Jornalista brasileira Betina Anton volta a episódio de infância em ‘Baviera Tropical’, livro premiado sobre Josef Mengele, médico da SS que atuou no campo de concentração em Auschwitz e viveu quase 20 anos no Brasil sem ser pego Uma das primeiras memórias da jornalista Betina Anton é dos 6 anos de idade, quando sumiu a professora da escola bilíngue alemã que frequentava na zona sul de São Paulo. Não entendia bem o motivo daquele desaparecimento, mas uma sensação de assombro pairava pelos corredores. Algo grave havia acontecido: a austríaca Liselotte Bossert fora demitida da escola por acolher e acobertar Josef Mengele durante uma década, na época o criminoso nazista mais procurado do mundo.
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Jornalista há mais de 20 anos, Anton resolveu elucidar o episódio da infância em Baviera Tropical (Ed. Todavia, 384 págs, R$89,90), vencedor do prêmio Jabuti na categoria reportagem e biografia em 2024 e já publicado em mais de 15 países. Realizou entrevistas inéditas e mergulhou em documentos esquecidos para escrever o primeiro livro do Brasil a contar em detalhes a história de Mengele, que viveu no país por quase 20 anos sem ser pego.
Conhecido como “Anjo da Morte”, uma das principais atribuições do médico de campo de concentração de Auschwitz era selecionar quem deveria morrer nas câmaras de gás e os que ainda poderiam servir para trabalhar. Também conduziu experimentos macabros com amostras de sangue e órgãos arrancados de prisioneiros para pesquisar assuntos como irmãos gêmeos, transtornos de crescimento, métodos de esterilização, transplantes de medula óssea, tifo, malária e anomalias do corpo.
Josef Mengele (ao meio) com Richard Baer, comandante de Auschwitz (à esq.), e Rudolf Hoess, ex-comandante de Auschwitz (à direita), em Auschwitz, em 1944
Getty Images
Após o fim da guerra, Mengele fugiu para a Argentina e depois para o Paraguai. Mais tarde, procurou refúgio no Brasil. Mengele morreu nos braços da amiga Liselotte em 1979, ao afogar-se na praia de Bertioga, litoral norte de São Paulo. A professora infantil foi a responsável por enterrar o médico nazista com um nome falso em um cemitério em Embu, segredo descoberto somente em 1985.
“A professora não só teve de sair da escola de forma abrupta como ficou malvista na comunidade, passou a receber ameaças anônimas por telefone e precisou comparecer diversas vezes à Superintendência da Polícia Federal para dar explicações. Acabou indiciada por três crimes: esconder um clandestino, inserir declaração falsa em documento público e usar documento falso. Dos 34 anos em que Mengele viveu escondido depois da Segunda Guerra Mundial, pelo menos dezoito foram no Brasil e os últimos dez, sob proteção dela e do marido”, diz trecho do livro.
Mengele no Paraguai, em 1960
Getty Images
A jornalista conta que o episódio pegou todos os alunos e pais de surpresa. Inclusive uma mãe judia, que depois quis retirar sua filha da escola. O diretor, no entanto, garantiu que também foi surpreendido ao saber da professora e que nunca houve abertura para a ideologia nazista dentro do colégio alemão.
Livro de Betina Anton
Divulgação
“Cada entrevista era uma vitória”, conta Anton, sobre o processo de apuração, que durou dois anos. Começou por ler os livros de referência sobre o assunto, publicados fora do Brasil, e pesquisar em arquivos de veículos da imprensa nacional como Veja e Estadão, em busca de depoimentos da época. Depois levantou os nomes dos entrevistados. “Não foi nada fácil. Muitos moravam em outros países, ou eram pessoas que tinham se envolvido com Mengele e não queriam falar.”
A jornalista descreve um encontro sinistro com a ex-professora, ao ir até sua casa pedir uma entrevista. Sentiu-se ameaçada em outras situações ao longo da apuração. “Tem pessoas no Brasil que estão vivas ainda e conviveram com Mengele. Conheço o parente de alguém que cuidou dele depois que teve um AVC. Esse conhecido foi categórico: ‘Não coloque o nome dele no seu livro, senão você será processada’. Me disse que ninguém ia me dar entrevista sobre isso.”
Prisioneiros no campo de concentração de Auschwitz, passando pela seleção de Mengele
Getty Images
Anton conseguiu encontrar com o agente secreto do Mossad [serviço de inteligência de Israel] Rafi Eitan, que, aos noventa anos, deu uma das últimas entrevistas de sua vida para o livro. “Fiquei três semanas em Israel, consegui entrevistá-lo na minha última tarde lá. Foi um sufoco para conseguir o contato, consegui por meio de um apresentador de rádio de Israel. Fui ao escritório dele. Ele fala coisas importantes nao só sobre Mengele, mas da decisão de David Ben-Gurion [ex-primeiro ministro de Israel] de qual nazista criminoso pegar primeiro. Adolf Eichmann foi o primeiro porque foi o primeiro a ser encontrado. Ele conta os bastidores, de como Mengele também deveria ter sido sequestrado junto com Eichmann.”
