Em decisão inédita no país, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul absolveu em segunda instância por unanimidade um cultivador de cogumelos ‘mágicos’ acusado de tráfico de drogas. A sentença, proferida no início de abril pela 1ª Câmara Criminal, reconheceu que Gabriel Azuaga Barbosa não tinha como saber que sua conduta poderia ser considerada crime, situação jurídica conhecida como “erro de tipo”. Ele havia enviado, pelos Correios, amostras desidratadas do fungo Psilocybe cubensis, que contém psilocibina, mas não está listado entre as substâncias proibidas no Brasil.
A relatora do caso, desembargadora Elizabete Anache, citou a obra Alice no País das Maravilhas e a canção Avôhai, de Zé Ramalho, para ilustrar a dimensão simbólica e cultural que envolve os chamados cogumelos ‘mágicos’. Ambas evocam o uso dessas substâncias como vias de conhecimento e transformação, seja na travessia onírica de Alice, seja na viagem mística narrada por Ramalho. A escolha da magistrada dialoga com o imaginário popular e com o uso milenar da psilocibina entre povos indígenas do México, empregados há séculos em rituais de cura e aprendizado espiritual.
A decisão também destacou a ausência de dolo (isto é, de intenção criminosa), a falta de provas de extração das substâncias e a ambiguidade legal que envolve o tema. “A legislação é dúbia”, escreveu. “O Direito não pode ser dissociado do mundo.”
Gabriel havia sido condenado a seis anos e nove meses de prisão em regime semiaberto por vender os cogumelos, além de multa. Segundo a defesa, o material enviados faziam parte de um curso sobre cultivo medicinal. A reversão da sentença foi baseada no argumento de que os cogumelos não são proibidos em lei, que não houve intenção de traficar e que a legislação brasileira é ambígua.
Sentença inédita
No voto da relatora, a desembargadora Elizabete Anache destacou que o Psilocybe cubensis não está incluído entre os fungos proscritos pela Portaria nº 344/1998 da Anvisa. O que aparece em outra lista, de substâncias proibidas, é a psilocibina, presente no fungo, cuja extração ou síntese exige conhecimento técnico e equipamentos específicos.
Para a magistrada, é inaceitável que alguém seja condenado por tráfico em um cenário onde a legislação é ambígua e a substância circula livremente na internet. “Não é tolerável que qualquer pessoa seja levada a crer que pode praticar certas condutas e depois ser surpreendida com condenação por crime equiparado a hediondo”, escreveu.
O acórdão também critica a falta de isonomia nas decisões judiciais sobre psicodélicos. Estabelece um paralelo com a ayahuasca — cujo uso ritual foi regulamentado pelo Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas) em 2010 — e menciona jurisprudências que aplicam o princípio da legalidade penal em favor de réus em casos semelhantes. “Não podemos ter medidas diversas em território nacional”, conclui.
Para especialistas, a decisão do TJ-MS representa um marco na consolidação de uma nova interpretação jurídica sobre os psicodélicos, ao aplicar, pela primeira vez em segunda instância, a tese da atipicidade da conduta com base no erro de tipo essencial, prevista no artigo 20 do Código Penal.
A tese foi desenvolvida pelos juristas Daniel Rodrigues e Mônica Hoff, do IMS (Instituto Micélio Sagrado), e apresentada no artigo “A (a)tipicidade dos cogumelos mágicos”.
Na prática, o tribunal reconheceu que o Psilocybe cubensis não não está proibido, pois não é listado entre os fungos proibidos no Brasil — embora contenha substâncias como psilocibina e psilocina. Criminalizar seu cultivo ou envio, portanto, extrapola os limites do tipo penal. A decisão reforça os princípios da legalidade estrita, da taxatividade e do devido processo legal.
A desembargadora também ressaltou que a ampla circulação dos cogumelos online, somada à ausência de repressão estatal clara e ao uso medicinal ou ritualístico, contribuem para uma legítima percepção de licitude. O entendimento foi descrito no acórdão como erro de tipo invencível — conceito que exclui a responsabilidade penal quando o agente não tem como saber que sua conduta seria criminosa.
A decisão destaca os efeitos da ambiguidade legislativa, que favorece repressões abusivas e o preconceito contra práticas culturais e espirituais legítimas. O acórdão afirma que o simples cultivo ou envio do cogumelo não configura tráfico, por não haver dolo nem prova de extração de substâncias ativas.
