Sou uma mulher que vive a cidade a pé e por meio do transporte público. Para chegar ao trabalho, uso diferentes modais: carro de aplicativo, trem, metrô, ônibus e um trecho caminhando. Minha experiência não é incomum nem é motivo de pena ou confete. Milhões de mulheres em São Paulo percorrem trajetos ainda mais longos todos os dias.
O cansaço, definitivamente, não é o maior dos nossos problemas. Somos obrigadas a lidar com algo ainda mais exaustivo para uma mulher que circula pela cidade: medo dos homens. Tenho medo de andar na rua sozinha. Tenho medo de pedir um carro de aplicativo de madrugada. Tenho medo quando um desconhecido senta ao meu lado no transporte público. Eu tenho medo.
Na adolescência, minha mãe acordava às 5h para me acompanhar até o ponto de ônibus. Depois, voltava sozinha. Anos depois, quando cursava a faculdade, ela levantava à 1h da manhã para me buscar. Sozinha novamente. Para me proteger, colocava-se em perigo, enquanto meu pai continuava dormindo. Ele considerava os cuidados um excesso e acreditava que agindo assim impulsionava minha autonomia.
Minha mãe sempre esteve certa: nenhum dia é dia para nós, mulheres. Não há um minuto ou lugar de paz. Eu mesma achava meu medo um excesso, mas há razões para senti-lo.
Na última semana, esse cotidiano foi atravessado por uma história que me dilacerou: a de Bruna Oliveira da Silva, jovem de 28 anos, estudante de mestrado na USP, assassinada na zona leste de São Paulo. Bruna voltava de metrô da casa do namorado e parou no Terminal de Itaquera. Chegou a pedir um PIX aos familiares para pegar um carro de aplicativo. Depois, desapareceu.
O corpo de Bruna foi encontrado no dia 17 de abril, em um estacionamento no entorno da estação Itaquera, na Vila Carmosina, zona leste de São Paulo (SP). Um laudo preliminar aponta morte por asfixia em decorrência de estrangulamento, mas o laudo conclusivo ainda não foi divulgado.
As imagens captadas pelas câmeras de segurança mostram que um homem a segue. Logo depois, ele a arrasta e já não vemos mais os dois na imagem. O suspeito de ser o assassino de Bruna era Esteliano José Madureira, 43 anos – encontrado morto na Zona Sul de São Paulo no dia 23/4 com sinais de tortura. A morte ainda está sendo investigada.
Assisti com desespero e coração na mão a pisada rápida de Bruna tentando se esquivar do homem que a perseguia. Quantas vezes já andei rápido assim, com as chaves fazendo barulho para fingir que estou perto do portão. Sempre pronta para pular o muro. Sempre pronta para correr. Sempre rezando a todos os santos para não cruzar com nenhum homem pelo caminho e dando graças a Deus ao avistar outra mulher.
Minha amiga e jornalista Tamiris Gomes, também usuária do transporte público, resumiu bem a estratégia que utilizamos: “Criamos uma rede invisível de cuidado. Sem palavras, apenas com um olhar ou gesto sutil, nos reconhecemos. Sentar próximo de uma mulher no ônibus, ou no metrô, ou então respirar aliviada ao ver outra de nós na rua, é um pacto silencioso de sobrevivência em tempos tão violentos”.
“Amiga, pensei tanto em você ao ver a história da Bruna”, disse uma colega do trabalho que sempre me dá carona até a estação na volta para casa. Parei, olhei a foto da Bruna. Uma mulher de cabelos cacheados e periférica que, como eu, foi incentivada pela mãe a atravessar a ponte. Essa ponte física e simbólica que atravessamos para realizar algum sonho, como ingressar no Ensino Superior, e dar orgulho às pessoas que amamos e que sempre cuidaram da gente. Eu me vi nessa história.
Conversei por 40 minutos, por telefone, com a mãe de Bruna, a recepcionista Simone Francelina da Silva. Ela me falou do luto, do medo, da luta por justiça e da filha que criou para não abaixar a cabeça diante de nenhum homem. No dia anterior à nossa conversa, Simone participou de uma manifestação nos arredores da estação de metrô Itaquera que pedia justiça por Bruna e mais segurança no local. “Muitas mulheres, mães e alunas me abraçaram. Era como se elas estivessem pegando a minha dor”.
Simone acredita que são essas manifestações que a têm mantido de pé. “Não consigo ver minha vida sem meus filhos. O maldito veio, ele me amputou de alguma forma. Tirou pedaço do meu coração. Estou pegando forças. Não sei como – acho que pelo carinho e amor das pessoas”, diz.
