Após a publicação, neste mês, de dois artigos com críticas às restrições impostas pela Prefeitura do Campus Butantã da USP ao ciclismo esportivo, o blog Ciclocosmo convidou a urbanista Raquel Rolnik, prefeita do campus, para uma entrevista.
A conversa aconteceu por telefone e Rolnik expôs sua insatisfação com os artigos. “Precisava pedir para corrigir algumas informações sobre o texto que você escreveu no blog, elas estão muito equivocadas”, disse a prefeita logo no início.
O primeiro texto, publicado no dia 16, faz um comparativo entre o desrespeito com o ciclismo em todo o país e as medidas tomadas pela administração da USP desde o início dos anos 2000, quando a universidade abandonou o velódromo, único da cidade, e impôs restrições para a circulação de ciclistas esportivos no campus Butantã, localizado na zona oeste da capital paulista.
A crítica questiona a falta de isonomia no tratamento dado a motoristas, que tem total liberdade de circulação no campus, e o tratamento dado aos ciclistas esportivos, que, pela norma da universidade, só podem circular às terças, quintas e sábados, das 4h30 às 6h30, com realização de cadastro e uso de placas de identificação —medidas historicamente reprovadas pelos atletas.
O segundo texto, publicado na terça-feira (25), se baseia nas observações de ciclistas que participaram de uma audiência pública para regular o ciclismo esportivo, promovida pela USP no dia 17, e na nota divulgada pela universidade logo após o evento.
O artigo critica tanto a USP, por esta destacar que “a regulação existente é considerada adequada”, quanto os ciclistas esportivos, que tiveram participação tímida no evento que foi feito justamente para eles serem ouvidos. O artigo deixa claro que as restrições não atingem os ciclistas de deslocamento urbano.
A seguir, o que Rolnik disse durante a entrevista.
Investimento no modal bicicleta
“A primeira coisa que é muito importante de você entender, é que a USP tem investido muito na promoção do uso da bicicleta como meio de transporte, e tem feito isso há vários anos. O exemplo mais eloquente disso, promovendo os modos ativos e reduzindo o uso dos automóveis, é a implantação dos 36 km de ciclovias e ciclofaixas dentro do campus. Esse trabalho aconteceu com muito diálogo com os ciclistas. A gente tem hoje uma das maiores redes cicloviárias na cidade de São Paulo. Em alguns pontos é articulada com o sistema de ciclovias da cidade. Só não é mais articulada por causa das limitações da Prefeitura de São Paulo.”
Plano Diretor do Campus Butantã
“A política da USP é de estímulo aos modos ativos. Na mesma linha, tem o desestímulo ao uso do automóvel. Estamos numa política, já há vários anos, de desmontar estacionamentos de carros. Fazemos pesquisas de origem e destino para entender a mobilidade no campus, e a gente viu uma redução do uso do automóvel. Portanto, começamos a implantar áreas de convivência no lugar de estacionamentos. A circulação de pedestres e ciclistas é o centro de nossa proposta de mobilidade no plano diretor [do campus Butantã], que acabamos de aprovar, assim como o transporte coletivo. Inclusive, uma coisa muito importante, é o trabalho que fizemos com a companhia do Metrô para projetar uma estação no campus, articulada, evidentemente, com o uso de bicicletas e pés. É a linha 22 do Metrô. [Essa proposta] foi toda trabalhada com imensa participação de alunos e docentes. Você tem que entender que o campus foi pensado em plena era carbocêntrica, modernista e rodoviarista. O projeto do campus foi esse, e a proposta do novo plano diretor é reverter esse projeto. A nova discussão é toda baseada na circulação do pedestre.”
Ciclismo esportivo
“Uma coisa é o uso de bicicleta como meio de transporte e lazer, e nós fomos os maiores ativistas e militantes por isso, estimulando esse uso dentro do campus. Já o ciclismo esportivo de alto desempenho, também chamado de ciclismo de estrada, tem uma outra lógica de ocupação de espaço. É um ciclismo de altíssima velocidade e que precisa da estrada para sua prática ideal, de um local que não tem nenhuma interrupção. Ele é praticado no campus há vários anos, e o campus não tem tentado impedir nem proibir. Isso de fato aconteceu no passado, como você disse. Porém, a regulação do horário das 4h30 às 6h30 foi estabelecido de comum acordo com as assessorias esportivas e federações para interferir menos nas [rotinas] das pessoas que chegam ao campus de ônibus, automóvel, bicicleta e a pé. Muitas das queixas são de pedestres que não conseguem atravessar as faixas de pedestres onde esses pelotões de 30, 40 bicicletas juntas, em altíssima velocidade, não param. Então tem uma dificuldade real do ciclismo esportivo usar essa área urbana, que não é uma estrada. Então não tem nada a ver em falar que o ciclista tem que acordar de madrugada, essa regra só vale para a prática do ciclismo esportivo. Nos demais horários, [o campus] está totalmente aberto para os demais ciclistas [de mobilidade urbana ou lazer]. As razões para as restrições e regulações do ciclismo esportivo têm razões prévias, que servem para a proteção do próprio ciclista esportivo, que muitas vezes é agredido por outras pessoas que se sentem prejudicadas.”
Audiência pública e novas regras
“O que a Prefeitura do Campus fez, e no que nós estamos trabalhando, é a construção de regras nas quais seja possível promover a convivência harmônica entre ciclistas esportivos e demais usuários do campus. Então tem restrição de horário e restrição de determinados locais. Ninguém faz isso para reprimir o ciclismo esportivo. Pelo contrário, estamos construindo uma situação adequada para a prática. E agora fizemos a audiência pública porque a regulação atual não é cumprida, porque o cadastramento é obrigatório e nunca foi feito, e precisa disso para saber exatamente quem está se comportando de tal maneira [inadequada], ao invés de acusar generalizadamente. Na audiência fizemos um grupo de trabalho com os ciclistas esportivos e os usuários do campus para achar soluções do cadastro, para fazer uma campanha de comunicação e entender como funciona essa lógica. Esse grupo vai rever as regras e construir outras formas de regulação. Não está decidido exatamente o que vai acontecer. A afirmação da audiência pública é da continuidade do uso do campus pelo ciclismo esportivo e uma regulação que será construída em conjunto com as representações.”
Velódromo abandonado
“Na audiência falaram do velódromo, e precisamos esclarecer que o ciclismo de estrada é completamente diferente do ciclismo de velódromo. Na proposta do plano diretor, o velódromo está marcado como uma das edificações tombadas com necessidade prioritária de restauro. Está marcada a vontade e o compromisso. Agora, isso não tem data e ainda há uma discussão se o velódromo vai ser restaurado para continuar com seu uso original, ou se vai virar um espaço multiúso, para outras práticas esportivas. Isto está ainda em discussão, inclusive com os ciclistas, para saber se faz sentido, se haverá demanda etc.”
RAIO X
Raquel Rolnik, 69
Nascida em São Paulo em 1956, se formou em arquitetura e urbanismo pela FAU-USP em 1978. Na FAU também fez o mestrado, em 1981. É doutora em história pela GSAS (Graduate School of Arts and Science) da New York University, título obtido em 1995. Se tornou livre-docente pela FAU em 2015.
Foi diretora de planejamento da Prefeitura de São Paulo na gestão Luiza Erundina (1989-1992) e secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades no primeiro mandato do presidente Lula (2003-2007). É prefeita do campus Butantã da USP desde 2022.
Autora de livros e diversos artigos sobre urbanismo.