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15 Apr 2025, Tue

“O Ocidente nunca abandonou o nazismo”



Jornalista e pesquisadora das culturas árabe e muçulmana, a italiana Angela Lano esteve em Salvador em 2012, junto com o marido e os filhos, todos brasileiros. Encantou-se com o Centro de Estudos Afro-orientais (Ceao-Ufba), e passou a oferecer minicursos no instituto. Há um ano, ela dirige o Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa do Mundo Árabe e Islâmico (Nepai). Nesta entrevista, ela fala sobre as principais contribuições árabes para o mundo, a presença islâmica na Bahia e opina sobre os ataques de Israel a Gaza desde outubro de 2023, quando uma ação criminosa do Hamas em território israelense terminou com 1.189 mortos. Conhecedora profunda da causa palestina, Angela foi proibida por Israel de entrar na Cisjordânia e em Jerusalém, e avalia que toda a devastação que testemunhou não se compara ao extermínio e destruição do último um ano e meio. Segundo estudo publicado em janeiro pela revista Lancet, mais de 60 mil palestinos morreram em Gaza desde outubro de 2023.

O Nepai acaba de completar um ano. Quais são os objetivos do núcleo e de suas atividades?

O Nepai é uma iniciativa inovadora vinculada ao Ceao e ao programa de pós-graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro) da Ufba. Foi criado em abril de 2024, com recursos da Fapesb (Fundação de Amparo à Pesquisa na Bahia), com a minha coordenação e a supervisão do professor Livio Sansone. Fazem parte da equipe também os professores Valdemir Zamparoni e Fábio Baqueiro Figueiredo. Integra-se ao Pós-Afro e ao Ceao para promover uma compreensão mais ampla das dinâmicas históricas, culturais e sociais das regiões árabes e islâmicas e sua missão é expandir e consolidar os estudos sobre os mundos árabes e islâmicos na Bahia, reconhecendo tanto a importante herança histórica islâmica no estado quanto a crescente presença de estudantes e cidadãos de países muçulmanos. A Bahia, com seu rico patrimônio cultural, é um lugar estratégico para os estudos do mundo árabe e islâmico. Hoje, a presença de estudantes africanos muçulmanos na Ufba e na Unilab reforça a importância de compreender e valorizar esse importante legado. O Núcleo organiza cursos disciplinares, minicursos, seminários e eventos que abordam temas como história, literatura, religião, antropologia e geopolítica, estabelecendo pontes entre diferentes tradições culturais e acadêmicas. Quero destacar também que a criação do Nepai está alinhada às políticas internacionais brasileiras e aos esforços globais para promover o diálogo Sul-Sul, fortalecendo as conexões entre a Bahia e os países do mundo árabe e islâmico, com foco na África muçulmana e na Ásia Ocidental

A senhora considera que o genocídio dos palestinos, em suas palavras, se equivale ao extermínio de nações indígenas na América Latina, no sentido de que populações exógenas se apropriaram dos territórios invadidos. Em nossa região, historicamente, podemos pensar na colonização e nas políticas públicas de ocupação que, no caso do Brasil, duraram oficialmente até a Ditadura Militar. Mas é justo dizer que hoje o Estado brasileiro mantém-se em uma linha de atuação similar a Benjamin Netanyahu?

