*O artigo foi escrito pelo professor Leandro Tessler, professor do Instituto de Física da Unicamp, e publicado na plataforma The Conversation Brasil.
“Máscaras são incapazes de conter a transmissão da Covid-19, conclui estudo da USP”, diz a manchete de uma revista eletrônica. Ela foi reproduzida por vários influenciadores antivax sem formação científica, até pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. O estudo mencionado na matéria foi publicado na revista científica BMC Public Health, mas apresenta várias falhas metodológicas. A revista chegou a adicionar ao artigo uma nota alertando que “a confiabilidade dos dados relatados neste artigo está atualmente em disputa”.
O estudo “confirma” uma ideia cara aos milhões de pessoas que negaram descobertas científicas durante a pandemia, defensores de tratamento precoce e, como os autores do artigo, contrários ao uso de máscara. O artigo segue a metodologia científica, mas a aplica a partir de uma hipótese implausível (máscaras seriam deletérias para a transmissão da Covid), com um banco de dados não confiável (uso de máscaras baseado em autodeclaração). As conclusões só confirmam o viés inicial dos autores. Os achados do estudo foram desmentidos pelas agências de checagem Aos Fatos, Estadão Verifica e Lupa.
Recentemente, outro artigo com falhas metodológicas relativamente óbvias, publicado no Brazilian Journal of Psychiatry, “mostrou” que mediunidade tem base genética. Uma rápida busca pelos nomes dos autores mostra que quase todos (ou todos) seguem a religião espírita. Os resultados obtidos são resultado dos viéses e desejos dos autores, não da natureza.
Já um estudo publicado por um grupo da Universidade da Califórnia Irvine “mostrava” que difusores de óleos essenciais usados por sete noites (o número favorito da cabala) melhoravam a memória e cognição em idosos. Isso seria revolucionário, se fosse verdade. O estudo, no entanto, também apresenta várias falhas metodológicas e seu resultado só é levado a sério por empresas que o usam como evidência para vender óleos essenciais, iludindo seus clientes.
Esses exemplos mostram que nem toda ciência é igual: existe ciência de alta qualidade e ciência mal feita (em inglês, bad science). Mas como o cidadão comum, sem treinamento em ciência, pode distinguir entre uma e outra, especialmente se a ele é apresentado um artigo científico publicado (o que, para olhos leigos, por si só já confere autoridade a um achado científico) e confirma suas próprias crenças?
Para responder a essa questão, é preciso entender como funciona a validação das ideias científicas.
Ciência, ferramenta indispensável para entender a natureza
A ciência é, antes de tudo, uma forma de entender a natureza. Apesar de ser muito recente na história da humanidade, o sucesso da ciência em interpretar como e por que as coisas são como são fez dela uma ferramenta indispensável para validar ideias sobre praticamente tudo que nos cerca, assim como para criar tecnologias, das mais simples às mais sofisticadas, que levam à melhor qualidade de vida e a ganhos econômicos.
À medida em que se criou uma comunidade científica, ficou claro que a comunicação entre cientistas é fundamental para avançar no conhecimento. Assim, foram fundadas revistas científicas, nas quais os cientistas publicam seus achados na forma de artigos científicos, um gênero textual bem específico, que permite a difusão de ideias e a construção de novos conhecimentos a partir de conhecimento anteriormente estabelecido.
Com o tempo, foram criados mecanismos de controle de qualidade para a publicação de artigos científicos. Não basta ter uma ideia nova, os autores precisam convencer os editores — em geral, cientistas de alta reputação entre seus colegas — que suas ideias correspondem aos fatos. Um dos processos que busca garantir qualidade é a revisão por pares, na qual um artigo enviado para publicação recebe o parecer de especialistas para auxiliar na decisão final do editor da revista.
Esse processo é muito importante, pois os cientistas são humanos e seu trabalho está sujeito a erros, vieses e equívocos de diversas naturezas. Revistas científicas sérias, com processo de revisão rigoroso, ganharam reputação impecável no sentido de sabermos que artigos que passaram pelo seus processos de revisão por pares provavelmente contém boas ideias e interpretações acuradas da natureza.
Viéses e crenças embaçando a ciência
Devido ao sucesso da ciência para interpretar a natureza, muita gente busca a validação de ideias e crenças através dela, ainda que, por vezes, essas ideias e crenças não sejam boas ou não correspondam aos fatos.
