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24 Apr 2025, Thu


Magritte – fragmento

O Ministério Público no Brasil e seu hibridismo entre o Jurídico e o Político a partir da Constituição de 1988

por Rogério Pacheco Alves

                  Pensar o lugar híbrido do Ministério Público entre o jurídico e o político é uma tarefa necessária e uma condição de possibilidade do regime democrático em nosso país.

                  O hibridismo entre o jurídico e o político, esse lugar fronteiriço, soa absolutamente natural à ciência política e à sociologia, mas soa como um lugar estranho aos juristas, que partem de uma noção muito difundida de que direito e política são campos absolutamente distintos e inconciliáveis. E há também um certo consenso de que o direito e a moral são instâncias de correção e purificação da política, ou seja, a percepção da moral como instância de legitimação do bom direito e do direito e da moral como filtros da política. Esse é um antigo debate que data, pelo menos, do século XVIII.

                  A princípio, o jurídico seria o campo da técnica, da neutralidade e do manejo argumentativo das normas; o campo esvaziado, portanto, de qualquer conteúdo político, o que seria afiançado pelo ingresso mediante concurso público de provas e títulos (art. 127, § 2º) e, no caso do Ministério Público, pela desvinculação do Executivo promovida pela Constituição Federal de 1988 (art. 129, IX). Técnica e neutralidade marcariam, então, o campo jurídico e lhe agregariam legitimidade (legítima, porque neutra, é a atuação do operador jurídico que se apoia apenas na técnica). 

                  Já a política seria o conjunto de procedimentos formais e informais que expressam relações de poder e que se destinam à resolução pacífica de conflitos quanto a bens públicos,[1] ou “a ideia que conduz à promoção da justiça, da liberdade, da segurança e do bem-estar da comunidade e em nome da qual se promove a atividade conducente à conquista e ao exercício do poder político”.[2]

                  Há linhas tênues entre o jurídico e o político e sua distinção é problemática, mas talvez seja possível sustentar ao menos uma diferenciação metodológica que se verifica nos campos da linguagem (o juridiquês como estratégia de construção do discurso competente),[3] da argumentação (fortemente principiológica no cenário neoconstitucionalista) e da participação social (a opacidade do sistema jurídico v. a maior porosidade do campo político). Pode-se pensar também numa distinção epistemológica: de um lado, o direito e seus universais abstratos, seu dever-ser e seu código binário (lícito – ilícito); de outro, a política e o seu relacional, seu acúmulo experiencial e os limites nem sempre muito claros entre o lícito e o ilícito.

                  Mas, não obstante a distinção entre o jurídico e o político, que acolhemos apenas provisória e precariamente, é possível verificar na atuação do Ministério Público brasileiro a existência de pontos de interseção entre o jurídico e o político, os quais estão ancorados no próprio texto constitucional, o que torna difícil a separação desses dois campos. Ou seja, há um campo fronteiriço de atuação do Ministério Público entre o jurídico e o político, um campo de interseção e de certa circularidade que resulta, fundamentalmente, de três razões.

                  Ao estabelecer as atribuições do Ministério Público, o seu papel, a Constituição prevê não só escopos propriamente jurídicos (a função de custos juris em processos individuais é um bom exemplo), mas também escopos sociais  (v.g., atuar como instância de pacificação de conflitos sociais) e políticos (velar pela estabilidade democrática e promover o exercício da cidadania e a participação política através da ampliação do debate público e da visibilização de direitos sociais e de populações vulneráveis etc).

                  Além disso, o próprio desenho institucional do Ministério Público sofre intervenções do Executivo e do Legislativo e também de entidades da sociedade civil, como se dá relativamente à composição do Conselho Nacional do Ministério Público.

                  A terceira razão reside no fato de que membros do Ministério Público gozam de independência funcional e de garantias constitucionais (inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de subsídios) típicas de agentes políticos. Inclusive, isso faz com que o Ministério Público seja considerado, por alguns, como um quarto poder.

                  Em suma, o Ministério Público é uma agência política em razão de sua autonomia frente aos Poderes, das prerrogativas que ostenta, da possibilidade de manejo de poderosos instrumentos extrajudiciais e judiciais de controle e da amplitude de suas atribuições constitucionais.[4]–[5]

                  Mas, mais especificamente, onde estão situadas tais interseções?

As interseções entre o jurídico e o político

                  No campo das interseções entre o jurídico e o político é possível enxergar no texto constitucional pelo menos duas “camadas”, que se tocam e se comunicam.

Primeira camada: interseções processuais (extrajudiciais e judiciais)

                  O art. 129, I da Carta Política confere ao Ministério Público brasileiro a titularidade privativa da ação penal. A gestão de populações através do manejo do direito penal é uma velha técnica de controle social, sobretudo das populações “marginais”. Ou seja, o controle social de “populações perigosas”, geralmente jovens negros da periferia, faz do Ministério Público um ator central da política criminal concebida como resposta à demanda por ordem.[6]

                  As atribuições originárias dos Procuradores-Gerais de Justiça no campo penal também são extremamente sensíveis, pois podem desestabilizar coalizações políticas e, no limite, a própria democracia, seja por ação ou por omissão.

                  Além disso, no modelo atual, o Ministério Público possui um grande poder de agenda na escolha de medidas mais efetivas de atuação e de seleção de casos de maior relevância social e uma grande discricionariedade negocial no processo penal (transações penais, acordos de não persecução e colaborações premiadas), sem que haja programas de integridade e códigos de ética suficientemente claros a respeito dos parâmetros dos acordos e de seus limites, o que seria fundamental num momento em que o direito penal se contratualiza e permite generosos poderes discricionários ao Ministério Público.