Sim, e nosso trabalho no Nepai vai nessa direção: trata-se de colonialismo de assentamento, implementado através do genocídio e da substituição étnica dos povos nativos por outros de origem exógena, portadores de exclusiva instância de soberania. Os estudos coloniais de assentamento destacam o modelo sistemático da colonização sionista, considerando-a como um processo histórico que afeta a população palestina como um todo e que começou muito antes da Nakba, continuando até hoje sob diferentes formas e meios. As características fundamentais do colonialismo de assentamento – seja do sionismo, seja dos velhos assentamentos protestantes na América do Norte e católicos na América do Sul – são: 1) sua ‘natureza racial’ na posse da terra e na criação de sociedades baseadas no princípio da ‘superioridade racial’. O nazismo também se baseou nestes princípios… No caso do supremacismo sionista, a expulsão dos ‘não judeus’, ou seja, dos palestinos, é uma ‘necessidade inerente’: estamos vendo isso com o genocídio e a limpeza étnica em andamento na Faixa de Gaza, na Cisjordânia, em Jerusalém, e vimos isso com a Nakba de 1948 e a Naksa de 1967, com a contínua expansão dos assentamentos, do Muro, dos checkpoints e do sistema de apartheid. 2) A ‘dependência da violência’ em relação aos nativos, alvos por estarem na terra desejada pelos colonizadores; 3) a ‘atitude expansionista’: tomar posse de toda a terra dos nativos. No caso dos sionistas, está em linha com o objetivo histórico de estabelecer um Estado judeu em ‘Eretz Israel’, que incluiria o território da Palestina sob o Mandato Britânico, o Reino da Jordânia, o Sul do Líbano e o Sul e Sudeste da Síria (antiga Canaã) e outros estados. Semelhante ao que vem acontecendo há quase 80 anos na Palestina, a colonização do continente americano foi marcada por um projeto de extermínio e substituição populacional, onde povos europeus se apropriaram de territórios indígenas através de guerra aberta, doenças introduzidas deliberadamente (em relação ao Brasil, isso continuou com o Massacre do Paraguai (século 19), com serviços de proteção aos Índios que muitas vezes atuaram como instrumentos de controle estatal, não de proteção, com a ditadura militar (1964-1985), que acelerou a ocupação da Amazônia com projetos como a Transamazônica, levando a massacres de povos indígenas. Em ambos os casos – genocídios palestinos e dos indígenas americanos – há um projeto político de dominação territorial que passa pela desumanização e remoção do povo nativo. Na situação brasileira atual, está em andamento um genocídio negro – nas favelas – e indígena. Quanto à última parte da sua pergunta – se é justo dizer que hoje o Estado brasileiro mantém-se em uma linha de atuação similar a Benjamin Netanyahu, respondo que, no sentido estratégico, Netanyahu lidera um projeto nacionalista, supremacista de expansão colonial e de apartheid, enquanto o Brasil age por inércia histórica e manutenção de privilégios de elites. O que os une é que ambos são Estados fundados (ou reformulados) sobre a violência colonial, e hoje atualizam essa violência de formas diferentes; ambos utilizam a segurança pública como discurso para justificar violência. Israel fala em ‘defesa contra o Hamas’; o Brasil fala em ‘combate ao tráfico’; ambos beneficiam elites econômicas com a expropriação territorial. Agronegócio no Brasil, colonos em território palestino, ambos têm políticas racistas institucionalizadas. Apartheid israelense, letalidade policial brasileira.

A declaração de Donald Trump defendendo a retirada dos palestinos de Gaza para a construção de um grande projeto imobiliário dissipa qualquer dúvida sobre as intenções de Israel e dos Estados Unidos de ocupação do território. Por que a Europa é tão reticente à condenação das políticas de Netanyahu para esse território?

A declaração sobre a ‘Riviera de Gaza’ é, de fato, uma confissão explícita de que o projeto sionista não é apenas de ocupação, mas de substituição demográfica e econômica, apagando a presença palestina para transformar Gaza em mais uma frente de especulação capitalista. Na segunda-feira (dia 7/4), durante conferência de imprensa com Netanyahu na Casa Branca, Trump descreveu Gaza, de novo, como ‘um imóvel incrível’ e ‘propriedade à beira-mar’ da qual Israel uma vez ‘desistiu’. Trata-se de declarações em perfeito estilo colonial e hegemônico. Diante disso, a reticência da Europa em condenar Israel pode ser analisada por múltiplos fatores: se apresenta como a ‘civilização antifascista’, derrotando Hitler, mas apoia um regime que pratica apartheid e limpeza étnica, Israel. Isso confirma que o Ocidente nunca abandonou o nazismo, apenas o adaptou – o que Israel faz na Palestina é um eco do que a Alemanha nazista fez na Europa – mas como o Ocidente controla a narrativa, chama isso de ‘autodefesa’: expansionismo territorial, desumanização do inimigo. Os palestinos são vistos como ‘animais’, como os judeus eram chamados pelos nazistas; uso de propaganda (Israel acusa os críticos de ‘antissemitismo’, assim como os nazistas chamavam os opositores de ‘traidores’). Portanto, a Europa não condena Israel porque é cúmplice histórica. Afinal, foi a Europa que criou o sionismo como ‘solução’ para expulsar judeus do seu território; tem interesses capitalistas. As empresas europeias lucram com a ocupação, têm medo de enfrentar seu próprio passado colonial…