Artigos baseados em pseudociência (quando a pesquisa não seguiu a metodologia científica para ser realizada, mas o texto é escrito de forma a parecer científico) ou ciência mal feita (quando a pesquisa seguiu a metodologia científica mas com erros — que podem ser graves ou sutis — que levam a conclusões que não correspondem à realidade) em geral não conseguem passar pelo processo de revisão em revistas rigorosas. Como consequência, foram criadas milhares de revistas científicas com rigor editorial que varia entre quase inexistente e relaxado.
Isso existe há décadas e nunca foi um grande problema para os cientistas. Mas, recentemente, essas revistas pouco confiáveis passaram a ser usadas por leigos como provas irrefutáveis da verdade. O exemplo mais claro disso talvez seja a pandemia de Covid, que causou um apetite nunca antes visto do público em geral por informação científica.
Quando todos queriam entender o que estava acontecendo e como seria possível evitar ser vítima da doença, alguns governantes — como os então presidentes dos EUA Donald Trump e do Brasil Jair Bolsonaro — usaram a ciência de má qualidade para impor a seus seguidores uma interpretação anti-científica não só do comportamento da doença como também do tratamento e da eficácia das vacinas.
Militantes pelo chamado “tratamento precoce”, sempre alinhados politicamente com esses presidentes, brandiam artigos “científicos”, publicados em periódicos, afirmando as maravilhas da cloroquina, ivermectina e outras drogas. Nenhum desses artigos foi publicado em revistas de alto prestígio. O artigo seminal do tratamento por cloroquina — já retratado por decisão da empresa dona da revista (e não pelo editor da revista) —, por exemplo, saiu numa revista de baixo rigor científico, cujo editor era subordinado hierarquicamente ao autor principal.
Indícios de má ciência
Há vários indícios de que um achado científico, mesmo publicado, pode não ter o rigor que se espera da ciência. Obviamente, o principal é a qualidade da revista onde o artigo foi publicado. Artigos com resultados revolucionários ou muito importantes em geral aparecem em revistas de alto impacto científico e alto rigor. Posso citar Science ou Nature, além de outras revistas de alto prestígio nas diferentes áreas do conhecimento. Entretanto, essa regra não é absoluta: artigos muito importantes podem aparecer em revistas menos importantes.
Outro indício de má ciência são conclusões exageradas ou muito surpreendentes, como os artigos sobre uso de máscaras e Covid e sobre óleos essenciais, do início desse texto. Neles, a metodologia científica foi aplicada de forma desleixada, propositalmente ou não, chegando aos resultados que os pesquisadores desejavam em lugar do entendimento dos fatos.
Em geral, artigos com metodologia fraca ou inadequada são resultado de crenças ou viéses dos autores. Um exemplo recorrente são autores com fortes crenças religiosas que buscam, de alguma forma, demostrar ou provar que há evidência científica para suas convicções, como o artigo da mediunidade que citamos.
Vale lembrar que artigos científicos mal feitos podem ter autores de instituições renomadas, e seus defensores invariavelmente tentam validar seus resultados duvidosos através do prestígio das instituições. Mas não se deve confundir os autores de ciência de má qualidade com as instituições que os acolhem. Universidade da Califórnia, USP e Harvard continuam sendo instituições de primeira linha, mesmo que alguns de seus pesquisadores tenham publicado ciência mal feita.
Consenso científico
Cientistas experientes entendem o suficiente de metodologia para saber quando um artigo, mesmo tendo sido publicado, é de má qualidade. Por isso, consensos científicos são fundamentais. Consensos consistem na opinião fundamentada da comunidade científica. Quando muitos cientistas lêem um artigo e concordam que ele é mal feito, então ele muito provavelmente é mal feito.
Para encontrar os consensos, vale a pena buscar artigos de opinião nos sites de instituições renomadas ou revistas de alto prestígio, ou ainda acompanhar a imprensa especializada. Outra fonte confiável são as agências de checagem de fatos, como as já citadas, que têm uma reputação a manter, estudam a fundo e buscam opiniões abalizadas de verdadeiros especialistas em lugar de “cientistas” enviesados ou militantes.
Nosso entendimento da natureza está baseado em boa ciência. Dessa forma, sabemos que muito provavelmente máscaras usadas corretamente reduzem o contágio de doenças respiratórias, óleos essenciais não melhoram a memória de idosos, mediunidade não tem base genética e cloroquina não cura Covid. Se no futuro um artigo bem feito mostrar o contrário, o consenso científico certamente mudará.