                  Ainda na esfera penal, um outro campo politicamente sensível é o controle externo da atividade policial (art. 129,  VII), que por ter sido exercido de forma tímida pelo Ministério Público nas últimas décadas levou à captura do debate pelo Supremo Tribunal Federal.[7]

                  A proteção dos direitos difusos e coletivos e a atuação no campo das políticas públicas (art. 129, III, da Constituição), especialmente relativamente aos direitos sociais, através de ferramentas previstas na Constituição (o inquérito civil e a ação civil pública, principalmente) e na legislação infraconstitucional (o termo de ajustamento de conduta, sobretudo), também compõem o que denominamos aqui de interseções processuais. As ações coletivas nas áreas da saúde (acesso a medicamentos etc) e da educação (acesso à creches, financiamento da educação, educação especial etc) são bons exemplos de intervenções importantes do Ministério Público no campo dos direitos sociais, com todas as dificuldades e problemas que daí decorrem.

                  A camada de interseções processuais é também composta pelo papel constitucional de defesa do regime democrático (art. 127 da Constituição), uma atuação que se volta à garantia de igualdade na competição política, ao combate à desinformação, ao combate ao controle que as milícias exercem sobre determinados territórios etc, e na própria judicializacão de temas ordinariamente afetos aos poderes propriamente políticos, como a disputa em torno do sentido das regras eleitorais e das práticas do jogo eleitoral.

Segunda camada: desenho institucional

                  Há, nisso que chamo aqui de interseções entre o jurídico e o político, também uma segunda camada relativa ao desenho institucional do Ministério Público, especificamente a seus órgãos de controle e de Administração superior.

                  A primeira interseção na esfera institucional diz com a composição do Conselho Nacional do Ministério Público, órgão de controle (art. 130-A da Carta) cujos integrantes são nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, recaindo a nomeação sobre membros indicados pelo próprio Ministério Público, mas também pelo Judiciário, pela Ordem dos Advogados do Brasil, além de dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada indicados pelo parlamento. Não é preciso mencionar que o processo de escolha dos integrantes do Conselho Nacional do Ministério Público tem natureza eminentemente política, mesmo relativamente aos membros indicados pelo próprio Ministério Público, geralmente oriundos das associações classistas ou de integrantes da Administração superior do parquet (ex-Procuradores-Gerais, por exemplo).

                  Nessa segunda camada também chama a atenção a forma como a Carta Política trata do processo de escolha dos Procuradores-Gerais de Justiça dos Ministérios Públicos estaduais pelos Governadores, após a formação de listas tríplices pela classe (art. 128, § 3º). A formação da lista tríplice se dá após processo eleitoral interno em que os candidatos apresentam suas propostas ao eleitorado, formado por promotores de justiça e procuradores de justiça em atividade, que vão desde melhores condições de trabalho e exercício das atribuições constitucionais, até questões tipicamente vencimentais e classistas.[8]–[9] Formada a lista tríplice, a segunda e decisiva etapa se dá nas coxias da antessala do Governador, que pode escolher livremente qualquer dos componentes da lista, ou seja, não necessariamente o candidato mais votado pela classe, num processo  claramente político que não conta com qualquer mecanismo de controle social e transparência.
                  No âmbito do Ministério Público da União a discricionariedade de escolha é ampla, dando-se a nomeação do Procurador-Geral da República, livremente, pelo Presidente da República, após sabatina do Senado (art. 128, § 1º, da Constituição Federal). Nesse caso, não há sequer lista tríplice, muito embora a associação de classe (ANPR), historicamente, realize consulta prévia aos membros do parquet da União e encaminhe a lista tríplice não vinculante ao Presidente da República.[10]

                  Se no processo de nomeação o protagonismo é do Executivo, já a possibilidade de destituição dos Procuradores Gerais de Justiça e do Procurador Geral da República é outorgada aos parlamentos dos Estados e da União (art. 128, §§ 2º e 4º, da Constituição Federal).

                   No campo das interseções entre o jurídico e o político poderiam ser também mencionadas a legitimidade do Ministério Público para a propositura de Ações de Inconstitucionalidade (art. 129, IV), que provocam a jurisdição constitucional e política dos Tribunais, sobretudo do Supremno Tribunal Federal; e a missão de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição (art. 129, II).

                  Tais interseções ou circularidades podem ser construtivas e úteis aos direitos fundamentais e à democracia ou destrutivas,  com se viu em passado recente, e no Brasil poucas instituições habitam e operam nessa zona fronteiriça entre o jurídico e o político: tal não se dá com a advocacia pública, tampouco com a Defensoria Pública; nem mesmo com o Judiciário, salvo relativamente ao seu órgão de cúpula, o Supremo Tribunal Federal, que exerce jurisdição constitucional e, portanto, política.

              Em alguns pontos de interseção há técnica jurídica e questões processuais em jogo, sem dúvida, mas a dimensão política é altamente porosa à ideologia, o que impacta a dimensão propriamente jurídica.[11] Ou seja, a dimensão política de atuação do Ministério Público é a porta de entrada da ideologia, o que não é aqui afirmado necessariamente num sentido negativo – salvo relativamente a ideologias antidemocráticas – até porque não há neutralidade na atuação dos operadores do direito, porque não existe neutralidade ideológica, “salvo na forma de apatia, irracionalismo ou decadência do pensamento, que não são virtudes dignas de ninguém”.[12]

                  Além disso, nas interseções muitas vezes não há clareza sobre as fronteiras: onde termina o jurídico e onde começa o político (e vice-versa)? Isso pode se dar, por exemplo, nas negociações realizadas pelo Ministério Público no campo das políticas públicas (termos de ajustamento de conduta), o que envolve discussões de legalidade, mas também discussões sobre prazos, condições etc. Tais fronteiras vão se tornando cada vez mais borradas diante da complexidade de demandas por novos direitos e de suas resistências conservadoras.

                  Mas há também, no próprio texto constitucional, ao menos duas importantes interdições entre o jurídico e o político relativamente ao Ministério Público.

As interdições entre o jurídico e o político

           O art. 128, § 5º, II, “d” e “e” da Constituição vedam o exercício de outras funções públicas, salvo uma função de magistério,[13] e a filiação político-partidária.