Ao romper com a lógica punitiva que historicamente equiparou fungicultores a traficantes, a sentença também critica o que os juristas chamam de “indústria jurídica proibicionista”: um sistema que, ao invés de combater a repressão indevida, reforça o preconceito e sustenta a prisão arbitrária de cultivadores e praticantes sem amparo legal — num cenário de ausência de regulação e confusão normativa.
Seguindo uma tendência internacional — já em curso na Austrália, nos EUA e, mais recentemente, na Índia —, o caso Gabriel Barbosa pode inaugurar um novo paradigma jurídico no Brasil. “A sentença não apenas absolve, mas institucionaliza uma tese doutrinária como referência legítima diante da evolução científica e cultural em torno dos psicodélicos”, afirma o IMS em artigo.
Para o jurista Daniel Rodrigues, conselheiro do IMS (Instituto Micélio Sagrado), a decisão do TJ-MS, por ser colegiada e não individual, pode influenciar julgamentos futuros e contribuir para a formação de jurisprudência. “É tecnicamente sólida, construída com base em fundamentos consolidados do direito penal. Mesmo com possíveis divergências, entra para o arcabouço que pode balizar entendimentos sobre o tema.”
‘Brasil carece de dados sobre uso de cogumelos’
Na avaliação de Marcel Nogueira, farmacêutico clínico e chefe de pesquisas do Instituo Micélio Sagrado, especializado em tratamentos com psilocibina, a decisão também pressiona a Anvisa a se posicionar com mais clareza sobre os cogumelos com psilocibina. “A ambiguidade da Portaria 344 dificulta o debate e trava a pesquisa. Quando o Judiciário reconhece essa complexidade, cresce a demanda por uma regulamentação técnica, como já ocorreu com a cannabis.”
O Brasil, destaca ele, ainda carece de informações sistematizadas sobre o uso de cogumelos, amplamente acessíveis pela internet e na natureza, mas fora de qualquer forma oficial de monitoramento. “Precisamos de estudos de mundo real, com base em farmacovigilância, para entender como essas substâncias são consumidas fora dos contextos clínicos e rituais. Isso é essencial para orientar políticas públicas de saúde”, critica. “Sem saber o perfil de quem consome, o padrão de uso e os efeitos em ambientes não controlados, seguimos no escuro.”
Como começou a batalha judicial
Antes da absolvição em segunda instância, Gabriel Azuaga Barbosa enfrentou uma série de entraves judiciais. Em março de 2023, segundo o jornal ‘Correio do Estado’, teve um pedido de habeas corpus preventivo negado pela 6ª Vara Criminal de Campo Grande, enquanto estava em liberdade provisória.
Ele alegava que cultivava cogumelos mágicos (Psilocybe cubensis) em casa como parte de um tratamento alternativo para TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), baseado em práticas xamânicas. O pedido foi embasado por relatório médico, mas o juiz Marcio Alexandre Wust considerou o documento insuficiente. Indeferiu o habeas corpus sob o argumento de que não havia prescrição formal e que a Anvisa não autorizava tal tratamento. O recurso segue pendente de julgamento no STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Gabriel já havia sido preso anteriormente por cultivar e enviar cogumelos pelo correio. Segundo a Denar (Delegacia Especializada de Repressão ao Narcotráfico), ele ministrava cursos de cultivo em redes sociais e remetia os fungos a diversas regiões do país.
As autoridades policiais entenderam essas atividades como tráfico de drogas. Gabriel e seu colega, Heber da Silva Junior, alegavam que os cogumelos eram usados em contextos religiosos, semelhantes ao consumo de ayahuasca em rituais de grupos como o Santo Daime.
Precedente que desafia o futuro
A absolvição de Gabriel Azuaga Barbosa não representa apenas uma virada individual, mas também coloca em xeque a forma como o Estado brasileiro tem lidado com os cogumelos psicoativos. Ao reconhecer a ambiguidade legal e a ausência de dolo, a Justiça abriu espaço para que outros casos sejam revistos e novos debates avancem — no Judiciário, no Legislativo e na esfera regulatória.
Para a advogada Monica Hoff, do Instituto Micélio Sagrado, a decisão representa um marco jurídico e simbólico para fungicultores, pacientes, terapeutas e praticantes de rituais com cogumelos no Brasil. “O acolhimento definitivo da nossa tese rompe com a lógica punitivista que historicamente marginaliza práticas ancestrais e inovadoras, sem qualquer respaldo normativo para repressão”, afirma. “É um precedente valente, técnico e humano — um sopro de lucidez no tratamento jurídico dos psicodélicos. Esse é o resultado de anos de luta.”
