São Paulo — Membros do Ministério Público em todo o país têm acumulado nos últimos anos vencimentos maiores do que os de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Somente em 2023, 90% dos promotores e procuradores receberam mais do que R$ 46,3 mil por mês, valor que representa o teto do funcionalismo no Brasil.
Dados da plataforma DadosJus, da Transparência Brasil, mostram que, no ano passado, membros do MP chegaram a ganhar mais de R$ 800 mil em um único mês e, em diversos MPs, houve centenas de pagamentos mensais acima de R$ 100 mil. Estudos acadêmicos analisados pelo Metrópoles mostram como foi criada a cultura de supersalários a membros do órgão em suas diferentes esferas.
A origem dos supersalários
- Assim como membros do Poder Judiciário, promotores têm direito a auxílios e bonificações que já incrementam seus vencimentos. Mas o grosso dos pagamentos acima do teto está no reconhecimento de pagamentos atrasados aos membros das carreiras jurídicas.
- Em todo o funcionalismo público, é comum que associações e sindicatos movam ações judiciais pelo reconhecimento do direito a pagamentos que deixaram de ser feitos a título de abonos, bônus e gratificações. Quando ganham as ações, os pagamentos entram para uma longa fila de precatórios e podem levar anos para serem pagos.
- No caso de carreiras jurídicas, como a do Ministério Público, os créditos não obedecem ao mesmo rito e, não raro, são pagos logo após as decisões que reconhecem os valores atrasados a serem pagos.
- Isso ocorre porque os pedidos de reconhecimento de valores devidos são feitos por meio de decisões de conselhos superiores dos próprios MPs.
- A análise e revisão desses pedidos cabe ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), órgão criado em 2004 para controlar e fiscalizar a atuação administrativa e financeira dos órgãos integrantes do Ministério Público nacional e supervisionar o cumprimento dos deveres funcionais dos seus membros.
- O CNMP é presidido pelo procurador-geral da República — atualmente, Paulo Gonet —, e composto por quatro membros do Ministério Público da União, três dos MPs nos Estados, dois juízes indicados pelo STF, dois advogados indicados pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e dois cidadãos de notório saber jurídico escolhidos pela Câmara e pelo Senado.
Atuação das associações
Estudiosos avaliam que o CNMP tem sido capturado pelos interesses das associações que defendem mais pagamentos à carreira. Os estudos analisaram a composição do órgão, o perfil dos conselheiros e as decisões tomadas desde a sua criação, há 20 anos.
Enquanto o conselho foi ocupado majoritariamente por dirigentes de associações de classe, julgamentos tiraram transparência salarial dos MPs e ampliaram privilégios da carreira.
Professor e pesquisador em Ciência Política pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Rafael Viegas chegou à conclusão de que, entre 2005 e 2019, 75% dos conselheiros do CNMP têm histórico de passagem pela direção ou posições de relevância em associações de classe.
Em seu livro, “Os caminhos da política no MPF”, Viegas expôs relatórios de gestão da associação que defende os interesses de procuradores da República desde os anos 1970 e constatou que o predomínio de pautas corporativistas e da briga por benefícios salariais. Neles, há menções de incursões no Congresso Nacional para pautar essas demandas.
Viegas afirma ao Metrópoles que as “associações são entidades privadas” que “exercem forte pressão junto ao Congresso Nacional” e “capturam o CNMP pela composição”, promovendo um “corporativismo predatório” que “transforma o conselho em instrumento de ampliação de espaços de poder, autoproteção, defesa de privilégios e interesses privados de membros do MP”.
Pagamento da licença-prêmio
Há diversos exemplos desse comportamento. No livro “O país dos privilégios”, o economista Bruno Carazza mostra como o CNMP, em 2007, abriu uma brecha para que a licença-prêmio, uma folga de 90 dias gozada a cada cinco anos, pudesse ser convertida em pagamento em dinheiro a promotores e procuradores, quando se aposentassem.
Nas gestões de Rodrigo Janot e Raquel Dodge no comando da Procuradoria-Geral da República (PGR), ambos usaram o entendimento do CNMP para ampliar o benefício, permitindo o pagamento da licença a qualquer membro da ativa, sem grandes restrições.
