasista, que profetizou:

“A ocasião em que a inteligência do homem mais cresce, sua bondade alcança limites insuspeitados e seu caráter uma pureza inimaginável é nas primeiras 24 horas depois da sua morte.”

Assm foi também com ele.

Urariano Mota – Escritor, jornalista. Autor de “A mais longa duração da juventude”, “O filho renegado de Deus” e “Soledad no Recife”. Também publicou o “Dicionário Amoroso do Recife”.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

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Cynthia Brito

Millôr Fernandes

por Urariano Mota

O calendário informa que neste 27 de março faz 13 anos da morte de Millôr Fernandes. 

Ele, cuja maior qualidade não era a modéstia, certa vez disse de si mesmo que  melhorou Shakespeare nas traduções em português, e que era um Bernard Shaw, além de gênio inexcedível no desenho, que os mencionados gênios não possuíam.

Manifestações assim de exagero não comportam estranheza em quem lê um obituário. Apenas cabe, em quem as lê, a surpresa de que artista desse valor não tenha sido notado em vida com tais magnificências. Se os sobreviventes não exageram agora, foram relapsos, mesquinhos e insensíveis antes. Mas agora Millôr Fernandes é memória. Como uma lembrança distante dos seus famosos retratos 3 x 4, tentarei esboçar algo em preto e branco da sua pessoa.

É chover no molhado falar de suas qualidades como escritor, dono de humor moderno e de vanguarda, gênio no desenho e nas mais diversas criações. Se estivesse vivo, ele diria: “Sim, mas fale ainda assim, chover no molhado tem lá sua graça”. Aquilo que se disse de Chico Anysio, que era homem de mais de 200 personagens, porque fazia mais de 200 caricaturas, de Millôr pode ser dito que era mais de 200 criadores, sem apoio da muleta da maquiagem. Ele era tão bom nos textos para sorrir quanto melhor nos sérios, como no retrato de Sérgio Porto e nas frases sobre a sua infância dickensiana. Esse chover no molhado, é fato, ainda não recebeu a consagração das academias, talvez como uma resposta delas à antipatia de Millôr pelos estudos acadêmicos.

De passagem anoto que a mitificação em vida de Millôr não se deu por falta de esforços próprios. Em trecho da sua autobiografia escreveu: “1943 – Começam os anos gloriosos da revista O Cruzeiro, que um grupo de meninos levaria dos estagnados 11.000 exemplares tradicionais a 750.000.”E um dos meninos era ele. Isso foi repetido nos obituários da televisão, mas é mais falso que nota de milhão de cruzeiros. Millôr estava em O Cruzeiro na época, mas é tão responsável pelo sucesso da revista quanto um relógio é responsável pela hora da passagem do trem. Notem: a sua página, O Pif Paf, em O Cruzeiro, não conseguia grande leitura porque a popularidade sempre rejeitou a vanguarda. O que era bem diferente do maior sucesso de humor entre o povo até hoje, em todo o Brasil: O Amigo da Onça, de Péricles Maranhão. Péricles, mais a dupla David Nasser-Jean Manzon, repórteres desonestos e sensacionalistas ao extremo, é que foram os responsáveis pelo sucesso de O Cruzeiro.

Numa apagada e breve antologia de textos, lembramos:

“A Viúva

Quando a amiga lhe apresentou o garotinho lindo dizendo que era seu filho mais novo, ela não pôde resistir e exclamou: ‘Mas como, seu marido não morreu há cinco anos?’ ‘Sim, é verdade’ — respondeu então a outra, cheia daquela compreensão, sabedoria e calor que fazem os seres humanos — ‘mas eu não’.

MORAL: Não morre a passarada quando morre um pássaro”. 
(Livro “Fábulas Fabulosas”)

“Música, divina música!

Tanto duvidaram dele, da teoria daquele jovem gênio musical, que ele resolveu provar pra si mesmo, empiricamente, a teoria de que não existem animais selvagens. Que os animais são tão ou mais sensíveis do que os seres humanos. E que são sensíveis sobretudo ao envolvimento da música, quando esta é competentemente interpretada.