                  Embora as interdições constitucionais impostas ao Ministério Público sejam vistas por alguns como negativas – e o argumento geralmente é o de que tais interdições impedem a representatividade do pensamento do Ministério Público no campo político, diferentemente do que se verifica em outras carreiras jurídicas – penso que elas estabelecem um importante equilíbrio entre o jurídico e o político, um antídoto aos riscos inerentes a um desenho híbrido feito pela própria Constituição.

                  Se considerarmos que o componente político está no DNA do Ministério Público brasileiro, as interdições constitucionais mostram-se necessárias, na medida em que o perfil político da instituição é potencialmente capaz de empurrar os seus membros para a vida partidária ou para o exercício de cargos de natureza política na Administração Pública ou no parlamento, o que colidiria com o seu papel constitucional de defesa da igualdade da disputa eleitoral e de controle dos atos do Estado. Assim, as interdições são imperativos éticos que visam a garantir a impessoalidade da atuação dos membros do Ministério Público, muito embora não tenham se mostrado capazes de impedir algumas atuações claramente orientadas por interesses político-partidários, como se viu na Operação Lava Jato de Curitiba e sua exótica Fundação.

Os tensionamentos advindos do híbrido jurídico-político          

                  Já se vê então que o campo minado entre o jurídico e o político gera diversos tensionamentos e questionamerntos com as quais o Ministério Público tem convivido desde a instalação desse novo perfil constitucional. Vejamos alguns deles, ao menos os mais evidentes.

                  Já que a arte da política é a de mobilizar esforços em torno de valores e forjar o consenso, construindo coalizações entre interesses,[14] como lidar com os pontos de interseção entre o jurídico e o político a partir das lentes da pura “técnica”, da neutralidade e de valores morais privados sem conhecer minimamente a ética política e a sua dinâmica relacional? Além disso, como lidar com tais pontos de interseção sem uma formação que vá além do jurídico? Este último ponto é particularmente importante, uma vez que a formação de promotores de justiça e procuradores da república costuma ater-se à dogmática jurídica, havendo poucos incentivos ao aperfeiçoamento funcional numa dimensão interdisciplinar.

                  Um outro tensionamento consiste em estabelecer parâmetros éticos  para lidar com a possibilidade constitucional de intervenções políticas de outros poderes, especialmente quando tais intervenções vão de encontro às decisões da classe (por exemplo, quando o processo de nomeação do Procurador-Geral recai sobre o candidato que não seja o mais votado da lista tríplice).

                  Temos aqui um campo especialmente delicado e as discussões giram em torno da legitimidade constitucional e democrática da escolha dos Chefes dos Ministérios Públicos pelo Executivo, modelo previsto constitucionalmente, e se tal modelo não careceria de aperfeiçoamentos, mas também sobre a legitimidade interna para a gestão de uma instituição cujos membros gozam de independência funcional, a dificultar a construção de agendas de atuação e de políticas institucionais minimamente coesas por uma Chefia institucional não respaldada internamente por seus pares. Naturalmente, mesmo quando a nomeação recai sobre o mais votado da lista tríplice não há garantias de uma atuação coesa da instituição, dada a independência funcional de seus integrantes, mas a nomeação de quem não encabece a lista tríplice, não obstante a legitmidade democrático do Chefe do Executivo, pode agravar a dispersão do Ministério Público no cumprimento de seus papéis constitucionais.

                  Outro ponto de tensão se refere a como atuar na defesa dos direitos humanos e das populações vulneráveis e no campo das políticas públicas contra os Poderes Executivo e Legislativo, ou seja, contra os demais atores do campo político (por exemplo, no controle externo da atividade policial). Quais são os limites reais da independência funcional em situações de tensionamento das relações com o poder político? Em que medida uma Promotoria isolada e sem o respaldo de sua instituição é de fato capaz de exercer o controle do Estado à luz dos direitos humanos e dos direitos fundamentais? 

                  Indo além, diante da envergadura das tarefas constitucionais conferidas ao Ministério Público, é necessário resistir ao voluntarismo político,[15] que decorre de uma avaliação pessimista da capacidade da sociedade civil de se defender de forma autônoma,  de uma avaliação pessimista dos poderes político-representativos e de uma idealização do papel do Ministério Público na representação da sociedade (a suprir tal deficiência, radicada na própria fragilidade da experiência democrática brasileira, o Ministério Público atuaria como uma ponte entre a sociedade civil e o Estado, vocalizando os interesses público e social, tal qual um poder moderador). O voluntarismo político incorpora a ideia de que o Ministério Público deve atuar como um agente privilegiado de “transformação da realidade social”, inclusive articulando entidades e órgãos e executando projetos sociais nas mais variadas áreas.

                  Há aqui um paradoxo: o voluntarismo do Ministério Público reforça o seu papel político, muito embora o voluntarismo se edifique a partir de uma retórica “apolítica” de neutralidade (a atuação do Ministério Público seria impessoal) e de tecnicismo (as leis como ferramentas genéricas e abstratas do direito e o Ministério Público como corporação técnica). O problema do voluntarismo é que, levado a extremos, pode gerar graves danos à democracia e às liberdades públicas, além de criar falsas expectativas sobre as reais possibilidades de responsividade do Ministério Público. Pode-se afirmar, inclusive, que do voluntarismo político de parte do Ministério Público resultaram as recentes tentativas de limitação de suas prerrogativas e ferramentas de atuação, como uma resposta da política ao que considera abusos e ilegalidades praticados em nome do combate à criminalidade e à corrupção ou mesmo em nome da defesa dos direitos transindividuais.

                  Ainda na linha dos tensionamentos, é necessário construir um diálogo com a sociedade civil e os movimentos sociais e lidar melhor com as exigências de accountability.

                  Percebe-se uma grande resistência do Ministério Público brasileiro à prestação de contas, o que é motivado por duas razões principais: a primeira delas é a independência funcional, pois agências independentes encontram poucos estímulos à prestação de contas; a segunda é a própria garantia da vitaliciedade dos membros do Ministério Público, uma garantia fundamental, mas que se encontra no extremo oposto da alternância própria da política, que é um estímulo importante à accountability.