Em decisão inédita no país, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul absolveu em segunda instância por unanimidade um cultivador de cogumelos ‘mágicos’ acusado de tráfico de drogas. A sentença, proferida no início de abril pela 1ª Câmara Criminal, reconheceu que Gabriel Azuaga Barbosa não tinha como saber que sua conduta poderia ser considerada crime, situação jurídica conhecida como “erro de tipo”. Ele havia enviado, pelos Correios, amostras desidratadas do fungo Psilocybe cubensis, que contém psilocibina, mas não está listado entre as substâncias proibidas no Brasil.
A relatora do caso, desembargadora Elizabete Anache, citou a obra Alice no País das Maravilhas e a canção Avôhai, de Zé Ramalho, para ilustrar a dimensão simbólica e cultural que envolve os chamados cogumelos ‘mágicos’. Ambas evocam o uso dessas substâncias como vias de conhecimento e transformação, seja na travessia onírica de Alice, seja na viagem mística narrada por Ramalho. A escolha da magistrada dialoga com o imaginário popular e com o uso milenar da psilocibina entre povos indígenas do México, empregados há séculos em rituais de cura e aprendizado espiritual.
A decisão também destacou a ausência de dolo (isto é, de intenção criminosa), a falta de provas de extração das substâncias e a ambiguidade legal que envolve o tema. “A legislação é dúbia”, escreveu. “O Direito não pode ser dissociado do mundo.”
Gabriel havia sido condenado a seis anos e nove meses de prisão em regime semiaberto por vender os cogumelos, além de multa. Segundo a defesa, o material enviados faziam parte de um curso sobre cultivo medicinal. A reversão da sentença foi baseada no argumento de que os cogumelos não são proibidos em lei, que não houve intenção de traficar e que a legislação brasileira é ambígua.
Sentença inédita
No voto da relatora, a desembargadora Elizabete Anache destacou que o Psilocybe cubensis não está incluído entre os fungos proscritos pela Portaria nº 344/1998 da Anvisa. O que aparece em outra lista, de substâncias proibidas, é a psilocibina, presente no fungo, cuja extração ou síntese exige conhecimento técnico e equipamentos específicos.
Para a magistrada, é inaceitável que alguém seja condenado por tráfico em um cenário onde a legislação é ambígua e a substância circula livremente na internet. “Não é tolerável que qualquer pessoa seja levada a crer que pode praticar certas condutas e depois ser surpreendida com condenação por crime equiparado a hediondo”, escreveu.
O acórdão também critica a falta de isonomia nas decisões judiciais sobre psicodélicos. Estabelece um paralelo com a ayahuasca — cujo uso ritual foi regulamentado pelo Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas) em 2010 — e menciona jurisprudências que aplicam o princípio da legalidade penal em favor de réus em casos semelhantes. “Não podemos ter medidas diversas em território nacional”, conclui.
Para especialistas, a decisão do TJ-MS representa um marco na consolidação de uma nova interpretação jurídica sobre os psicodélicos, ao aplicar, pela primeira vez em segunda instância, a tese da atipicidade da conduta com base no erro de tipo essencial, prevista no artigo 20 do Código Penal.
A tese foi desenvolvida pelos juristas Daniel Rodrigues e Mônica Hoff, do IMS (Instituto Micélio Sagrado), e apresentada no artigo “A (a)tipicidade dos cogumelos mágicos”.
Na prática, o tribunal reconheceu que o Psilocybe cubensis não não está proibido, pois não é listado entre os fungos proibidos no Brasil — embora contenha substâncias como psilocibina e psilocina. Criminalizar seu cultivo ou envio, portanto, extrapola os limites do tipo penal. A decisão reforça os princípios da legalidade estrita, da taxatividade e do devido processo legal.
A desembargadora também ressaltou que a ampla circulação dos cogumelos online, somada à ausência de repressão estatal clara e ao uso medicinal ou ritualístico, contribuem para uma legítima percepção de licitude. O entendimento foi descrito no acórdão como erro de tipo invencível — conceito que exclui a responsabilidade penal quando o agente não tem como saber que sua conduta seria criminosa.
A decisão destaca os efeitos da ambiguidade legislativa, que favorece repressões abusivas e o preconceito contra práticas culturais e espirituais legítimas. O acórdão afirma que o simples cultivo ou envio do cogumelo não configura tráfico, por não haver dolo nem prova de extração de substâncias ativas.