A jornalista também se debruçou sobre cartas escritas e recebidas por Mengele enquanto esteve no Brasil, encontradas no Museu da Academia Nacional de Polícia, em Brasília. É a primeira vez que o material é publicado em livro. “Mas não estavam expostas – como haveria de se esperar – e sim guardadas em gavetas empoeiradas”, conta.
Casa na estrada do Alvarenga, no bairro de Eldorado, na divisa entre São Paulo e Diadema, onde Mengele viveu seus últimos anos.
Getty Images
Segundo Anton, as cartas trazem uma importante contribuição à historiografia, ao contrariar a versão de que Mengele teria uma vida infeliz no Brasil. “Essa é a visão que o filho dele passou para a imprensa. Mengele reclamava muito, mas a vida que levou me surpreendeu. Ele tomava banho de cachoeira, ia para praia, fazia exploração de cavernas, ia para um sítio em Itapecerica. Gostava de conversar com amigos. Ia a uma livraria alemã, depois comer torta, no Brooklin. Teve acesso à cultura alemã o tempo todo. Ele gostava muito da natureza aqui, fazia o jardim da casa, saía para passear com os cachorros.”
De toda sua pesquisa, o que mais chocou a jornalista foi descobrir que a professora de infância havia feito um acordo com o Mossad para falar sobre a morte de Mengele. A informação consta em um arquivo da agência israelense mantido sob sigilo por décadas, aberto ao público em 2017, pouco tempo antes de Anton lê-lo. Liselotte concordou em fazer um teste de polígrafo, mas impôs um preço aos israelenses: 100 mil dólares. Após uma longa negociação mediada por seu advogado, chegaram ao valor de 45 mil.
Em 1994, foi condenada a pagamento de multa e dois anos de prisão, mas a defesa recorreu e, três anos depois, a Justiça disse que o crime já havia prescrito. Liselotte morreu em 2018, segundo uma vizinha, meses após falar com a jornalista.
A jornalista Betina Anton
Marcelo do Lago
Jornalista brasileira Betina Anton volta a episódio de infância em ‘Baviera Tropical’, livro premiado sobre Josef Mengele, médico da SS que atuou no campo de concentração em Auschwitz e viveu quase 20 anos no Brasil sem ser pego Uma das primeiras memórias da jornalista Betina Anton é dos 6 anos de idade, quando sumiu a professora da escola bilíngue alemã que frequentava na zona sul de São Paulo. Não entendia bem o motivo daquele desaparecimento, mas uma sensação de assombro pairava pelos corredores. Algo grave havia acontecido: a austríaca Liselotte Bossert fora demitida da escola por acolher e acobertar Josef Mengele durante uma década, na época o criminoso nazista mais procurado do mundo.
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Jornalista há mais de 20 anos, Anton resolveu elucidar o episódio da infância em Baviera Tropical (Ed. Todavia, 384 págs, R$89,90), vencedor do prêmio Jabuti na categoria reportagem e biografia em 2024 e já publicado em mais de 15 países. Realizou entrevistas inéditas e mergulhou em documentos esquecidos para escrever o primeiro livro do Brasil a contar em detalhes a história de Mengele, que viveu no país por quase 20 anos sem ser pego.
Conhecido como “Anjo da Morte”, uma das principais atribuições do médico de campo de concentração de Auschwitz era selecionar quem deveria morrer nas câmaras de gás e os que ainda poderiam servir para trabalhar. Também conduziu experimentos macabros com amostras de sangue e órgãos arrancados de prisioneiros para pesquisar assuntos como irmãos gêmeos, transtornos de crescimento, métodos de esterilização, transplantes de medula óssea, tifo, malária e anomalias do corpo.
Josef Mengele (ao meio) com Richard Baer, comandante de Auschwitz (à esq.), e Rudolf Hoess, ex-comandante de Auschwitz (à direita), em Auschwitz, em 1944
Getty Images
Após o fim da guerra, Mengele fugiu para a Argentina e depois para o Paraguai. Mais tarde, procurou refúgio no Brasil. Mengele morreu nos braços da amiga Liselotte em 1979, ao afogar-se na praia de Bertioga, litoral norte de São Paulo. A professora infantil foi a responsável por enterrar o médico nazista com um nome falso em um cemitério em Embu, segredo descoberto somente em 1985.