                  Mas não se trata de um problema insolúvel e já há alguns caminhos abertos, tal como a elaboração de planos institucionais de atuação coordenada, os quais conjugam independência funcional e unidade e que devem ser permeáveis à sociedade civil e aos movimentos sociais, por intermédio de audiências e reuniões públicas amplamente divulgadas e de participação incentivada.

                  Enfim, dadas as suas amplas e complexas atribuições constitucionais, não há nada de verdadeiramente surpreendente em considerar o Ministério Público brasileiro um híbrido entre o jurídico e o político. Uma instituição política que, contudo, não dever ser partidária, o que constitui, ao mesmo tempo, um enorme desafio e condição de possibilidade da democracia. Ou seja, a zona de confluência entre o jurídico e o jurídico e os naturais  tensionamentos que daí surgem estão na pauta permanente da instituição desde o seu novo perfil dado pela Constituição de 1988, em seus esforços de aperfeiçoamento e na resistência ao cumprimento de suas tarefas constitucionais, inclusive pelo campo político.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP

Rogério Pacheco Alves- Doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional e Professor Ajunto da Universidade Federal Fluminense. Promotor de Justiça do MPRJ e integrante do Coletivo Transforma MP.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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Referências

ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público e política no Brasil. São Paulo: EDUC, Editora Sumaré; Fapesp, 2002.

BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

CHAUI, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2006.

KECHER, Fábio. Autonomia e discricionariedade do Ministério Público no Brasil. Dados – Revista de Ciências Sociais, v. 50, n. 2, 2007, p. 259-279.

MONTEIRO, Manuel. Dicionário de ciência política e relações internacionais. Fernando de Sousa et alii (coord.). Coimbra; Almedina, 2022, p. 493.

PANEBIANCO, Angelo. Evitar a política? Trad. Cláudio Gonçalves Couto. Novos Estudos, Cebrap, n. 45, p. 51-57, jul. 1996.

SADEK, Maria Tereza. A construção de um novo ministério público resolutivo. De Jure – Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 12, jan.-jun. 2009.

VIEGAS, Rafael Rodrigues. Governabilidade e lógica de designações no Ministério Público Federal: os “procuradores políticos profissionais”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 33. e234299, 2020, pp 1-51.

SCHMITTER, Philippe C. Reflexões sobre o conceito de política. Revista de Direito Público e Ciência Política, Rio de Janeiro, vol. VIII, n. 2, maio/ag. 1965.

ZAFFARONI. Poder judiciário: crises, acertos e desacertos. São Paulo: RT, 1995, p. 92.


[1]Schmitter, Philippe C. Reflexões sobre o conceito de política. Revista de Direito Público e Ciência Política, Rio de Janeiro, vol. VIII, n. 2, maio/ag. 1965.

[2] Monteiro, Manuel. Dicionário de ciência política e relações internacionais. Fernando de Sousa et alii (coord.). Coimbra; Almedina, 2022, p. 493.

[3] O competente “é aquele que possui um saber determinado, institucionalmente reconhecido, graças ao qual pode não só falar e agir pelos outros, mas ainda, e sobretudo, excluir outros do direito de ser sujeitos de seus discursos e de suas ações (Chaui, 2016, pp. 53-58 e 113-119).

[4]  Kecher, Fábio. Autonomia e discricionariedade do Ministério Público no Brasil. Dados –Revista de Ciências Sociais, v. 50, n. 2, 2007, p. 259-279.

[5] Sadek, Maria Tereza. A construção de um novo ministério público resolutivo. De Jure – Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 12, jan.-jun. 2009.

[6] Batista, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

[7] ADPF n. 635.

[8] Viegas (2020) demonstra que no âmbito do Ministério Público Federal os Procuradores-Gerais da República são oriundos de altos postos para os quais foram designados por seus antecessores ou de posições ocupadas na Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), uma associação privada.

[9] Os integrantes dos Conselhos Superiores dos Ministérios Públicos, dos Órgãos Especiais dos Colégios de Procuradores de Justiçae os Corregedores-Gerais também são eleitos pela classe (no primeiro caso, por promotores de justiça e procuradores de justiça; no caso dos Órgãos Especiais e do Corregedor, apenas por procuradores de justiça).

[10] Nos dois primeiros governos de Lula e no governo de Dilma Roussef as nomeações recaíram sobre o primeiro colocado das listas tríplices da ANPR. Já nos governos Temer e Bolsonaro as nomeações não seguiram as indicações classistas. O governo “Lula 3” também se afastou da nomeação do mais votado da lista tríplice encaminhada pela ANPR. 

[11] Adotamos aqui a expressão ideologia não no sentido de uma consciência ilusória ou fictícia do real, mas sim no sentido de um conjunto de ideias, valores e concepções de mundo de uma pessoa, de um grupo, de um movimento político ou mesmo de uma instituição, aptos a orientarem comportamentos concretos, coletivos ou individuais.

[12] Zaffaroni. Poder judiciário: crises, acertos e desacertos. São Paulo: RT, 1995, p. 92.

[13] Por exemplo, a vedação de que membros do Ministério Público exerçam funções no alto escalão do Poder Executivo (o cargo de Secretário de Segurança Pública ou de Secretário de Saúde, por exemplo). O CNMP contornou a Constituição ao entender que não há vedação para que o membro do Ministério Público exerça outra função pública, desde que afastado de suas atribuições na instituição de origem, “pois o que a Constituição Federal proíbe é apenas o exercício concomitante do cargo no Ministério Público com outro cargo público”, vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas, o que deve ser analisado caso a caso (Processo nº 0.00.000.000295/2011-85, Relatora Conselheira Claudia Chagas, j. em 17.05.2011). Contudo, o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a nomeação de membros do Ministério Público  para o exercício de cargos que não tenham relação com as atividades da instituição em decisão proferida por ocasião do julgamento da ADPF n. 388, Relator Min. Gilmar Mendes, ajuizada pelo Partido Popular Socialista para questionar a nomeação do Procurador de Justiça do Estado da Bahia Wellington César Lima e Silva para o cargo de Ministro da Justiça.