Ao romper com a lógica punitiva que historicamente equiparou fungicultores a traficantes, a sentença também critica o que os juristas chamam de “indústria jurídica proibicionista”: um sistema que, ao invés de combater a repressão indevida, reforça o preconceito e sustenta a prisão arbitrária de cultivadores e praticantes sem amparo legal — num cenário de ausência de regulação e confusão normativa.
Seguindo uma tendência internacional — já em curso na Austrália, nos EUA e, mais recentemente, na Índia —, o caso Gabriel Barbosa pode inaugurar um novo paradigma jurídico no Brasil. “A sentença não apenas absolve, mas institucionaliza uma tese doutrinária como referência legítima diante da evolução científica e cultural em torno dos psicodélicos”, afirma o IMS em artigo.
Para o jurista Daniel Rodrigues, conselheiro do IMS (Instituto Micélio Sagrado), a decisão do TJ-MS, por ser colegiada e não individual, pode influenciar julgamentos futuros e contribuir para a formação de jurisprudência. “É tecnicamente sólida, construída com base em fundamentos consolidados do direito penal. Mesmo com possíveis divergências, entra para o arcabouço que pode balizar entendimentos sobre o tema.”
‘Brasil carece de dados sobre uso de cogumelos’
Na avaliação de Marcel Nogueira, farmacêutico clínico e chefe de pesquisas do Instituo Micélio Sagrado, especializado em tratamentos com psilocibina, a decisão também pressiona a Anvisa a se posicionar com mais clareza sobre os cogumelos com psilocibina. “A ambiguidade da Portaria 344 dificulta o debate e trava a pesquisa. Quando o Judiciário reconhece essa complexidade, cresce a demanda por uma regulamentação técnica, como já ocorreu com a cannabis.”
O Brasil, destaca ele, ainda carece de informações sistematizadas sobre o uso de cogumelos, amplamente acessíveis pela internet e na natureza, mas fora de qualquer forma oficial de monitoramento. “Precisamos de estudos de mundo real, com base em farmacovigilância, para entender como essas substâncias são consumidas fora dos contextos clínicos e rituais. Isso é essencial para orientar políticas públicas de saúde”, critica. “Sem saber o perfil de quem consome, o padrão de uso e os efeitos em ambientes não controlados, seguimos no escuro.”
Como começou a batalha judicial
Antes da absolvição em segunda instância, Gabriel Azuaga Barbosa enfrentou uma série de entraves judiciais. Em março de 2023, segundo o jornal ‘Correio do Estado’, teve um pedido de habeas corpus preventivo negado pela 6ª Vara Criminal de Campo Grande, enquanto estava em liberdade provisória.
Ele alegava que cultivava cogumelos mágicos (Psilocybe cubensis) em casa como parte de um tratamento alternativo para TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), baseado em práticas xamânicas. O pedido foi embasado por relatório médico, mas o juiz Marcio Alexandre Wust considerou o documento insuficiente. Indeferiu o habeas corpus sob o argumento de que não havia prescrição formal e que a Anvisa não autorizava tal tratamento. O recurso segue pendente de julgamento no STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Gabriel já havia sido preso anteriormente por cultivar e enviar cogumelos pelo correio. Segundo a Denar (Delegacia Especializada de Repressão ao Narcotráfico), ele ministrava cursos de cultivo em redes sociais e remetia os fungos a diversas regiões do país.
As autoridades policiais entenderam essas atividades como tráfico de drogas. Gabriel e seu colega, Heber da Silva Junior, alegavam que os cogumelos eram usados em contextos religiosos, semelhantes ao consumo de ayahuasca em rituais de grupos como o Santo Daime.
Precedente que desafia o futuro
A absolvição de Gabriel Azuaga Barbosa não representa apenas uma virada individual, mas também coloca em xeque a forma como o Estado brasileiro tem lidado com os cogumelos psicoativos. Ao reconhecer a ambiguidade legal e a ausência de dolo, a Justiça abriu espaço para que outros casos sejam revistos e novos debates avancem — no Judiciário, no Legislativo e na esfera regulatória.
Para a advogada Monica Hoff, do Instituto Micélio Sagrado, a decisão representa um marco jurídico e simbólico para fungicultores, pacientes, terapeutas e praticantes de rituais com cogumelos no Brasil. “O acolhimento definitivo da nossa tese rompe com a lógica punitivista que historicamente marginaliza práticas ancestrais e inovadoras, sem qualquer respaldo normativo para repressão”, afirma. “É um precedente valente, técnico e humano — um sopro de lucidez no tratamento jurídico dos psicodélicos. Esse é o resultado de anos de luta.”