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*O artigo foi escrito pelo professor Leandro Tessler, professor do Instituto de Física da Unicamp, e publicado na plataforma The Conversation Brasil.
“Máscaras são incapazes de conter a transmissão da Covid-19, conclui estudo da USP”, diz a manchete de uma revista eletrônica. Ela foi reproduzida por vários influenciadores antivax sem formação científica, até pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. O estudo mencionado na matéria foi publicado na revista científica BMC Public Health, mas apresenta várias falhas metodológicas. A revista chegou a adicionar ao artigo uma nota alertando que “a confiabilidade dos dados relatados neste artigo está atualmente em disputa”.
O estudo “confirma” uma ideia cara aos milhões de pessoas que negaram descobertas científicas durante a pandemia, defensores de tratamento precoce e, como os autores do artigo, contrários ao uso de máscara. O artigo segue a metodologia científica, mas a aplica a partir de uma hipótese implausível (máscaras seriam deletérias para a transmissão da Covid), com um banco de dados não confiável (uso de máscaras baseado em autodeclaração). As conclusões só confirmam o viés inicial dos autores. Os achados do estudo foram desmentidos pelas agências de checagem Aos Fatos, Estadão Verifica e Lupa.
Recentemente, outro artigo com falhas metodológicas relativamente óbvias, publicado no Brazilian Journal of Psychiatry, “mostrou” que mediunidade tem base genética. Uma rápida busca pelos nomes dos autores mostra que quase todos (ou todos) seguem a religião espírita. Os resultados obtidos são resultado dos viéses e desejos dos autores, não da natureza.
Já um estudo publicado por um grupo da Universidade da Califórnia Irvine “mostrava” que difusores de óleos essenciais usados por sete noites (o número favorito da cabala) melhoravam a memória e cognição em idosos. Isso seria revolucionário, se fosse verdade. O estudo, no entanto, também apresenta várias falhas metodológicas e seu resultado só é levado a sério por empresas que o usam como evidência para vender óleos essenciais, iludindo seus clientes.
Esses exemplos mostram que nem toda ciência é igual: existe ciência de alta qualidade e ciência mal feita (em inglês, bad science). Mas como o cidadão comum, sem treinamento em ciência, pode distinguir entre uma e outra, especialmente se a ele é apresentado um artigo científico publicado (o que, para olhos leigos, por si só já confere autoridade a um achado científico) e confirma suas próprias crenças?
Para responder a essa questão, é preciso entender como funciona a validação das ideias científicas.
Ciência, ferramenta indispensável para entender a natureza
A ciência é, antes de tudo, uma forma de entender a natureza. Apesar de ser muito recente na história da humanidade, o sucesso da ciência em interpretar como e por que as coisas são como são fez dela uma ferramenta indispensável para validar ideias sobre praticamente tudo que nos cerca, assim como para criar tecnologias, das mais simples às mais sofisticadas, que levam à melhor qualidade de vida e a ganhos econômicos.
À medida em que se criou uma comunidade científica, ficou claro que a comunicação entre cientistas é fundamental para avançar no conhecimento. Assim, foram fundadas revistas científicas, nas quais os cientistas publicam seus achados na forma de artigos científicos, um gênero textual bem específico, que permite a difusão de ideias e a construção de novos conhecimentos a partir de conhecimento anteriormente estabelecido.
Com o tempo, foram criados mecanismos de controle de qualidade para a publicação de artigos científicos. Não basta ter uma ideia nova, os autores precisam convencer os editores — em geral, cientistas de alta reputação entre seus colegas — que suas ideias correspondem aos fatos. Um dos processos que busca garantir qualidade é a revisão por pares, na qual um artigo enviado para publicação recebe o parecer de especialistas para auxiliar na decisão final do editor da revista.
Esse processo é muito importante, pois os cientistas são humanos e seu trabalho está sujeito a erros, vieses e equívocos de diversas naturezas. Revistas científicas sérias, com processo de revisão rigoroso, ganharam reputação impecável no sentido de sabermos que artigos que passaram pelo seus processos de revisão por pares provavelmente contém boas ideias e interpretações acuradas da natureza.
Viéses e crenças embaçando a ciência
Devido ao sucesso da ciência para interpretar a natureza, muita gente busca a validação de ideias e crenças através dela, ainda que, por vezes, essas ideias e crenças não sejam boas ou não correspondam aos fatos.