[14] Panebianco, Angelo. Evitar a política? Trad. Cláudio Gonçalves Couto. Novos Estudos, Cebrap, n. 45, p. 51-57, jul. 1996.

[15] Arantes, Rogério Bastos. Ministério Público e política no Brasil. São Paulo: EDUC, Editora Sumaré; Fapesp, 2002.

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Magritte – fragmento

O Ministério Público no Brasil e seu hibridismo entre o Jurídico e o Político a partir da Constituição de 1988

por Rogério Pacheco Alves

                  Pensar o lugar híbrido do Ministério Público entre o jurídico e o político é uma tarefa necessária e uma condição de possibilidade do regime democrático em nosso país.

                  O hibridismo entre o jurídico e o político, esse lugar fronteiriço, soa absolutamente natural à ciência política e à sociologia, mas soa como um lugar estranho aos juristas, que partem de uma noção muito difundida de que direito e política são campos absolutamente distintos e inconciliáveis. E há também um certo consenso de que o direito e a moral são instâncias de correção e purificação da política, ou seja, a percepção da moral como instância de legitimação do bom direito e do direito e da moral como filtros da política. Esse é um antigo debate que data, pelo menos, do século XVIII.

                  A princípio, o jurídico seria o campo da técnica, da neutralidade e do manejo argumentativo das normas; o campo esvaziado, portanto, de qualquer conteúdo político, o que seria afiançado pelo ingresso mediante concurso público de provas e títulos (art. 127, § 2º) e, no caso do Ministério Público, pela desvinculação do Executivo promovida pela Constituição Federal de 1988 (art. 129, IX). Técnica e neutralidade marcariam, então, o campo jurídico e lhe agregariam legitimidade (legítima, porque neutra, é a atuação do operador jurídico que se apoia apenas na técnica). 

                  Já a política seria o conjunto de procedimentos formais e informais que expressam relações de poder e que se destinam à resolução pacífica de conflitos quanto a bens públicos,[1] ou “a ideia que conduz à promoção da justiça, da liberdade, da segurança e do bem-estar da comunidade e em nome da qual se promove a atividade conducente à conquista e ao exercício do poder político”.[2]

                  Há linhas tênues entre o jurídico e o político e sua distinção é problemática, mas talvez seja possível sustentar ao menos uma diferenciação metodológica que se verifica nos campos da linguagem (o juridiquês como estratégia de construção do discurso competente),[3] da argumentação (fortemente principiológica no cenário neoconstitucionalista) e da participação social (a opacidade do sistema jurídico v. a maior porosidade do campo político). Pode-se pensar também numa distinção epistemológica: de um lado, o direito e seus universais abstratos, seu dever-ser e seu código binário (lícito – ilícito); de outro, a política e o seu relacional, seu acúmulo experiencial e os limites nem sempre muito claros entre o lícito e o ilícito.

                  Mas, não obstante a distinção entre o jurídico e o político, que acolhemos apenas provisória e precariamente, é possível verificar na atuação do Ministério Público brasileiro a existência de pontos de interseção entre o jurídico e o político, os quais estão ancorados no próprio texto constitucional, o que torna difícil a separação desses dois campos. Ou seja, há um campo fronteiriço de atuação do Ministério Público entre o jurídico e o político, um campo de interseção e de certa circularidade que resulta, fundamentalmente, de três razões.

                  Ao estabelecer as atribuições do Ministério Público, o seu papel, a Constituição prevê não só escopos propriamente jurídicos (a função de custos juris em processos individuais é um bom exemplo), mas também escopos sociais  (v.g., atuar como instância de pacificação de conflitos sociais) e políticos (velar pela estabilidade democrática e promover o exercício da cidadania e a participação política através da ampliação do debate público e da visibilização de direitos sociais e de populações vulneráveis etc).

                  Além disso, o próprio desenho institucional do Ministério Público sofre intervenções do Executivo e do Legislativo e também de entidades da sociedade civil, como se dá relativamente à composição do Conselho Nacional do Ministério Público.

                  A terceira razão reside no fato de que membros do Ministério Público gozam de independência funcional e de garantias constitucionais (inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de subsídios) típicas de agentes políticos. Inclusive, isso faz com que o Ministério Público seja considerado, por alguns, como um quarto poder.

                  Em suma, o Ministério Público é uma agência política em razão de sua autonomia frente aos Poderes, das prerrogativas que ostenta, da possibilidade de manejo de poderosos instrumentos extrajudiciais e judiciais de controle e da amplitude de suas atribuições constitucionais.[4]–[5]

                  Mas, mais especificamente, onde estão situadas tais interseções?

As interseções entre o jurídico e o político

                  No campo das interseções entre o jurídico e o político é possível enxergar no texto constitucional pelo menos duas “camadas”, que se tocam e se comunicam.

Primeira camada: interseções processuais (extrajudiciais e judiciais)

                  O art. 129, I da Carta Política confere ao Ministério Público brasileiro a titularidade privativa da ação penal. A gestão de populações através do manejo do direito penal é uma velha técnica de controle social, sobretudo das populações “marginais”. Ou seja, o controle social de “populações perigosas”, geralmente jovens negros da periferia, faz do Ministério Público um ator central da política criminal concebida como resposta à demanda por ordem.[6]

                  As atribuições originárias dos Procuradores-Gerais de Justiça no campo penal também são extremamente sensíveis, pois podem desestabilizar coalizações políticas e, no limite, a própria democracia, seja por ação ou por omissão.

                  Além disso, no modelo atual, o Ministério Público possui um grande poder de agenda na escolha de medidas mais efetivas de atuação e de seleção de casos de maior relevância social e uma grande discricionariedade negocial no processo penal (transações penais, acordos de não persecução e colaborações premiadas), sem que haja programas de integridade e códigos de ética suficientemente claros a respeito dos parâmetros dos acordos e de seus limites, o que seria fundamental num momento em que o direito penal se contratualiza e permite generosos poderes discricionários ao Ministério Público.