“A professora não só teve de sair da escola de forma abrupta como ficou malvista na comunidade, passou a receber ameaças anônimas por telefone e precisou comparecer diversas vezes à Superintendência da Polícia Federal para dar explicações. Acabou indiciada por três crimes: esconder um clandestino, inserir declaração falsa em documento público e usar documento falso. Dos 34 anos em que Mengele viveu escondido depois da Segunda Guerra Mundial, pelo menos dezoito foram no Brasil e os últimos dez, sob proteção dela e do marido”, diz trecho do livro.
Mengele no Paraguai, em 1960
Getty Images
A jornalista conta que o episódio pegou todos os alunos e pais de surpresa. Inclusive uma mãe judia, que depois quis retirar sua filha da escola. O diretor, no entanto, garantiu que também foi surpreendido ao saber da professora e que nunca houve abertura para a ideologia nazista dentro do colégio alemão.
Livro de Betina Anton
Divulgação
“Cada entrevista era uma vitória”, conta Anton, sobre o processo de apuração, que durou dois anos. Começou por ler os livros de referência sobre o assunto, publicados fora do Brasil, e pesquisar em arquivos de veículos da imprensa nacional como Veja e Estadão, em busca de depoimentos da época. Depois levantou os nomes dos entrevistados. “Não foi nada fácil. Muitos moravam em outros países, ou eram pessoas que tinham se envolvido com Mengele e não queriam falar.”
A jornalista descreve um encontro sinistro com a ex-professora, ao ir até sua casa pedir uma entrevista. Sentiu-se ameaçada em outras situações ao longo da apuração. “Tem pessoas no Brasil que estão vivas ainda e conviveram com Mengele. Conheço o parente de alguém que cuidou dele depois que teve um AVC. Esse conhecido foi categórico: ‘Não coloque o nome dele no seu livro, senão você será processada’. Me disse que ninguém ia me dar entrevista sobre isso.”
Prisioneiros no campo de concentração de Auschwitz, passando pela seleção de Mengele
Getty Images
Anton conseguiu encontrar com o agente secreto do Mossad [serviço de inteligência de Israel] Rafi Eitan, que, aos noventa anos, deu uma das últimas entrevistas de sua vida para o livro. “Fiquei três semanas em Israel, consegui entrevistá-lo na minha última tarde lá. Foi um sufoco para conseguir o contato, consegui por meio de um apresentador de rádio de Israel. Fui ao escritório dele. Ele fala coisas importantes nao só sobre Mengele, mas da decisão de David Ben-Gurion [ex-primeiro ministro de Israel] de qual nazista criminoso pegar primeiro. Adolf Eichmann foi o primeiro porque foi o primeiro a ser encontrado. Ele conta os bastidores, de como Mengele também deveria ter sido sequestrado junto com Eichmann.”
A jornalista também se debruçou sobre cartas escritas e recebidas por Mengele enquanto esteve no Brasil, encontradas no Museu da Academia Nacional de Polícia, em Brasília. É a primeira vez que o material é publicado em livro. “Mas não estavam expostas – como haveria de se esperar – e sim guardadas em gavetas empoeiradas”, conta.
Casa na estrada do Alvarenga, no bairro de Eldorado, na divisa entre São Paulo e Diadema, onde Mengele viveu seus últimos anos.
Getty Images
Segundo Anton, as cartas trazem uma importante contribuição à historiografia, ao contrariar a versão de que Mengele teria uma vida infeliz no Brasil. “Essa é a visão que o filho dele passou para a imprensa. Mengele reclamava muito, mas a vida que levou me surpreendeu. Ele tomava banho de cachoeira, ia para praia, fazia exploração de cavernas, ia para um sítio em Itapecerica. Gostava de conversar com amigos. Ia a uma livraria alemã, depois comer torta, no Brooklin. Teve acesso à cultura alemã o tempo todo. Ele gostava muito da natureza aqui, fazia o jardim da casa, saía para passear com os cachorros.”
De toda sua pesquisa, o que mais chocou a jornalista foi descobrir que a professora de infância havia feito um acordo com o Mossad para falar sobre a morte de Mengele. A informação consta em um arquivo da agência israelense mantido sob sigilo por décadas, aberto ao público em 2017, pouco tempo antes de Anton lê-lo. Liselotte concordou em fazer um teste de polígrafo, mas impôs um preço aos israelenses: 100 mil dólares. Após uma longa negociação mediada por seu advogado, chegaram ao valor de 45 mil.
Em 1994, foi condenada a pagamento de multa e dois anos de prisão, mas a defesa recorreu e, três anos depois, a Justiça disse que o crime já havia prescrito. Liselotte morreu em 2018, segundo uma vizinha, meses após falar com a jornalista.
A jornalista Betina Anton
Marcelo do Lago