Ao longo dos anos, houve mais exemplos. Em 2023, por exemplo, o CNMP aprovou, em pouco mais de um minuto, uma norma que autorizou procuradores em férias, folgas e afastados a exercer mandatos em associações de classe, o chamado “acúmulo de acervo processual”: um penduricalho de R$ 11 mil por excesso de trabalho.
Salários sem transparência
Além de conceder os benefícios, o CNMP também tem imposto obstáculos à transparência salarial de promotores e procuradores. Em novembro de 2023, o órgão aprovou uma resolução que exigiu de todos que venham a acessar o portal da transparência dos MPs identificação com nome, CPF e e-mail.
O órgão também nunca aprovou qualquer medida semelhante à adotada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que fiscaliza tribunais e magistrados, para reunir dados dos vencimentos de procuradores. A consequência é que cada MP reúne essas informações de maneira diferente, o que impede um diagnóstico nacional mais preciso sobre os contracheques dos MPs.
O trabalho mais completo sobre o assunto é da Transparência Brasil, que reúne os dados de MPs e do Judiciário. Ainda assim, a ONG não teve acesso aos dados dos 27 MPs Estaduais.
“Transparência é muito mais do que você dar dados diferentes, em formatos diferentes, em lugares diferentes. É reunir uma informação de forma que ajude o controle social e não faça as pessoas coletarem dados em diversos sites. E quando você coloca um formulário que exige dados de quem acessa os contracheques, esse trabalho fica muito maior. O Ministério Público ativamente atua no sentido contrário da transparência e da promoção do controle social por meio de dados abertos”, diz Juliana Saikai, diretora da Transparência Brasil.
Outros pesquisadores apontaram dificuldades do CNMP em punir malfeitos de promotores. Mais recentemente, o conselho tem debatido uma proposta segundo a qual, para abrir uma investigação, será necessária maioria qualificada, ou seja, de dois terços do colegiado, e não simples, como funciona atualmente também no CNJ — órgão cujos moldes são os mesmos do CNMP. Na prática, se aprovada, a norma fará com que sejam necessários mais votos para poder abrir uma investigação sobre procuradores e promotores.
São Paulo — Membros do Ministério Público em todo o país têm acumulado nos últimos anos vencimentos maiores do que os de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Somente em 2023, 90% dos promotores e procuradores receberam mais do que R$ 46,3 mil por mês, valor que representa o teto do funcionalismo no Brasil.
Dados da plataforma DadosJus, da Transparência Brasil, mostram que, no ano passado, membros do MP chegaram a ganhar mais de R$ 800 mil em um único mês e, em diversos MPs, houve centenas de pagamentos mensais acima de R$ 100 mil. Estudos acadêmicos analisados pelo Metrópoles mostram como foi criada a cultura de supersalários a membros do órgão em suas diferentes esferas.
A origem dos supersalários
- Assim como membros do Poder Judiciário, promotores têm direito a auxílios e bonificações que já incrementam seus vencimentos. Mas o grosso dos pagamentos acima do teto está no reconhecimento de pagamentos atrasados aos membros das carreiras jurídicas.
- Em todo o funcionalismo público, é comum que associações e sindicatos movam ações judiciais pelo reconhecimento do direito a pagamentos que deixaram de ser feitos a título de abonos, bônus e gratificações. Quando ganham as ações, os pagamentos entram para uma longa fila de precatórios e podem levar anos para serem pagos.
- No caso de carreiras jurídicas, como a do Ministério Público, os créditos não obedecem ao mesmo rito e, não raro, são pagos logo após as decisões que reconhecem os valores atrasados a serem pagos.
- Isso ocorre porque os pedidos de reconhecimento de valores devidos são feitos por meio de decisões de conselhos superiores dos próprios MPs.
- A análise e revisão desses pedidos cabe ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), órgão criado em 2004 para controlar e fiscalizar a atuação administrativa e financeira dos órgãos integrantes do Ministério Público nacional e supervisionar o cumprimento dos deveres funcionais dos seus membros.
- O CNMP é presidido pelo procurador-geral da República — atualmente, Paulo Gonet —, e composto por quatro membros do Ministério Público da União, três dos MPs nos Estados, dois juízes indicados pelo STF, dois advogados indicados pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e dois cidadãos de notório saber jurídico escolhidos pela Câmara e pelo Senado.