                  Ainda na esfera penal, um outro campo politicamente sensível é o controle externo da atividade policial (art. 129,  VII), que por ter sido exercido de forma tímida pelo Ministério Público nas últimas décadas levou à captura do debate pelo Supremo Tribunal Federal.[7]

                  A proteção dos direitos difusos e coletivos e a atuação no campo das políticas públicas (art. 129, III, da Constituição), especialmente relativamente aos direitos sociais, através de ferramentas previstas na Constituição (o inquérito civil e a ação civil pública, principalmente) e na legislação infraconstitucional (o termo de ajustamento de conduta, sobretudo), também compõem o que denominamos aqui de interseções processuais. As ações coletivas nas áreas da saúde (acesso a medicamentos etc) e da educação (acesso à creches, financiamento da educação, educação especial etc) são bons exemplos de intervenções importantes do Ministério Público no campo dos direitos sociais, com todas as dificuldades e problemas que daí decorrem.

                  A camada de interseções processuais é também composta pelo papel constitucional de defesa do regime democrático (art. 127 da Constituição), uma atuação que se volta à garantia de igualdade na competição política, ao combate à desinformação, ao combate ao controle que as milícias exercem sobre determinados territórios etc, e na própria judicializacão de temas ordinariamente afetos aos poderes propriamente políticos, como a disputa em torno do sentido das regras eleitorais e das práticas do jogo eleitoral.

Segunda camada: desenho institucional

                  Há, nisso que chamo aqui de interseções entre o jurídico e o político, também uma segunda camada relativa ao desenho institucional do Ministério Público, especificamente a seus órgãos de controle e de Administração superior.

                  A primeira interseção na esfera institucional diz com a composição do Conselho Nacional do Ministério Público, órgão de controle (art. 130-A da Carta) cujos integrantes são nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, recaindo a nomeação sobre membros indicados pelo próprio Ministério Público, mas também pelo Judiciário, pela Ordem dos Advogados do Brasil, além de dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada indicados pelo parlamento. Não é preciso mencionar que o processo de escolha dos integrantes do Conselho Nacional do Ministério Público tem natureza eminentemente política, mesmo relativamente aos membros indicados pelo próprio Ministério Público, geralmente oriundos das associações classistas ou de integrantes da Administração superior do parquet (ex-Procuradores-Gerais, por exemplo).

                  Nessa segunda camada também chama a atenção a forma como a Carta Política trata do processo de escolha dos Procuradores-Gerais de Justiça dos Ministérios Públicos estaduais pelos Governadores, após a formação de listas tríplices pela classe (art. 128, § 3º). A formação da lista tríplice se dá após processo eleitoral interno em que os candidatos apresentam suas propostas ao eleitorado, formado por promotores de justiça e procuradores de justiça em atividade, que vão desde melhores condições de trabalho e exercício das atribuições constitucionais, até questões tipicamente vencimentais e classistas.[8]–[9] Formada a lista tríplice, a segunda e decisiva etapa se dá nas coxias da antessala do Governador, que pode escolher livremente qualquer dos componentes da lista, ou seja, não necessariamente o candidato mais votado pela classe, num processo  claramente político que não conta com qualquer mecanismo de controle social e transparência.
                  No âmbito do Ministério Público da União a discricionariedade de escolha é ampla, dando-se a nomeação do Procurador-Geral da República, livremente, pelo Presidente da República, após sabatina do Senado (art. 128, § 1º, da Constituição Federal). Nesse caso, não há sequer lista tríplice, muito embora a associação de classe (ANPR), historicamente, realize consulta prévia aos membros do parquet da União e encaminhe a lista tríplice não vinculante ao Presidente da República.[10]

                  Se no processo de nomeação o protagonismo é do Executivo, já a possibilidade de destituição dos Procuradores Gerais de Justiça e do Procurador Geral da República é outorgada aos parlamentos dos Estados e da União (art. 128, §§ 2º e 4º, da Constituição Federal).

                   No campo das interseções entre o jurídico e o político poderiam ser também mencionadas a legitimidade do Ministério Público para a propositura de Ações de Inconstitucionalidade (art. 129, IV), que provocam a jurisdição constitucional e política dos Tribunais, sobretudo do Supremno Tribunal Federal; e a missão de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição (art. 129, II).

                  Tais interseções ou circularidades podem ser construtivas e úteis aos direitos fundamentais e à democracia ou destrutivas,  com se viu em passado recente, e no Brasil poucas instituições habitam e operam nessa zona fronteiriça entre o jurídico e o político: tal não se dá com a advocacia pública, tampouco com a Defensoria Pública; nem mesmo com o Judiciário, salvo relativamente ao seu órgão de cúpula, o Supremo Tribunal Federal, que exerce jurisdição constitucional e, portanto, política.

              Em alguns pontos de interseção há técnica jurídica e questões processuais em jogo, sem dúvida, mas a dimensão política é altamente porosa à ideologia, o que impacta a dimensão propriamente jurídica.[11] Ou seja, a dimensão política de atuação do Ministério Público é a porta de entrada da ideologia, o que não é aqui afirmado necessariamente num sentido negativo – salvo relativamente a ideologias antidemocráticas – até porque não há neutralidade na atuação dos operadores do direito, porque não existe neutralidade ideológica, “salvo na forma de apatia, irracionalismo ou decadência do pensamento, que não são virtudes dignas de ninguém”.[12]

                  Além disso, nas interseções muitas vezes não há clareza sobre as fronteiras: onde termina o jurídico e onde começa o político (e vice-versa)? Isso pode se dar, por exemplo, nas negociações realizadas pelo Ministério Público no campo das políticas públicas (termos de ajustamento de conduta), o que envolve discussões de legalidade, mas também discussões sobre prazos, condições etc. Tais fronteiras vão se tornando cada vez mais borradas diante da complexidade de demandas por novos direitos e de suas resistências conservadoras.

                  Mas há também, no próprio texto constitucional, ao menos duas importantes interdições entre o jurídico e o político relativamente ao Ministério Público.

As interdições entre o jurídico e o político

           O art. 128, § 5º, II, “d” e “e” da Constituição vedam o exercício de outras funções públicas, salvo uma função de magistério,[13] e a filiação político-partidária.

