Como leques viraram símbolo da comunidade LGBTQIA+ – 30/09/2024 – Ilustrada

Vrau! De repente, alguém abriu o leque e interrompeu o silêncio. À medida que a noite avançava, o estampido foi aumentando até se tornar uma sinfonia com centenas de leques pulsando ao ritmo da música eletrônica.

É uma batida que tem se repetido em festivais, paradas do orgulho e em apresentações de artistas pop pelo mundo. Se há alguns anos esse acessório era considerado antiquado, hoje se tornou símbolo da comunidade LGBTQIA+ e queridinho de quem gosta de cair na noitada.

“Ir para a boate e não ter um leque é passar perrengue. Não consigo viver sem”, diz o cabeleireiro e maquiador Neeko Gentil. Para ele, o objeto cumpre uma função prática. “Quando alguém se sente mal, a gente dá uma abanada e ela já volta. Eu acho tudo.”

Mas o que motiva mesmo o uso desse item é a chamada bateção, movimento no qual ele é aberto e fechado na batida da música. “Quando isso acontece, é como se eu entrasse na melodia e me tornasse parte da música. Para mim, ele é sinônimo de movimento, leveza e presença.”

Já para o designer gráfico Eduardo Pignata, o acessório é sinônimo de resistência por romper o silêncio a que membros da comunidade são submetidos.

“Somos sempre silenciados no dia a dia. Tenho que ficar me contendo para não sofrer nada na rua. Quando estou num lugar com pessoas parecidas comigo, quero é fazer barulho mesmo”, diz ele, acrescentando que o leque virou sensação nos ambientes em que frequenta.

“Ele está em praticamente todos os eventos LGBT+. Também vejo em shows, festas, espaços abertos e fechados. Está em todos os locais mesmo.” O acessório esteve inclusive na mão de fãs da cantora Madonna durante o show que ela fez em Copacabana, em maio deste ano.

Quando alguém batia o leque, o movimento era repetido por outras dezenas de pessoas, como se o som estivesse produzindo ecos no meio da praia.

A bateção, que já era intensa antes de o show começar, chegou ao auge quando a artista cantou “Hung Up”, momento em que milhares de pessoas abriram e fecharam o objeto ao mesmo tempo.

Frenesi parecido aconteceu durante a “Renaissance Tour”, série de shows que a cantora Beyoncé realizou no ano passado. Na plateia, era possível ver fãs ostentando leques parecidos com aquele que a cantora usava durante as apresentações da música “Heated”.

O aumento da popularidade desses itens pode ser constatada no comércio. “No centro de São Paulo, tem várias barraquinhas vendendo”, diz Pignata. “Hoje em dia, a gente acha eles em todos os lugares.”

Tanto no Brasil quanto no exterior há empresas que se especializaram na venda desse produto. É o caso da Daftboy, startup criada em San Francisco, cidade considerada a meca da cultura LGBT+ nos Estados Unidos.

Fundador do empreendimento, Timothy Cochran diz que eles não são apenas objetos utilitários para aplacar o calor, mas instrumentos de expressão política e identitária.

“São símbolos de talento, confiança e resistência”, afirma o empresário, destacando a versatilidade do acessório “Podem ser usados em posicionamentos políticos, apresentações ou simplesmente para se divertir.”

Cochran explica que eles começaram a se popularizar na comunidade por influência das festas de ballroom, eventos criados por mulheres trans em Nova York, nos anos 1970. As drag queens também tiveram papel importante nesse processo ao incluí-los em suas apresentações. “A luta pelos direitos e visibilidade das drags se mistura com o uso de leques.”

Para esses artistas, o acessório desempenha uma função prática e linguística. Por um lado, ajudam a evitar que a maquiagem se desintegre em meio ao calor das boates. Por outro, funcionam como uma espécie de ponto de exclamação, dando dramaticidade a frases e movimentos.

“Em espaços onde ser ouvido é crucial, eles oferecem uma ferramenta poderosa de comunicação e visibilidade.” E não é de hoje que esses itens são vistos como um meio de comunicação.

No século 19, Jean-Pierre Duvelleroy —fundador de uma grife especializada nesses objetos— publicou o livreto “A Linguagem dos Leques”.

O texto detalha a mensagem por trás de cada movimento feito com eles. Posicioná-los perto da bochecha, por exemplo, significava um “Eu te amo”. Já encostá-los nos lábios era convite para um beijo.

Leques também expressavam a posição social que uma pessoa ocupava na sociedade. Não raro, o objeto era adornado com joias e penas de animais exóticos, o que aumentava o seu valor financeiro e simbólico.

“Inclusive, alguns deles vinham diretamente do Oriente. Eram produtos muito luxuosos. Ter esse acessório na mão era sinônimo de status”, diz Lorenzo Merlino, professor de moda da Faap, a Fundação Armando Alvares Penteado.

Não à toa, a rainha Elizabeth I (1533-1603) –célebre pela preocupação com a própria imagem– era frequentemente retratada em quadros segurando um de seus leques.

Aliás, nas artes plásticas há um sem-número de pinturas que mostram mulheres aristocráticas munidas desse objeto. É o caso de “O Retrato de uma Dama”, de Robert Peake, e “Pronta para o Baile”, de John Bagnold Burgess.

No cinema, o item aparece em filmes como “Maria Antonieta”, de Sofia Coppola, e “Falsária”, de Mike Barker. Estrelado por Scarlett Johansson, o longa é uma adaptação de “O Leque de Lady Windermere”, peça escrita por Oscar Wilde no final do século 19.

De acordo com Merlino, apesar de ter sido associado a mulheres, o utensílio era tradicionalmente usado por homens no Oriente, onde ele surgiu. “Eram objetos extremamente heterossexuais.”

Pinturas de fato atestam isso ao mostrá-los nas mãos de samurais durante batalhas. “Esse cenário muda quando ele chega à Europa, no final da Idade Média. Aí se torna essencialmente ligado às mulheres.”

Para o especialista, o item voltou a ser popular em razão da possibilidade de subverter e questionar padrões de gênero. “Está ligado à presença de pessoas que se sentem bem flertando com questões consideradas do universo feminino, seja nas roupas, no comportamento e na maquiagem.”

Uma dessas pessoas é a drag queen Tchaka, para quem o objeto é uma forma de gerar identificação entre os membros da comunidade. “Na hora que alguém bate ele, a gente sorri, manda uma piscadinha e fala: ‘’Deixa eu bater o meu também’”, diz a artista, acrescentando que o acessório pode ser interpretado de diferentes formas.

“Quando está fechado, parece um instrumento fálico ou uma varinha de condão. Quando faz barulho, representa o poder de pessoas que querem ser vistas e tratadas com respeito. Para mim, o leque é um grito que anuncia a nossa chegada.” Vrau!



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