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27 Apr 2025, Sun

Por que a conta de luz pesa cada vez mais no bolso da população e na popularidade do governo


Clarice Ferraz, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Entre os muitos desafios que qualquer governo democrático no mundo enfrenta para manter sua aprovação, poucos são tão concretos quanto o encarecimento das contas que chegam todo fim do mês na casa das pessoas. No Brasil, pesquisas recentes mostram que a redução dos índices de popularidade do atual governo está diretamente relacionada com a perda do poder de compra das famílias, que foi afetado sobretudo pela inflação dos alimentos e… pelas tarifas de energia elétrica.

Em fevereiro de 2025, a conta de luz no Brasil subiu em média 17% e foi um dos principais vetores da inflação no mês, que acabou sendo a maior dos últimos 22 anos.

Parte desse salto é consequência da redução momentânea das tarifas, proporcionada pela aplicação, no mês anterior, do chamado “bônus de Itaipu”. Trata-se de um mecanismo criado pelo governo que, uma vez por ano, o permite ratear – na forma de descontos nas contas de luz de dezenas de milhões de consumidores – o saldo positivo na conta de comercialização de energia elétrica da usina de Itaipu. Quando aplicado, esse mecanismo reduz momentaneamente, mas de forma significativa, o índice de inflação do país naquele mês, o que traz consequências macroeconômicas positivas.

O problema é que, quando as tarifas voltam ao normal no mês seguinte, geram um salto que chama a atenção, e expõe de forma ainda mais explícita a histórica trajetória de alta do custo da geração de energia no país, que há anos vem gerando impactos negativos sobre a qualidade de vida da população e no desempenho da economia.

Tal trajetória de alta das tarifas, associada a problemas estruturais e institucionais, aumenta a instabilidade no setor, cada vez mais afetado pelos impactos das transformações tecnológicas e das mudanças climáticas.

A falta de previsibilidade nos preços da eletricidade desorganiza cadeias produtivas, trava investimentos, retarda o avanço da eletrificação necessária à transição energética, e limita a capacidade do país de crescer de forma sustentável.

Crise também na distribuição

Paradoxalmente, o aumento das tarifas foi acompanhado pela degradação da qualidade do serviço prestado pelas distribuidoras. O setor de distribuição se transformou radicalmente com a expansão da micro e da minigeração distribuída, sobretudo a partir da fonte solar fotovoltaica.

Segundo o ONS, em 2024, 22% da geração de eletricidade do país estavam conectados ao setor de distribuição, que precisou administrar esse rápido avanço e lidar com problemas como o nomeado de fluxo reverso.

Os índices de qualidade revelam a gravidade do problema. Em 2024, de acordo com a ANEEL, os brasileiros ficaram, em média, 10 horas e 14 minutos sem energia elétrica. A complexidade da situação deve ser enfrentada por meio de novos e adequados investimentos e gastos em mão de obra e manutenção.

A expansão e a modernização do sistema elétrico tornam central a questão do trabalho, que precisa ser revista. Há crescimento do número de acidentes, inclusive fatais, entre os trabalhadores do setor. Aqui os dados revelam que o regime de trabalho importa. O número de mortes entre funcionários terceirizados costuma ser, ao menos, três vezes maior do que entre os trabalhadores do quadro próprio, apesar de sobrecarregados.

É nesse contexto que surge a proposta do vice-presidente Geraldo Alckmin de retirar a variação dos preços da energia e dos alimentos do cálculo da inflação utilizado pelo Banco Central. Como estes são os itens que mais pressionam a inflação, retirá-los do cálculo reduziria o índice de reajuste de taxa de juros.

A intenção, em parte, é válida: criticar a atual política monetária que mantém os juros excessivamente altos sob o argumento de que irá conter a inflação, mas que se mostra ineficaz. No entanto, o caminho sugerido não endereça o problema estrutural da pressão inflacionária provocada pelo aumento das tarifas de energia elétrica.

É preciso ir além e buscar uma estratégia que inverta essa tendência. O debate sobre os índices de inflação lembra que é hora de enfrentar os fatores que colocam a conta de luz entre os principais vetores da insatisfação social e da estagnação econômica.

O Brasil precisa definir uma política energética para garantir segurança de abastecimento, previsibilidade tarifária e acesso universal à eletricidade. Energia não pode ser item de luxo. É direito básico e pilar fundamental da atividade econômica e da retomada do crescimento.

Tal política energética precisa enfrentar as causas estruturais dos aumentos sucessivos nas tarifas: falta de planejamento, expansão desordenada, variações hidrológicas, judicializações, distorções na formação de preços, custos sistêmicos mal distribuídos e subsídios indevidos.

É igualmente fundamental fortalecer os mecanismos de fiscalização, ouvir os trabalhadores do setor e garantir as condições adequadas para sejam realizadas a manutenção preventiva e a ampliação e modernização da infraestrutura de forma eficiente.

O governo tem uma oportunidade. Se conduzida com responsabilidade e ampla consulta à sociedade e aos especialistas do setor, a necessária reforma do setor elétrico poderá corrigir distorções históricas e reconstruir a confiança em torno de um projeto nacional de transição energética. A definição do marco regulatório é condição necessária para a atração de novos investimentos. Dar previsibilidade às tarifas e garantir que a eletricidade chegue a todos de forma segura, acessível e sustentável são medidas de justiça social e uma estratégia sustentável de redução da inflação, aumento de competitividade industrial e de bem-estar da população, que fomenta o mercado interno. Essa agenda pode ajustar o rumo do país. E a popularidade do governo.