                  Embora as interdições constitucionais impostas ao Ministério Público sejam vistas por alguns como negativas – e o argumento geralmente é o de que tais interdições impedem a representatividade do pensamento do Ministério Público no campo político, diferentemente do que se verifica em outras carreiras jurídicas – penso que elas estabelecem um importante equilíbrio entre o jurídico e o político, um antídoto aos riscos inerentes a um desenho híbrido feito pela própria Constituição.

                  Se considerarmos que o componente político está no DNA do Ministério Público brasileiro, as interdições constitucionais mostram-se necessárias, na medida em que o perfil político da instituição é potencialmente capaz de empurrar os seus membros para a vida partidária ou para o exercício de cargos de natureza política na Administração Pública ou no parlamento, o que colidiria com o seu papel constitucional de defesa da igualdade da disputa eleitoral e de controle dos atos do Estado. Assim, as interdições são imperativos éticos que visam a garantir a impessoalidade da atuação dos membros do Ministério Público, muito embora não tenham se mostrado capazes de impedir algumas atuações claramente orientadas por interesses político-partidários, como se viu na Operação Lava Jato de Curitiba e sua exótica Fundação.

Os tensionamentos advindos do híbrido jurídico-político          

                  Já se vê então que o campo minado entre o jurídico e o político gera diversos tensionamentos e questionamerntos com as quais o Ministério Público tem convivido desde a instalação desse novo perfil constitucional. Vejamos alguns deles, ao menos os mais evidentes.

                  Já que a arte da política é a de mobilizar esforços em torno de valores e forjar o consenso, construindo coalizações entre interesses,[14] como lidar com os pontos de interseção entre o jurídico e o político a partir das lentes da pura “técnica”, da neutralidade e de valores morais privados sem conhecer minimamente a ética política e a sua dinâmica relacional? Além disso, como lidar com tais pontos de interseção sem uma formação que vá além do jurídico? Este último ponto é particularmente importante, uma vez que a formação de promotores de justiça e procuradores da república costuma ater-se à dogmática jurídica, havendo poucos incentivos ao aperfeiçoamento funcional numa dimensão interdisciplinar.

                  Um outro tensionamento consiste em estabelecer parâmetros éticos  para lidar com a possibilidade constitucional de intervenções políticas de outros poderes, especialmente quando tais intervenções vão de encontro às decisões da classe (por exemplo, quando o processo de nomeação do Procurador-Geral recai sobre o candidato que não seja o mais votado da lista tríplice).

                  Temos aqui um campo especialmente delicado e as discussões giram em torno da legitimidade constitucional e democrática da escolha dos Chefes dos Ministérios Públicos pelo Executivo, modelo previsto constitucionalmente, e se tal modelo não careceria de aperfeiçoamentos, mas também sobre a legitimidade interna para a gestão de uma instituição cujos membros gozam de independência funcional, a dificultar a construção de agendas de atuação e de políticas institucionais minimamente coesas por uma Chefia institucional não respaldada internamente por seus pares. Naturalmente, mesmo quando a nomeação recai sobre o mais votado da lista tríplice não há garantias de uma atuação coesa da instituição, dada a independência funcional de seus integrantes, mas a nomeação de quem não encabece a lista tríplice, não obstante a legitmidade democrático do Chefe do Executivo, pode agravar a dispersão do Ministério Público no cumprimento de seus papéis constitucionais.

                  Outro ponto de tensão se refere a como atuar na defesa dos direitos humanos e das populações vulneráveis e no campo das políticas públicas contra os Poderes Executivo e Legislativo, ou seja, contra os demais atores do campo político (por exemplo, no controle externo da atividade policial). Quais são os limites reais da independência funcional em situações de tensionamento das relações com o poder político? Em que medida uma Promotoria isolada e sem o respaldo de sua instituição é de fato capaz de exercer o controle do Estado à luz dos direitos humanos e dos direitos fundamentais? 

                  Indo além, diante da envergadura das tarefas constitucionais conferidas ao Ministério Público, é necessário resistir ao voluntarismo político,[15] que decorre de uma avaliação pessimista da capacidade da sociedade civil de se defender de forma autônoma,  de uma avaliação pessimista dos poderes político-representativos e de uma idealização do papel do Ministério Público na representação da sociedade (a suprir tal deficiência, radicada na própria fragilidade da experiência democrática brasileira, o Ministério Público atuaria como uma ponte entre a sociedade civil e o Estado, vocalizando os interesses público e social, tal qual um poder moderador). O voluntarismo político incorpora a ideia de que o Ministério Público deve atuar como um agente privilegiado de “transformação da realidade social”, inclusive articulando entidades e órgãos e executando projetos sociais nas mais variadas áreas.

                  Há aqui um paradoxo: o voluntarismo do Ministério Público reforça o seu papel político, muito embora o voluntarismo se edifique a partir de uma retórica “apolítica” de neutralidade (a atuação do Ministério Público seria impessoal) e de tecnicismo (as leis como ferramentas genéricas e abstratas do direito e o Ministério Público como corporação técnica). O problema do voluntarismo é que, levado a extremos, pode gerar graves danos à democracia e às liberdades públicas, além de criar falsas expectativas sobre as reais possibilidades de responsividade do Ministério Público. Pode-se afirmar, inclusive, que do voluntarismo político de parte do Ministério Público resultaram as recentes tentativas de limitação de suas prerrogativas e ferramentas de atuação, como uma resposta da política ao que considera abusos e ilegalidades praticados em nome do combate à criminalidade e à corrupção ou mesmo em nome da defesa dos direitos transindividuais.

                  Ainda na linha dos tensionamentos, é necessário construir um diálogo com a sociedade civil e os movimentos sociais e lidar melhor com as exigências de accountability.

                  Percebe-se uma grande resistência do Ministério Público brasileiro à prestação de contas, o que é motivado por duas razões principais: a primeira delas é a independência funcional, pois agências independentes encontram poucos estímulos à prestação de contas; a segunda é a própria garantia da vitaliciedade dos membros do Ministério Público, uma garantia fundamental, mas que se encontra no extremo oposto da alternância própria da política, que é um estímulo importante à accountability.