Alguns judeus ortodoxos citam o Corão para renegar a existência de um estado judeu. E Israel, que já era um sonho dos sionistas desde o século 19, foi criado após o horror do Holocausto na Segunda Guerra Mundial, por imposição do Reino Unido, que ocupou o território junto com os franceses. A senhora acredita na solução de dois Estados?

As citações do Alcorão são sempre descontextualizadas ou manipuladas pela propaganda filo-israelense… Historicamente, o sionismo surgiu no final do século 19, motivado pela colonização europeia, desenvolvido pela Inglaterra imperial e antissemita, que visava ocupar a área estratégica da Palestina otomana, utilizando o sonho judaico do regresso a Sião. O movimento sionista não apenas estabeleceu uma aliança com o imperialismo britânico para realizar seu plano, mas também se apresentou como um aliado envolvido na colonização. Na verdade, o sionismo afirmou-se claramente como ‘um movimento judaico para a colonização no Oriente’. A interpretação do sionismo através da lente do colonialismo de assentamento tem importantes implicações políticas: os instrumentos tradicionais de resolução de conflitos, compromisso territorial, negociações, medidas para a construção da paz e o fortalecimento da confiança, mostram-se ineficazes em uma situação de colonialismo de assentamento, que requer, ao invés disso, um processo de descolonização que desmantele a ideologia e a estrutura que reproduzem a dicotomia colonizador/nativo. Portanto, não acredito na solução de dois Estados. Palestinos e israelenses poderão viver em um Estado binacional depois de um longo processo de descolonização, de reparação e compensação – como aconteceu na África do Sul. Estamos muito longe de tudo isso.

A crescente presença árabe e muçulmana na Europa e nos Estados Unidos vem sendo fortemente combatida pela extrema-direita, com a associação do islamismo ao terrorismo. Ao mesmo tempo em que precisa da migração para suprir o mercado de trabalho, a Europa está em decadência econômica e pode deixar de ser atrativa para imigrantes nas próximas décadas. Que futuro a senhora vislumbra para as populações muçulmanas no continente?

Em primeiro lugar, gostaria de relembrar as grandes contribuições científicas, arquitetônicas, humanísticas e culturais que as civilizações islâmicas transmitiram durante séculos ao Ocidente, ajudando a moldar a Europa moderna (este é um dos tópicos das minhas aulas no Nepai). Secundariamente, a Europa encontra-se hoje num dilema civilizacional e numa espécie de contradição esquizofrênica: por um lado, depende estruturalmente da imigração, também muçulmana, para sustentar sua economia envelhecida; por outro, assiste ao crescimento de movimentos políticos que veem essa mesma presença como uma ameaça existencial à identidade europeia (identidade, repito, que não é apenas greco-romana e cristã, mas também árabe-muçulmana, entre outras). Este paradoxo é um sintoma de uma contradição inerente ao projeto neoliberal europeu de mão de obra barata, ou semiescrava, contra o desejo de manter uma homogeneidade cultural fictícia. Leis que proíbem símbolos religiosos islâmicos em espaços públicos, a criminalização de organizações muçulmanas sob o pretexto de combate ao ‘extremismo’, etc., revelam um projeto de supremacismo e racismo. Ao mesmo tempo, a Europa deixou de ser o farol de prosperidade que atraía gerações de imigrantes. Com economias estagnadas, custo de vida insustentável e o declínio do bem-estar social, muitos muçulmanos já começam a olhar para outras paragens. Neste contexto, o futuro das comunidades muçulmanas na Europa caminha para cenários sombrios, como o do apartheid social permanente, guetos urbanos isolados do resto da sociedade, alimentando ciclos de violência e repressão, e radicalização mútua. Outro cenário, não impossível, pode ser o da transformação demográfica e cultural que force a Europa a repensar sua identidade. O que parece certo é que a Europa não poderá manter por muito tempo essa esquizofrenia política de depender dos muçulmanos enquanto os odeia.