Para ela, as passeatas e homenagens ajudam a lembrar como Bruna era iluminada, mas não acredita em superação para a perda de um filho. “Quando lembro que não vou sentir o cheiro, isso me deixa dilacerada. Nunca tem superação para isso, perder a filha do jeito que perdi”.
Antes do desaparecimento, Simone e Bruna haviam combinado de almoçar juntas na Páscoa. Simone comprou o peixe que a filha gostava e ovo de páscoa para o neto. O almoço não aconteceu. “Hoje, eu sofro o luto dela. Eu vou aprender a sobreviver com essa dor. Sempre que estiver triste de alguma forma, ela vai me abraçar e dizer ‘enxuga a lágrima, você é forte e guerreira’.”
As palavras que supostamente a filha diria são reflexo da forma como Simone a criou, com firmeza: “Sempre disse a ela: lute pelos seus direitos. Nunca abaixe a cabeça para homem nenhum”. Segundo a mãe, Bruna era dona de si e a ensinou a ser uma mulher empoderada tanto quanto ela. “Ela achava que eu era forte, mas era ela quem me dava força – uma menina tão jovem lutando e buscando o que queria”.
Viver com medo, seguir apesar dele
Simone engravidou de Bruna quando tinha 21 anos. Para quem havia crescido sem mãe, poder ser a figura que não teve na infância se tornou seu maior sonho. “Foi o melhor presente que tive de Deus. Não tive amor materno. Eu sempre sonhei em ser mãe e a Bruna realizou meu sonho”.
Doce e calma são alguns dos adjetivos que Simone mais repete ao longo da ligação. “Ela era minha paz, sempre foi minha paz”, diz. Desde a infância, a filha era estudiosa e adorava ler, passando horas dentro de casa com os gibis da Turma da Mônica. Na adolescência, foi fisgada pela saga Crepúsculo e era apaixonada por rock. “Amava Nirvana, Ramones, Black Sabbath. Sempre ligada em música e leitura”.
Bruna frequentou escolas públicas na zona leste paulistana durante toda a vida. Quando concluiu o Ensino Médio, ingressou em um curso técnico de Hotelaria, emendou um cursinho pré-vestibular e passou na graduação de Turismo da USP logo na primeira tentativa. “Foi a felicidade maior, Ela tinha 18 anos quando passou”, lembra Simone, orgulhosa.
Aos 21, Bruna se tornou mãe do filho que, hoje, tem 7 anos (não vamos citar o nome da criança para não expô-lo). “Engravidou na mesma idade que eu. Ela estava no último ano da graduação na USP. Falei para ela continuar, para não trancar. Apresentou o trabalho de conclusão de curso (TCC) com um barrigão lindo, toda cheia de orgulho. Na formatura, o filho já tinha nascido”.
Ao se separar do pai da criança, Bruna voltou a morar com Simone, que se tornou sua rede de apoio. “Ajudei muito ela e faria tudo de novo. Ela estudava, trabalhava. Ela nunca parou de estudar. Nessa época, ficava o dia inteiro fora, eu pegava o neném na creche”.
Nos últimos anos, o pai de Bruna a chamou para morar com ele em uma casa maior, também na zona leste paulistana. “A gente se via bastante. Sentia muita saudade, via uma vez por semana”.
A história de Bruna se assemelha a de outras meninas nas periferias. Dividindo-se entre trabalho, estudo e maternidade. Diante da distribuição desigual de trabalho e educação na cidade, mulheres das periferias não têm escolha, senão a de sair cedo e voltar tarde, mesmo com medo.
“Eu esperava ela voltar do trabalho. Sempre andou à noite, sempre teve medo. Sabendo sobre o país e lugar que a gente vive, sem policiamento, escuro, óbvio que ela tinha medo”, pontua Simone.
Bruna era mestranda em mudança social e participação política na USP. Lutava por segurança para as mulheres. “Tinha pavor de feminicídio, de abuso. O pavor dela era alguém tocar seu corpo. E foi embora desse jeito. Tenho certeza de que ela resistiu. Se houve abuso, foi depois da morte. Ela deu a vida por isso.”
“Na hora que vi [o homem] abordando minha filha, bem na entrada do terreno. É importante colocar um policiamento para que as mulheres tenham segurança de ir e vir, para chegar em segurança em suas casas. Ela só queria encontrar o filho e não chegou em casa. Até quando nossos filhos e netos vão crescer órfãos de mãe?”.