                  Mas não se trata de um problema insolúvel e já há alguns caminhos abertos, tal como a elaboração de planos institucionais de atuação coordenada, os quais conjugam independência funcional e unidade e que devem ser permeáveis à sociedade civil e aos movimentos sociais, por intermédio de audiências e reuniões públicas amplamente divulgadas e de participação incentivada.

                  Enfim, dadas as suas amplas e complexas atribuições constitucionais, não há nada de verdadeiramente surpreendente em considerar o Ministério Público brasileiro um híbrido entre o jurídico e o político. Uma instituição política que, contudo, não dever ser partidária, o que constitui, ao mesmo tempo, um enorme desafio e condição de possibilidade da democracia. Ou seja, a zona de confluência entre o jurídico e o jurídico e os naturais  tensionamentos que daí surgem estão na pauta permanente da instituição desde o seu novo perfil dado pela Constituição de 1988, em seus esforços de aperfeiçoamento e na resistência ao cumprimento de suas tarefas constitucionais, inclusive pelo campo político.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP

Rogério Pacheco Alves- Doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional e Professor Ajunto da Universidade Federal Fluminense. Promotor de Justiça do MPRJ e integrante do Coletivo Transforma MP.

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Referências

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CHAUI, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2006.

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PANEBIANCO, Angelo. Evitar a política? Trad. Cláudio Gonçalves Couto. Novos Estudos, Cebrap, n. 45, p. 51-57, jul. 1996.

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VIEGAS, Rafael Rodrigues. Governabilidade e lógica de designações no Ministério Público Federal: os “procuradores políticos profissionais”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 33. e234299, 2020, pp 1-51.

SCHMITTER, Philippe C. Reflexões sobre o conceito de política. Revista de Direito Público e Ciência Política, Rio de Janeiro, vol. VIII, n. 2, maio/ag. 1965.

ZAFFARONI. Poder judiciário: crises, acertos e desacertos. São Paulo: RT, 1995, p. 92.


[1]Schmitter, Philippe C. Reflexões sobre o conceito de política. Revista de Direito Público e Ciência Política, Rio de Janeiro, vol. VIII, n. 2, maio/ag. 1965.

[2] Monteiro, Manuel. Dicionário de ciência política e relações internacionais. Fernando de Sousa et alii (coord.). Coimbra; Almedina, 2022, p. 493.

[3] O competente “é aquele que possui um saber determinado, institucionalmente reconhecido, graças ao qual pode não só falar e agir pelos outros, mas ainda, e sobretudo, excluir outros do direito de ser sujeitos de seus discursos e de suas ações (Chaui, 2016, pp. 53-58 e 113-119).

[4]  Kecher, Fábio. Autonomia e discricionariedade do Ministério Público no Brasil. Dados –Revista de Ciências Sociais, v. 50, n. 2, 2007, p. 259-279.

[5] Sadek, Maria Tereza. A construção de um novo ministério público resolutivo. De Jure – Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 12, jan.-jun. 2009.

[6] Batista, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

[7] ADPF n. 635.

[8] Viegas (2020) demonstra que no âmbito do Ministério Público Federal os Procuradores-Gerais da República são oriundos de altos postos para os quais foram designados por seus antecessores ou de posições ocupadas na Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), uma associação privada.

[9] Os integrantes dos Conselhos Superiores dos Ministérios Públicos, dos Órgãos Especiais dos Colégios de Procuradores de Justiçae os Corregedores-Gerais também são eleitos pela classe (no primeiro caso, por promotores de justiça e procuradores de justiça; no caso dos Órgãos Especiais e do Corregedor, apenas por procuradores de justiça).

[10] Nos dois primeiros governos de Lula e no governo de Dilma Roussef as nomeações recaíram sobre o primeiro colocado das listas tríplices da ANPR. Já nos governos Temer e Bolsonaro as nomeações não seguiram as indicações classistas. O governo “Lula 3” também se afastou da nomeação do mais votado da lista tríplice encaminhada pela ANPR. 

[11] Adotamos aqui a expressão ideologia não no sentido de uma consciência ilusória ou fictícia do real, mas sim no sentido de um conjunto de ideias, valores e concepções de mundo de uma pessoa, de um grupo, de um movimento político ou mesmo de uma instituição, aptos a orientarem comportamentos concretos, coletivos ou individuais.

[12] Zaffaroni. Poder judiciário: crises, acertos e desacertos. São Paulo: RT, 1995, p. 92.

[13] Por exemplo, a vedação de que membros do Ministério Público exerçam funções no alto escalão do Poder Executivo (o cargo de Secretário de Segurança Pública ou de Secretário de Saúde, por exemplo). O CNMP contornou a Constituição ao entender que não há vedação para que o membro do Ministério Público exerça outra função pública, desde que afastado de suas atribuições na instituição de origem, “pois o que a Constituição Federal proíbe é apenas o exercício concomitante do cargo no Ministério Público com outro cargo público”, vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas, o que deve ser analisado caso a caso (Processo nº 0.00.000.000295/2011-85, Relatora Conselheira Claudia Chagas, j. em 17.05.2011). Contudo, o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a nomeação de membros do Ministério Público  para o exercício de cargos que não tenham relação com as atividades da instituição em decisão proferida por ocasião do julgamento da ADPF n. 388, Relator Min. Gilmar Mendes, ajuizada pelo Partido Popular Socialista para questionar a nomeação do Procurador de Justiça do Estado da Bahia Wellington César Lima e Silva para o cargo de Ministro da Justiça.

[14] Panebianco, Angelo. Evitar a política? Trad. Cláudio Gonçalves Couto. Novos Estudos, Cebrap, n. 45, p. 51-57, jul. 1996.

[15] Arantes, Rogério Bastos. Ministério Público e política no Brasil. São Paulo: EDUC, Editora Sumaré; Fapesp, 2002.

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