Por isso, uma noite, esgueirou-se sozinho pra dentro do Jardim Zoológico da cidade e, silenciosamente, se aproximou da jaula dos orangotangos. Começou a tocar baixinho, bem suave, a sua magnífica flauta doce, ao mesmo tempo em que abria a porta da jaula. Os macacões quase que não pestanejaram. Se moveram devagarinho, fascinados, apenas pra se aproximar mais do músico e do som.

O músico continuou as volutas de sua fantasia musical enquanto abria a jaula dos leões. Os leões, também hipnotizados, foram saindo, pé ante pé, com o respeito que só têm os grandes aficionados da música. E assim a flauta continuou soando no meio da noite, mágica e sedutora, enquanto o gênio ia abrindo jaula após jaula e os animais o acompanhavam, definitivamente seduzidos, como ele previra.

Uma lua enorme, de prata e ouro, iluminava os jacarés, elefantes, cobras, onças, tudo quanto é animal de Deus ali reunido, envolvidos na sinfonia improvisada no meio das árvores. Até que o músico, sempre tocando, abriu a última jaula do último animal – um tigre.
Que, mal viu a porta aberta, saltou sobre ele, engolindo músico e música – e flauta doce de quebra. Os bichos todos deram um oh! de consternação. A onça, chocada, exprimiu o espanto e a revolta de todos:

– Mas, tigre, era um músico estupendo, uma música sublime! Por que você fez isso? E o tigre, colocando as patas em concha nas orelhas, perguntou:

– Ahn? O quê, o quê? Fala mais alto, pô!

MORAL: OS ANIMAIS TAMBÉM TÊM DEFICIÊNCIAS HUMANAS”

Mas com o passar do tempo, em meio à sua genialidade, aflorou um claro reacionarismo. Assim, alcançamos o ponto mais sério. O que nele era graça se tornou azedume, ou gracinha para os amigos reacionários bem postos. Sobre o Barão de Itararé, o primeiro e grande humorista moderno do Brasil, na entrevista ao Roda Viva Millôr declarou:

“Agora, querer fazer com que eu engula o Barão de Itararé porque está engolido há 50 anos. Ele é um idiota. A moça quer saber, é um idiota. Faz uns trocadilhos bons, meia dúzia de trocadilhos imbecis…”

E mais, sobre Lula, em outra oportunidade: “É evidente que a ignorância lhe subiu à cabeça, não tem dúvida nenhuma. Porque de repente ele começou a se sentir culto, falar sobre tudo.” Socialismo: “A ideia do socialismo é incrível, mas está fadada a não dar certo. Porque o ser humano não é isso. Ele é capitalista na essência.”E esta pérola sobre o feminismo: “O melhor movimento feminino ainda é o dos quadris.”

Há uma característica em muitos humoristas de retirar humor do preconceito. Na época, as patadas nem se notam. Isso vem desde Aristófanes, que fazia gozação em suas comédias sobre o grande Sócrates. Ainda bem que não se confirmou, tal atraso, no gênio insuperável de Molière. No caso particular de Millôr, houve  a tragédia de homens brilhantes, criadores na maturidade, que se tornam na velhice primeiro uma caricatura do próprio gênio. Eles respondam ao mercado com uma transformação da originalidade em uma fórmula consagrada pela fama. Em Millôr Fernandes, em Gilberto Freyre, entre outros, mais adiante passam da caricatura à negação de si mesmos, como num lento apagar de luzes da velhice, em fade-out. Para nossa felicidade, resta a obra, o fogo da rebeldia dos melhores anos. Em Millôr há de sobreviver o prosador das Fábulas Fabulosas, de A história do paraíso, do revolucionário O Pif-Paf. E de modo mais claro, o frasista, que profetizou:

“A ocasião em que a inteligência do homem mais cresce, sua bondade alcança limites insuspeitados e seu caráter uma pureza inimaginável é nas primeiras 24 horas depois da sua morte.”

Assm foi também com ele.

Urariano Mota – Escritor, jornalista. Autor de “A mais longa duração da juventude”, “O filho renegado de Deus” e “Soledad no Recife”. Também publicou o “Dicionário Amoroso do Recife”.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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