Jornalista e pesquisadora das culturas árabe e muçulmana, a italiana Angela Lano esteve em Salvador em 2012, junto com o marido e os filhos, todos brasileiros. Encantou-se com o Centro de Estudos Afro-orientais (Ceao-Ufba), e passou a oferecer minicursos no instituto. Há um ano, ela dirige o Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa do Mundo Árabe e Islâmico (Nepai). Nesta entrevista, ela fala sobre as principais contribuições árabes para o mundo, a presença islâmica na Bahia e opina sobre os ataques de Israel a Gaza desde outubro de 2023, quando uma ação criminosa do Hamas em território israelense terminou com 1.189 mortos. Conhecedora profunda da causa palestina, Angela foi proibida por Israel de entrar na Cisjordânia e em Jerusalém, e avalia que toda a devastação que testemunhou não se compara ao extermínio e destruição do último um ano e meio. Segundo estudo publicado em janeiro pela revista Lancet, mais de 60 mil palestinos morreram em Gaza desde outubro de 2023.

O Nepai acaba de completar um ano. Quais são os objetivos do núcleo e de suas atividades?

O Nepai é uma iniciativa inovadora vinculada ao Ceao e ao programa de pós-graduação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro) da Ufba. Foi criado em abril de 2024, com recursos da Fapesb (Fundação de Amparo à Pesquisa na Bahia), com a minha coordenação e a supervisão do professor Livio Sansone. Fazem parte da equipe também os professores Valdemir Zamparoni e Fábio Baqueiro Figueiredo. Integra-se ao Pós-Afro e ao Ceao para promover uma compreensão mais ampla das dinâmicas históricas, culturais e sociais das regiões árabes e islâmicas e sua missão é expandir e consolidar os estudos sobre os mundos árabes e islâmicos na Bahia, reconhecendo tanto a importante herança histórica islâmica no estado quanto a crescente presença de estudantes e cidadãos de países muçulmanos. A Bahia, com seu rico patrimônio cultural, é um lugar estratégico para os estudos do mundo árabe e islâmico. Hoje, a presença de estudantes africanos muçulmanos na Ufba e na Unilab reforça a importância de compreender e valorizar esse importante legado. O Núcleo organiza cursos disciplinares, minicursos, seminários e eventos que abordam temas como história, literatura, religião, antropologia e geopolítica, estabelecendo pontes entre diferentes tradições culturais e acadêmicas. Quero destacar também que a criação do Nepai está alinhada às políticas internacionais brasileiras e aos esforços globais para promover o diálogo Sul-Sul, fortalecendo as conexões entre a Bahia e os países do mundo árabe e islâmico, com foco na África muçulmana e na Ásia Ocidental

A senhora considera que o genocídio dos palestinos, em suas palavras, se equivale ao extermínio de nações indígenas na América Latina, no sentido de que populações exógenas se apropriaram dos territórios invadidos. Em nossa região, historicamente, podemos pensar na colonização e nas políticas públicas de ocupação que, no caso do Brasil, duraram oficialmente até a Ditadura Militar. Mas é justo dizer que hoje o Estado brasileiro mantém-se em uma linha de atuação similar a Benjamin Netanyahu?