Clarice Ferraz, professora da Escola de Química, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.

Clarice Ferraz, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Entre os muitos desafios que qualquer governo democrático no mundo enfrenta para manter sua aprovação, poucos são tão concretos quanto o encarecimento das contas que chegam todo fim do mês na casa das pessoas. No Brasil, pesquisas recentes mostram que a redução dos índices de popularidade do atual governo está diretamente relacionada com a perda do poder de compra das famílias, que foi afetado sobretudo pela inflação dos alimentos e… pelas tarifas de energia elétrica.

Em fevereiro de 2025, a conta de luz no Brasil subiu em média 17% e foi um dos principais vetores da inflação no mês, que acabou sendo a maior dos últimos 22 anos.

Parte desse salto é consequência da redução momentânea das tarifas, proporcionada pela aplicação, no mês anterior, do chamado “bônus de Itaipu”. Trata-se de um mecanismo criado pelo governo que, uma vez por ano, o permite ratear – na forma de descontos nas contas de luz de dezenas de milhões de consumidores – o saldo positivo na conta de comercialização de energia elétrica da usina de Itaipu. Quando aplicado, esse mecanismo reduz momentaneamente, mas de forma significativa, o índice de inflação do país naquele mês, o que traz consequências macroeconômicas positivas.

O problema é que, quando as tarifas voltam ao normal no mês seguinte, geram um salto que chama a atenção, e expõe de forma ainda mais explícita a histórica trajetória de alta do custo da geração de energia no país, que há anos vem gerando impactos negativos sobre a qualidade de vida da população e no desempenho da economia.

Tal trajetória de alta das tarifas, associada a problemas estruturais e institucionais, aumenta a instabilidade no setor, cada vez mais afetado pelos impactos das transformações tecnológicas e das mudanças climáticas.

A falta de previsibilidade nos preços da eletricidade desorganiza cadeias produtivas, trava investimentos, retarda o avanço da eletrificação necessária à transição energética, e limita a capacidade do país de crescer de forma sustentável.

Crise também na distribuição

Paradoxalmente, o aumento das tarifas foi acompanhado pela degradação da qualidade do serviço prestado pelas distribuidoras. O setor de distribuição se transformou radicalmente com a expansão da micro e da minigeração distribuída, sobretudo a partir da fonte solar fotovoltaica.

Segundo o ONS, em 2024, 22% da geração de eletricidade do país estavam conectados ao setor de distribuição, que precisou administrar esse rápido avanço e lidar com problemas como o nomeado de fluxo reverso.

Os índices de qualidade revelam a gravidade do problema. Em 2024, de acordo com a ANEEL, os brasileiros ficaram, em média, 10 horas e 14 minutos sem energia elétrica. A complexidade da situação deve ser enfrentada por meio de novos e adequados investimentos e gastos em mão de obra e manutenção.

A expansão e a modernização do sistema elétrico tornam central a questão do trabalho, que precisa ser revista. Há crescimento do número de acidentes, inclusive fatais, entre os trabalhadores do setor. Aqui os dados revelam que o regime de trabalho importa. O número de mortes entre funcionários terceirizados costuma ser, ao menos, três vezes maior do que entre os trabalhadores do quadro próprio, apesar de sobrecarregados.

É nesse contexto que surge a proposta do vice-presidente Geraldo Alckmin de retirar a variação dos preços da energia e dos alimentos do cálculo da inflação utilizado pelo Banco Central. Como estes são os itens que mais pressionam a inflação, retirá-los do cálculo reduziria o índice de reajuste de taxa de juros.

A intenção, em parte, é válida: criticar a atual política monetária que mantém os juros excessivamente altos sob o argumento de que irá conter a inflação, mas que se mostra ineficaz. No entanto, o caminho sugerido não endereça o problema estrutural da pressão inflacionária provocada pelo aumento das tarifas de energia elétrica.

É preciso ir além e buscar uma estratégia que inverta essa tendência. O debate sobre os índices de inflação lembra que é hora de enfrentar os fatores que colocam a conta de luz entre os principais vetores da insatisfação social e da estagnação econômica.

O Brasil precisa definir uma política energética para garantir segurança de abastecimento, previsibilidade tarifária e acesso universal à eletricidade. Energia não pode ser item de luxo. É direito básico e pilar fundamental da atividade econômica e da retomada do crescimento.

Tal política energética precisa enfrentar as causas estruturais dos aumentos sucessivos nas tarifas: falta de planejamento, expansão desordenada, variações hidrológicas, judicializações, distorções na formação de preços, custos sistêmicos mal distribuídos e subsídios indevidos.

É igualmente fundamental fortalecer os mecanismos de fiscalização, ouvir os trabalhadores do setor e garantir as condições adequadas para sejam realizadas a manutenção preventiva e a ampliação e modernização da infraestrutura de forma eficiente.

O governo tem uma oportunidade. Se conduzida com responsabilidade e ampla consulta à sociedade e aos especialistas do setor, a necessária reforma do setor elétrico poderá corrigir distorções históricas e reconstruir a confiança em torno de um projeto nacional de transição energética. A definição do marco regulatório é condição necessária para a atração de novos investimentos. Dar previsibilidade às tarifas e garantir que a eletricidade chegue a todos de forma segura, acessível e sustentável são medidas de justiça social e uma estratégia sustentável de redução da inflação, aumento de competitividade industrial e de bem-estar da população, que fomenta o mercado interno. Essa agenda pode ajustar o rumo do país. E a popularidade do governo.

Clarice Ferraz, professora da Escola de Química, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.



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