Artigos baseados em pseudociência (quando a pesquisa não seguiu a metodologia científica para ser realizada, mas o texto é escrito de forma a parecer científico) ou ciência mal feita (quando a pesquisa seguiu a metodologia científica mas com erros — que podem ser graves ou sutis — que levam a conclusões que não correspondem à realidade) em geral não conseguem passar pelo processo de revisão em revistas rigorosas. Como consequência, foram criadas milhares de revistas científicas com rigor editorial que varia entre quase inexistente e relaxado.
Isso existe há décadas e nunca foi um grande problema para os cientistas. Mas, recentemente, essas revistas pouco confiáveis passaram a ser usadas por leigos como provas irrefutáveis da verdade. O exemplo mais claro disso talvez seja a pandemia de Covid, que causou um apetite nunca antes visto do público em geral por informação científica.
Quando todos queriam entender o que estava acontecendo e como seria possível evitar ser vítima da doença, alguns governantes — como os então presidentes dos EUA Donald Trump e do Brasil Jair Bolsonaro — usaram a ciência de má qualidade para impor a seus seguidores uma interpretação anti-científica não só do comportamento da doença como também do tratamento e da eficácia das vacinas.
Militantes pelo chamado “tratamento precoce”, sempre alinhados politicamente com esses presidentes, brandiam artigos “científicos”, publicados em periódicos, afirmando as maravilhas da cloroquina, ivermectina e outras drogas. Nenhum desses artigos foi publicado em revistas de alto prestígio. O artigo seminal do tratamento por cloroquina — já retratado por decisão da empresa dona da revista (e não pelo editor da revista) —, por exemplo, saiu numa revista de baixo rigor científico, cujo editor era subordinado hierarquicamente ao autor principal.
Indícios de má ciência
Há vários indícios de que um achado científico, mesmo publicado, pode não ter o rigor que se espera da ciência. Obviamente, o principal é a qualidade da revista onde o artigo foi publicado. Artigos com resultados revolucionários ou muito importantes em geral aparecem em revistas de alto impacto científico e alto rigor. Posso citar Science ou Nature, além de outras revistas de alto prestígio nas diferentes áreas do conhecimento. Entretanto, essa regra não é absoluta: artigos muito importantes podem aparecer em revistas menos importantes.
Outro indício de má ciência são conclusões exageradas ou muito surpreendentes, como os artigos sobre uso de máscaras e Covid e sobre óleos essenciais, do início desse texto. Neles, a metodologia científica foi aplicada de forma desleixada, propositalmente ou não, chegando aos resultados que os pesquisadores desejavam em lugar do entendimento dos fatos.
Em geral, artigos com metodologia fraca ou inadequada são resultado de crenças ou viéses dos autores. Um exemplo recorrente são autores com fortes crenças religiosas que buscam, de alguma forma, demostrar ou provar que há evidência científica para suas convicções, como o artigo da mediunidade que citamos.
Vale lembrar que artigos científicos mal feitos podem ter autores de instituições renomadas, e seus defensores invariavelmente tentam validar seus resultados duvidosos através do prestígio das instituições. Mas não se deve confundir os autores de ciência de má qualidade com as instituições que os acolhem. Universidade da Califórnia, USP e Harvard continuam sendo instituições de primeira linha, mesmo que alguns de seus pesquisadores tenham publicado ciência mal feita.
Consenso científico
Cientistas experientes entendem o suficiente de metodologia para saber quando um artigo, mesmo tendo sido publicado, é de má qualidade. Por isso, consensos científicos são fundamentais. Consensos consistem na opinião fundamentada da comunidade científica. Quando muitos cientistas lêem um artigo e concordam que ele é mal feito, então ele muito provavelmente é mal feito.
Para encontrar os consensos, vale a pena buscar artigos de opinião nos sites de instituições renomadas ou revistas de alto prestígio, ou ainda acompanhar a imprensa especializada. Outra fonte confiável são as agências de checagem de fatos, como as já citadas, que têm uma reputação a manter, estudam a fundo e buscam opiniões abalizadas de verdadeiros especialistas em lugar de “cientistas” enviesados ou militantes.
Nosso entendimento da natureza está baseado em boa ciência. Dessa forma, sabemos que muito provavelmente máscaras usadas corretamente reduzem o contágio de doenças respiratórias, óleos essenciais não melhoram a memória de idosos, mediunidade não tem base genética e cloroquina não cura Covid. Se no futuro um artigo bem feito mostrar o contrário, o consenso científico certamente mudará.
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