Sim, e nosso trabalho no Nepai vai nessa direção: trata-se de colonialismo de assentamento, implementado através do genocídio e da substituição étnica dos povos nativos por outros de origem exógena, portadores de exclusiva instância de soberania. Os estudos coloniais de assentamento destacam o modelo sistemático da colonização sionista, considerando-a como um processo histórico que afeta a população palestina como um todo e que começou muito antes da Nakba, continuando até hoje sob diferentes formas e meios. As características fundamentais do colonialismo de assentamento – seja do sionismo, seja dos velhos assentamentos protestantes na América do Norte e católicos na América do Sul – são: 1) sua ‘natureza racial’ na posse da terra e na criação de sociedades baseadas no princípio da ‘superioridade racial’. O nazismo também se baseou nestes princípios… No caso do supremacismo sionista, a expulsão dos ‘não judeus’, ou seja, dos palestinos, é uma ‘necessidade inerente’: estamos vendo isso com o genocídio e a limpeza étnica em andamento na Faixa de Gaza, na Cisjordânia, em Jerusalém, e vimos isso com a Nakba de 1948 e a Naksa de 1967, com a contínua expansão dos assentamentos, do Muro, dos checkpoints e do sistema de apartheid. 2) A ‘dependência da violência’ em relação aos nativos, alvos por estarem na terra desejada pelos colonizadores; 3) a ‘atitude expansionista’: tomar posse de toda a terra dos nativos. No caso dos sionistas, está em linha com o objetivo histórico de estabelecer um Estado judeu em ‘Eretz Israel’, que incluiria o território da Palestina sob o Mandato Britânico, o Reino da Jordânia, o Sul do Líbano e o Sul e Sudeste da Síria (antiga Canaã) e outros estados. Semelhante ao que vem acontecendo há quase 80 anos na Palestina, a colonização do continente americano foi marcada por um projeto de extermínio e substituição populacional, onde povos europeus se apropriaram de territórios indígenas através de guerra aberta, doenças introduzidas deliberadamente (em relação ao Brasil, isso continuou com o Massacre do Paraguai (século 19), com serviços de proteção aos Índios que muitas vezes atuaram como instrumentos de controle estatal, não de proteção, com a ditadura militar (1964-1985), que acelerou a ocupação da Amazônia com projetos como a Transamazônica, levando a massacres de povos indígenas. Em ambos os casos – genocídios palestinos e dos indígenas americanos – há um projeto político de dominação territorial que passa pela desumanização e remoção do povo nativo. Na situação brasileira atual, está em andamento um genocídio negro – nas favelas – e indígena. Quanto à última parte da sua pergunta – se é justo dizer que hoje o Estado brasileiro mantém-se em uma linha de atuação similar a Benjamin Netanyahu, respondo que, no sentido estratégico, Netanyahu lidera um projeto nacionalista, supremacista de expansão colonial e de apartheid, enquanto o Brasil age por inércia histórica e manutenção de privilégios de elites. O que os une é que ambos são Estados fundados (ou reformulados) sobre a violência colonial, e hoje atualizam essa violência de formas diferentes; ambos utilizam a segurança pública como discurso para justificar violência. Israel fala em ‘defesa contra o Hamas’; o Brasil fala em ‘combate ao tráfico’; ambos beneficiam elites econômicas com a expropriação territorial. Agronegócio no Brasil, colonos em território palestino, ambos têm políticas racistas institucionalizadas. Apartheid israelense, letalidade policial brasileira.

A declaração de Donald Trump defendendo a retirada dos palestinos de Gaza para a construção de um grande projeto imobiliário dissipa qualquer dúvida sobre as intenções de Israel e dos Estados Unidos de ocupação do território. Por que a Europa é tão reticente à condenação das políticas de Netanyahu para esse território?

A declaração sobre a ‘Riviera de Gaza’ é, de fato, uma confissão explícita de que o projeto sionista não é apenas de ocupação, mas de substituição demográfica e econômica, apagando a presença palestina para transformar Gaza em mais uma frente de especulação capitalista. Na segunda-feira (dia 7/4), durante conferência de imprensa com Netanyahu na Casa Branca, Trump descreveu Gaza, de novo, como ‘um imóvel incrível’ e ‘propriedade à beira-mar’ da qual Israel uma vez ‘desistiu’. Trata-se de declarações em perfeito estilo colonial e hegemônico. Diante disso, a reticência da Europa em condenar Israel pode ser analisada por múltiplos fatores: se apresenta como a ‘civilização antifascista’, derrotando Hitler, mas apoia um regime que pratica apartheid e limpeza étnica, Israel. Isso confirma que o Ocidente nunca abandonou o nazismo, apenas o adaptou – o que Israel faz na Palestina é um eco do que a Alemanha nazista fez na Europa – mas como o Ocidente controla a narrativa, chama isso de ‘autodefesa’: expansionismo territorial, desumanização do inimigo. Os palestinos são vistos como ‘animais’, como os judeus eram chamados pelos nazistas; uso de propaganda (Israel acusa os críticos de ‘antissemitismo’, assim como os nazistas chamavam os opositores de ‘traidores’). Portanto, a Europa não condena Israel porque é cúmplice histórica. Afinal, foi a Europa que criou o sionismo como ‘solução’ para expulsar judeus do seu território; tem interesses capitalistas. As empresas europeias lucram com a ocupação, têm medo de enfrentar seu próprio passado colonial…

Alguns judeus ortodoxos citam o Corão para renegar a existência de um estado judeu. E Israel, que já era um sonho dos sionistas desde o século 19, foi criado após o horror do Holocausto na Segunda Guerra Mundial, por imposição do Reino Unido, que ocupou o território junto com os franceses. A senhora acredita na solução de dois Estados?