Atuação das associações
Estudiosos avaliam que o CNMP tem sido capturado pelos interesses das associações que defendem mais pagamentos à carreira. Os estudos analisaram a composição do órgão, o perfil dos conselheiros e as decisões tomadas desde a sua criação, há 20 anos.
Enquanto o conselho foi ocupado majoritariamente por dirigentes de associações de classe, julgamentos tiraram transparência salarial dos MPs e ampliaram privilégios da carreira.
Professor e pesquisador em Ciência Política pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Rafael Viegas chegou à conclusão de que, entre 2005 e 2019, 75% dos conselheiros do CNMP têm histórico de passagem pela direção ou posições de relevância em associações de classe.
Em seu livro, “Os caminhos da política no MPF”, Viegas expôs relatórios de gestão da associação que defende os interesses de procuradores da República desde os anos 1970 e constatou que o predomínio de pautas corporativistas e da briga por benefícios salariais. Neles, há menções de incursões no Congresso Nacional para pautar essas demandas.
Viegas afirma ao Metrópoles que as “associações são entidades privadas” que “exercem forte pressão junto ao Congresso Nacional” e “capturam o CNMP pela composição”, promovendo um “corporativismo predatório” que “transforma o conselho em instrumento de ampliação de espaços de poder, autoproteção, defesa de privilégios e interesses privados de membros do MP”.
Pagamento da licença-prêmio
Há diversos exemplos desse comportamento. No livro “O país dos privilégios”, o economista Bruno Carazza mostra como o CNMP, em 2007, abriu uma brecha para que a licença-prêmio, uma folga de 90 dias gozada a cada cinco anos, pudesse ser convertida em pagamento em dinheiro a promotores e procuradores, quando se aposentassem.
Nas gestões de Rodrigo Janot e Raquel Dodge no comando da Procuradoria-Geral da República (PGR), ambos usaram o entendimento do CNMP para ampliar o benefício, permitindo o pagamento da licença a qualquer membro da ativa, sem grandes restrições.
Ao longo dos anos, houve mais exemplos. Em 2023, por exemplo, o CNMP aprovou, em pouco mais de um minuto, uma norma que autorizou procuradores em férias, folgas e afastados a exercer mandatos em associações de classe, o chamado “acúmulo de acervo processual”: um penduricalho de R$ 11 mil por excesso de trabalho.
Salários sem transparência
Além de conceder os benefícios, o CNMP também tem imposto obstáculos à transparência salarial de promotores e procuradores. Em novembro de 2023, o órgão aprovou uma resolução que exigiu de todos que venham a acessar o portal da transparência dos MPs identificação com nome, CPF e e-mail.
O órgão também nunca aprovou qualquer medida semelhante à adotada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que fiscaliza tribunais e magistrados, para reunir dados dos vencimentos de procuradores. A consequência é que cada MP reúne essas informações de maneira diferente, o que impede um diagnóstico nacional mais preciso sobre os contracheques dos MPs.
O trabalho mais completo sobre o assunto é da Transparência Brasil, que reúne os dados de MPs e do Judiciário. Ainda assim, a ONG não teve acesso aos dados dos 27 MPs Estaduais.
“Transparência é muito mais do que você dar dados diferentes, em formatos diferentes, em lugares diferentes. É reunir uma informação de forma que ajude o controle social e não faça as pessoas coletarem dados em diversos sites. E quando você coloca um formulário que exige dados de quem acessa os contracheques, esse trabalho fica muito maior. O Ministério Público ativamente atua no sentido contrário da transparência e da promoção do controle social por meio de dados abertos”, diz Juliana Saikai, diretora da Transparência Brasil.
Outros pesquisadores apontaram dificuldades do CNMP em punir malfeitos de promotores. Mais recentemente, o conselho tem debatido uma proposta segundo a qual, para abrir uma investigação, será necessária maioria qualificada, ou seja, de dois terços do colegiado, e não simples, como funciona atualmente também no CNJ — órgão cujos moldes são os mesmos do CNMP. Na prática, se aprovada, a norma fará com que sejam necessários mais votos para poder abrir uma investigação sobre procuradores e promotores.