Fantasias, manequins, espelhos, bonecas e adereços de vários tipos ocupavam o ateliê da pintora Paula Rego na rua Kentish Town, em Londres. A artista brasileira Adriana Varejão esteve lá uma única vez, em 2016, quando as duas preparavam uma exposição conjunta no Rio de Janeiro, que se realizou no ano seguinte.
“O local de trabalho dela era muito semelhante a um teatro, ela construía cenas para depois pintá-las”, diz Varejão. “Toda a arte dela vem dessa narrativa ficcional e literária.” Foi a única vez que as duas artistas estiveram juntas. Rego morreu em Londres, em junho de 2022, aos 87 anos, reconhecida como uma das maiores pintoras portuguesas em todos os tempos.
O diálogo entre Varejão e Rego segue agora pelas suas obras, numa grande exposição na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. O espaço foi dividido em 13 salas temáticas, onde a fricção entre ideias e linguagens gera aquele incômodo inerente à arte que vale a pena.
“O diretor da Gulbenkian, Benjamin Weil, queria algo que fosse como um soco no estômago”, diz Varejão, que é também uma das curadoras da mostra, ao lado da portuguesa Helena de Freitas e do brasileiro Victor Gorgulho. “Minha maneira de resolver as questões plásticas é diferente da dela, e acho que vem daí a potência desse encontro.”
O resumo da exposição está logo na primeira sala. Uma pintura de Varejão mostra personagens saídos dos quadros do francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), mas numa cena que não poderia estar numa obra de Debret —cavalheiros europeus bem trajados abusam sexualmente de uma mulher negra e de uma adolescente indígena.
Ao lado, uma pintura de Rego mostra uma mulher grávida deitada sob um quadro parecido com “A Primeira Missa no Brasil”, de Victor Meirelles (1832-1903). Na composição veem-se também uma mulher nua ardendo em uma fogueira, e outra com um vestido branco manchado de sangue.
O tema da violência —colonialista, política, de gênero— perpassa a exposição. Varejão prefere a palavra “fúria”. “A exposição lida com temas que são violentos, mas às vezes lida com esses temas de uma forma sutil”, afirma. O título da mostra, “Entre os Vossos Dentes”, vem de um poema de Hilda Hilst: “O que sabeis/ Da alma dos homens?/ Ouro, conquista, lucro, logro/ E os nossos ossos/ E o sangue das gentes/ E a vida dos homens/ Entre os vossos dentes”. A curadoria enfatiza o lado político da obra das artistas.
Nascidas com 27 anos de diferença, a portuguesa e a brasileira são de gerações distintas e exploram linguagens diversas, mas têm ao menos uma coincidência biográfica. As duas nasceram sob ditaduras — a salazarista em Portugal, a militar no Brasil— e presenciaram a transição de regimes autoritários para democracias. Essa transição não impediu que diversas formas de opressão seguissem existindo dentro de regimes de liberdade.
A sala “Apesar de Você” —cada uma das 13 salas da exposição tem um título— traz o quadro “Salazar a Vomitar a Pátria”, de Rego. Ele foi pintado em 1960, em plena ditadura do Estado Novo português. O quadro abstrato dialoga com “Ruína Brasilis”, de Varejão, um pilar de azulejos verdes e amarelos carcomido na parte de cima, com vísceras aparecendo.
“É a única obra em que eu uso a bandeira do Brasil. Não estávamos mais na ditadura, mas num governo que trazia ecos da ditadura”, diz Varejão. “É um trabalho de 2021, o mais explícito que tenho.”
A sobreposição de soco no estômago com sutileza é notória também numa outra sala, “Rituais de Limpeza”. O espaço reúne uma série de gravuras de Rego feitas em 1999, logo após um plebiscito que manteve a proibição do aborto em Portugal.
“Paula Rego tem poucas gravuras, e escolheu esse formato por ser mais fácil de reproduzir —ela queria que sua arte repercutisse e gerasse discussão na sociedade”, diz a curadora Helena de Freitas, ex-diretora de um museu dedicado à pintora portuguesa, o Casa das Histórias. As imagens mostram mulheres em clínicas de aborto precárias, onde correm risco de vida. A interrupção voluntária da gravidez tornou-se legal em Portugal oito anos mais tarde, em 2007.
Na mesma sala, Varejão explora, em vários quadros, o tema dos azulejos brancos. A aparente assepsia é quebrada por manchas de sangue em “The Guest”, de 2004, e por fios de cabelo espalhados pelo chão em “A Malvada”, de 2009. A artista pensou em incluir na sala uma gravura feita sob encomenda da ONG Milhas pela Vida, que financia viagens de brasileiras carentes para países onde o aborto é legalizado.
“Chama-se ‘A Carne é Minha’ e a ideia era vender alguns exemplares por R$ 250 para colaborar com a causa”, lembra a artista. A ONG vendeu 800 gravuras, mas a obra acabou não sendo incluída na exposição.
A ideia de dividir o espaço da Fundação Gulbenkian —um belíssimo pavilhão projetado pelo arquiteto japonês Kengo Kuma— em 13 pequenas salas foi de Daniela Thomas, responsável pela cenografia da mostra. Percorre-se a exposição como quem passeia pelas ruínas de Pompeia, na comparação da curadora Helena de Freitas. Caminha-se por um labirinto de corredores brancos e, antes de entrar nas salas, é possível espreitar as obras por nichos rasgados nas paredes.
As 73 obras da exposição foram garimpadas entre instituições públicas e coleções particulares. No caso de Rego, há desde raridades de acervos privados até clássicos como “Anjo” (1998) e “Mãe” (1999), da série inspirada no romance “O Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiroz.
No caso de Varejão não poderiam faltar os azulejos, tão identificados com Portugal, que a artista brasileira usa para tratar de temas como colonialismo —caso de “Proposta para uma Catequese: Morte e Esquartejamento”, em que cenas de extrema violência são retratadas numa linguagem de arte sacra.
A primeira ideia da exposição surgiu há três anos, quando Rego ainda estava viva. “Uma pena que não tivemos tempo de repetir nosso encontro em Londres”, diz Varejão. “Se ela não tivesse morrido no início do projeto, eu iria aproveitar o pretexto para fazer várias viagens para lá. Imagine se eu ia perder a oportunidade desse convívio.”