São Paulo – Moradores da Favela Moinho, no centro da capital paulista, dizem que funcionários da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) têm orientado parte da população do local a “inflar” a renda familiar nos cadastros da empresa para terem acesso à carta de crédito oferecida para quem deixar a favela.
Entenda o caso
- Entrevistados pelo Metrópoles afirmam que a orientação foi dada pelos funcionários da CDHU para quem não têm renda suficiente para ter o financiamento aprovado e que, portanto, não poderia ser contemplado pela carta de crédito.
- A medida, no entanto, gera insegurança para a população.
- O advogado Vitor Nery, que acompanha o processo de remoção dos moradores pelo Escritório Modelo da PUC-SP, explica que quem não conseguir pagar o financiamento corre o risco de perder seus apartamentos no futuro.
- “A CDHU entra com ação de reintegração de posse quando não pagam”, diz Vitor. Ele afirma que o escritório da PUC está averiguando as denúncias e vai informar a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e a própria CDHU sobre o caso.
- Em nota, a companhia de habitação do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) disse que “exceções serão levadas em conta para melhor encaminhamento possível” (veja nota abaixo).
Salário Mínimo
Uma moradora que está desempregada, e vive na Favela do Moinho com quatro crianças, foi uma das que tiveram a renda familiar alterada no cadastro pelos funcionários do CDHU.
Em entrevista ao Metrópoles, ela disse que a sugestão de mentir sobre a situação financeira surgiu no momento do atendimento na companhia, quando ela disse aos funcionários que tinha apenas o Bolsa Família para sustentar a casa.
“Eles falaram que podiam até fazer o cadastro, só que eu não ia ter certeza que ia receber o benefício da moradia porque a minha renda não era suficiente. Aí eles perguntaram se podiam colocar [que eu tinha renda de] um salário mínimo. Eu falei: ‘Tudo bem. Se o que eu ganho não supre o que vocês estão falando pra ganhar a moradia, então pode colocar aí um salário mínimo’”.
A moradora, que terá sua identidade preservada nesta reportagem por risco de represálias, afirma que questionou os atendentes da companhia sobre como eles iriam comprovar uma renda que ela não possuía. “Eles falaram: ‘Não se preocupa, a gente dá um jeito aqui’. Foi quando eu dei todos os documentos que eles pediram lá e fiz o cadastro para moradia”.
Relatos do mesmo tipo se espalham pela comunidade. Alexssandra Aparecida da Silva, de 46 anos, conta que vários vizinhos estão na mesma situação.
“A CDHU falou que eles tinham que fazer uma carta de próprio punho dizendo que ganhavam um salário mínimo porque só vão ser atendidas as famílias que têm renda”, conta.
O advogado Vitor Nery disse que há “materialidade” nas denúncias e que os casos estão sendo averiguados pelo escritório. “A gente já sabe de alguns moradores [que tiveram o valor da renda alterado]. Inclusive, alguns que já aceitaram [as condições do CDHU], já mudaram e estão em uma situação ainda mais vulnerável e problemática”, afirma.
“O poder público não pode fazer esse tipo de mentira em um documento oficial”, diz o advogado, que defende que os moradores sem condições de financiar um imóvel sejam contemplados por habitação gratuita.
Questionada sobre o caso, a CDHU não respondeu se apura as denúncias citadas.
Em nota, a companhia disse que os parâmetros de enquadramento nas cartas de crédito são “a partir de um salário mínimo” e que “todas as exceções serão levadas em conta para melhor encaminhamento possível, com parcerias com outros entes para incremento de renda, ações de assistência social”.
“O Estado também convidou a União para, assim como fez a Prefeitura, participar com recursos de modo a possibilitar o atendimento pleno a todos os moradores da favela”, termina o texto.
A desocupação
As denúncias envolvendo o cadastro para a carta de crédito somam mais um capítulo ao complexo enredo da Favela do Moinho, que ficou conhecida como a última comunidade do centro de São Paulo, e que vive agora um processo intensificado de desocupação.
O terreno pertence à União, mas o governo estadual negocia a cessão do espaço para a construção de um parque e uma estação no local. Enquanto as negociações acontecem entre as duas esferas de poder, a CDHU tem ampliado as abordagens aos moradores para convencê-los a deixar a ocupação, instalada entre duas linhas de trem.
O governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) tem oferecido auxílios-moradia e opções de cartas de crédito com valor de até R$ 200 mil ou R$ 250 mil, dependendo da localização do imóvel.
A CDHU afirma que 86% da população aceitaram as propostas oferecidas pela companhia para deixar a favela, mas parte dos moradores diz que acatou as condições por medo de ficar sem casa e de ser alvo de violência durante a reintegração de posse.
Nas ruas da favela, o tema não sai das conversas entre vizinhos. “A gente tá fazendo um financiamento que é contra a nossa vontade, que não se encaixa no nosso orçamento. […] Se eu não conseguir pagar, eles vão tomar e eu vou voltar para onde?”, disse a comerciante Claudinei Leôncio, 34 anos.
Ela contou ao Metrópoles que financiará um imóvel do CDHU na Vila Nova Cachoeirinha, periferia da zona norte. As opções oferecidas no centro, segundo ela, não fazem sentido para a realidade das famílias da Favela.
“É tudo kitnet e um quarto os que têm disponível. Eu tenho três filhos, não vou pegar um apartamento de um quarto, sendo que eu vou ter que pagar o mesmo valor que um de dois [na periferia]”.
O pedreiro Rafael Freitas Porto, de 35 anos, é um dos que não aceitaram as condições da CDHU e ainda não sabe o que acontecerá com sua família. Há 13 anos, o baiano mora no Moinho, onde se instalou para conseguir acompanhar o tratamento do filho, que tem deficiência e é atendido na Santa Casa.
“Eu não vou sair daqui com meu filho especial, que faz tratamento na Santa Casa, para ir para Itaquera”.
Nesta terça-feira (22/4), alguns moradores desocuparam suas casas na favela. Josefa Flor da Silva, 74 anos, foi uma delas. Há 25 anos no Moinho, ela se mudou para a zona leste.
“Não vou ficar esperando três anos para construírem um apartamento [aqui no centro]. O que eu peguei já tá pronto”, afirmou, dizendo que também prefere ter uma vida “mais calma” em Itaquera.
São Paulo – Moradores da Favela Moinho, no centro da capital paulista, dizem que funcionários da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) têm orientado parte da população do local a “inflar” a renda familiar nos cadastros da empresa para terem acesso à carta de crédito oferecida para quem deixar a favela.
Entenda o caso
- Entrevistados pelo Metrópoles afirmam que a orientação foi dada pelos funcionários da CDHU para quem não têm renda suficiente para ter o financiamento aprovado e que, portanto, não poderia ser contemplado pela carta de crédito.
- A medida, no entanto, gera insegurança para a população.
- O advogado Vitor Nery, que acompanha o processo de remoção dos moradores pelo Escritório Modelo da PUC-SP, explica que quem não conseguir pagar o financiamento corre o risco de perder seus apartamentos no futuro.
- “A CDHU entra com ação de reintegração de posse quando não pagam”, diz Vitor. Ele afirma que o escritório da PUC está averiguando as denúncias e vai informar a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e a própria CDHU sobre o caso.
- Em nota, a companhia de habitação do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) disse que “exceções serão levadas em conta para melhor encaminhamento possível” (veja nota abaixo).
Salário Mínimo
Uma moradora que está desempregada, e vive na Favela do Moinho com quatro crianças, foi uma das que tiveram a renda familiar alterada no cadastro pelos funcionários do CDHU.
Em entrevista ao Metrópoles, ela disse que a sugestão de mentir sobre a situação financeira surgiu no momento do atendimento na companhia, quando ela disse aos funcionários que tinha apenas o Bolsa Família para sustentar a casa.
“Eles falaram que podiam até fazer o cadastro, só que eu não ia ter certeza que ia receber o benefício da moradia porque a minha renda não era suficiente. Aí eles perguntaram se podiam colocar [que eu tinha renda de] um salário mínimo. Eu falei: ‘Tudo bem. Se o que eu ganho não supre o que vocês estão falando pra ganhar a moradia, então pode colocar aí um salário mínimo’”.