As citações do Alcorão são sempre descontextualizadas ou manipuladas pela propaganda filo-israelense… Historicamente, o sionismo surgiu no final do século 19, motivado pela colonização europeia, desenvolvido pela Inglaterra imperial e antissemita, que visava ocupar a área estratégica da Palestina otomana, utilizando o sonho judaico do regresso a Sião. O movimento sionista não apenas estabeleceu uma aliança com o imperialismo britânico para realizar seu plano, mas também se apresentou como um aliado envolvido na colonização. Na verdade, o sionismo afirmou-se claramente como ‘um movimento judaico para a colonização no Oriente’. A interpretação do sionismo através da lente do colonialismo de assentamento tem importantes implicações políticas: os instrumentos tradicionais de resolução de conflitos, compromisso territorial, negociações, medidas para a construção da paz e o fortalecimento da confiança, mostram-se ineficazes em uma situação de colonialismo de assentamento, que requer, ao invés disso, um processo de descolonização que desmantele a ideologia e a estrutura que reproduzem a dicotomia colonizador/nativo. Portanto, não acredito na solução de dois Estados. Palestinos e israelenses poderão viver em um Estado binacional depois de um longo processo de descolonização, de reparação e compensação – como aconteceu na África do Sul. Estamos muito longe de tudo isso.

A crescente presença árabe e muçulmana na Europa e nos Estados Unidos vem sendo fortemente combatida pela extrema-direita, com a associação do islamismo ao terrorismo. Ao mesmo tempo em que precisa da migração para suprir o mercado de trabalho, a Europa está em decadência econômica e pode deixar de ser atrativa para imigrantes nas próximas décadas. Que futuro a senhora vislumbra para as populações muçulmanas no continente?

Em primeiro lugar, gostaria de relembrar as grandes contribuições científicas, arquitetônicas, humanísticas e culturais que as civilizações islâmicas transmitiram durante séculos ao Ocidente, ajudando a moldar a Europa moderna (este é um dos tópicos das minhas aulas no Nepai). Secundariamente, a Europa encontra-se hoje num dilema civilizacional e numa espécie de contradição esquizofrênica: por um lado, depende estruturalmente da imigração, também muçulmana, para sustentar sua economia envelhecida; por outro, assiste ao crescimento de movimentos políticos que veem essa mesma presença como uma ameaça existencial à identidade europeia (identidade, repito, que não é apenas greco-romana e cristã, mas também árabe-muçulmana, entre outras). Este paradoxo é um sintoma de uma contradição inerente ao projeto neoliberal europeu de mão de obra barata, ou semiescrava, contra o desejo de manter uma homogeneidade cultural fictícia. Leis que proíbem símbolos religiosos islâmicos em espaços públicos, a criminalização de organizações muçulmanas sob o pretexto de combate ao ‘extremismo’, etc., revelam um projeto de supremacismo e racismo. Ao mesmo tempo, a Europa deixou de ser o farol de prosperidade que atraía gerações de imigrantes. Com economias estagnadas, custo de vida insustentável e o declínio do bem-estar social, muitos muçulmanos já começam a olhar para outras paragens. Neste contexto, o futuro das comunidades muçulmanas na Europa caminha para cenários sombrios, como o do apartheid social permanente, guetos urbanos isolados do resto da sociedade, alimentando ciclos de violência e repressão, e radicalização mútua. Outro cenário, não impossível, pode ser o da transformação demográfica e cultural que force a Europa a repensar sua identidade. O que parece certo é que a Europa não poderá manter por muito tempo essa esquizofrenia política de depender dos muçulmanos enquanto os odeia.



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