A moradora, que terá sua identidade preservada nesta reportagem por risco de represálias, afirma que questionou os atendentes da companhia sobre como eles iriam comprovar uma renda que ela não possuía. “Eles falaram: ‘Não se preocupa, a gente dá um jeito aqui’. Foi quando eu dei todos os documentos que eles pediram lá e fiz o cadastro para moradia”.
Relatos do mesmo tipo se espalham pela comunidade. Alexssandra Aparecida da Silva, de 46 anos, conta que vários vizinhos estão na mesma situação.
“A CDHU falou que eles tinham que fazer uma carta de próprio punho dizendo que ganhavam um salário mínimo porque só vão ser atendidas as famílias que têm renda”, conta.
O advogado Vitor Nery disse que há “materialidade” nas denúncias e que os casos estão sendo averiguados pelo escritório. “A gente já sabe de alguns moradores [que tiveram o valor da renda alterado]. Inclusive, alguns que já aceitaram [as condições do CDHU], já mudaram e estão em uma situação ainda mais vulnerável e problemática”, afirma.
“O poder público não pode fazer esse tipo de mentira em um documento oficial”, diz o advogado, que defende que os moradores sem condições de financiar um imóvel sejam contemplados por habitação gratuita.
Questionada sobre o caso, a CDHU não respondeu se apura as denúncias citadas.
Em nota, a companhia disse que os parâmetros de enquadramento nas cartas de crédito são “a partir de um salário mínimo” e que “todas as exceções serão levadas em conta para melhor encaminhamento possível, com parcerias com outros entes para incremento de renda, ações de assistência social”.
“O Estado também convidou a União para, assim como fez a Prefeitura, participar com recursos de modo a possibilitar o atendimento pleno a todos os moradores da favela”, termina o texto.
A desocupação
As denúncias envolvendo o cadastro para a carta de crédito somam mais um capítulo ao complexo enredo da Favela do Moinho, que ficou conhecida como a última comunidade do centro de São Paulo, e que vive agora um processo intensificado de desocupação.
O terreno pertence à União, mas o governo estadual negocia a cessão do espaço para a construção de um parque e uma estação no local. Enquanto as negociações acontecem entre as duas esferas de poder, a CDHU tem ampliado as abordagens aos moradores para convencê-los a deixar a ocupação, instalada entre duas linhas de trem.
O governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) tem oferecido auxílios-moradia e opções de cartas de crédito com valor de até R$ 200 mil ou R$ 250 mil, dependendo da localização do imóvel.
A CDHU afirma que 86% da população aceitaram as propostas oferecidas pela companhia para deixar a favela, mas parte dos moradores diz que acatou as condições por medo de ficar sem casa e de ser alvo de violência durante a reintegração de posse.
Nas ruas da favela, o tema não sai das conversas entre vizinhos. “A gente tá fazendo um financiamento que é contra a nossa vontade, que não se encaixa no nosso orçamento. […] Se eu não conseguir pagar, eles vão tomar e eu vou voltar para onde?”, disse a comerciante Claudinei Leôncio, 34 anos.
Ela contou ao Metrópoles que financiará um imóvel do CDHU na Vila Nova Cachoeirinha, periferia da zona norte. As opções oferecidas no centro, segundo ela, não fazem sentido para a realidade das famílias da Favela.
“É tudo kitnet e um quarto os que têm disponível. Eu tenho três filhos, não vou pegar um apartamento de um quarto, sendo que eu vou ter que pagar o mesmo valor que um de dois [na periferia]”.
O pedreiro Rafael Freitas Porto, de 35 anos, é um dos que não aceitaram as condições da CDHU e ainda não sabe o que acontecerá com sua família. Há 13 anos, o baiano mora no Moinho, onde se instalou para conseguir acompanhar o tratamento do filho, que tem deficiência e é atendido na Santa Casa.
“Eu não vou sair daqui com meu filho especial, que faz tratamento na Santa Casa, para ir para Itaquera”.
Nesta terça-feira (22/4), alguns moradores desocuparam suas casas na favela. Josefa Flor da Silva, 74 anos, foi uma delas. Há 25 anos no Moinho, ela se mudou para a zona leste.
“Não vou ficar esperando três anos para construírem um apartamento [aqui no centro]. O que eu peguei já tá pronto”, afirmou, dizendo que também prefere ter uma vida “mais calma” em Itaquera.