Por que ‘Ainda Estou Aqui’ é imperdível – 28/10/2024 – Vera Iaconelli
O cartaz de divulgação do filme “Ainda Estou Aqui” resume a personagem interpretada por Fernanda Torres. Enquanto um sorridente Selton Mello, no papel de Rubens Paiva, olha diretamente para a câmera, ladeado por duas crianças adoráveis, a atriz, encarnando Eunice Paiva, está alerta, mirando alhures. São os tanques passando pela orla do Rio de Janeiro nos anos 1970 que, ferindo a paisagem, capturam seu olhar.
O filme se divide entre a família idílica —retratada pela lente da infância de seu caçula, o escritor Marcelo Rubens Paiva— e o mal encarnado, que se avizinha desde a primeira tomada. Nela, o rasante de um helicóptero perturba o banho de mar da protagonista, prenunciando o destino de seu companheiro. Rubens Paiva foi brutalmente assassinado pelo governo brasileiro e seu corpo, muito provavelmente, jogado ao mar.
“Ainda Estou Aqui” tem tantas qualidades que qualquer ponto sobre o qual se escolha falar deixará à sombra outros de igual importância. A belíssima atuação das crianças e dos jovens, a maturidade artística de Selton Mello, a trilha sonora precisa, a fotografia, a direção firme e sensível de Walter Salles, enfim, sobram méritos ao filme.
Mas existe a atuação de Fernanda Torres, algo de outra ordem. A atriz, fenômeno tanto no humor quanto no drama, constrói uma das maiores interpretações vistas no cinema brasileiro. Sustentada pela força do olhar e pelo manejo consciente da delicadeza do corpo, ela dá vida à figura da inquebrantável Eunice Paiva.
Em uma cena que já nasceu antológica, na qual a protagonista está sendo interrogada, Fernanda se multiplica. Nela, pode-se ver a divisão da personagem, que teme por sua integridade física, mas está completamente alerta a qualquer indício do destino da filha e do paradeiro do marido, sobre o qual nada sabe. O autocontrole, que visa antecipar os perigos e proteger os entes queridos, não lhe permite cenas catárticas, restando à plateia dar vazão ao sofrimento contido da personagem. Traga lenço.
Com cinco crianças, uma casa sem provedor financeiro, nos anos 1960, quando a grande meta de uma mulher era constituir família, Eunice tem que se reinventar. Ela enfrenta a ditadura cuidando dos filhos de forma estoica, e por vezes autoritária, e através da lei. Não é isso que as mulheres brasileiras, ainda hoje —e em sua maioria negras e pobres— fazem para sobreviver a um Estado que insiste em agredi-las e ignorá-las? Um Estado que decide quem pode viver e como, fazendo uma diferenciação clara entre homens e mulheres, brancos e negros, pobres e ricos.
Eunice faz parte da descolada classe média alta do Rio de Janeiro, nos áureos tempos da bossa nova —elite para quem a ideia de sair do Brasil para escapar do cerco da ditadura soava exagerada e onde a família Paiva se entendia intocável. A mensagem é clara: a democracia, ainda que precária e territorializada como a nossa, ainda é o que de melhor temos.
O filme nos deixa com o amargo sabor de, 60 anos depois, testemunharmos uma parte da população celebrando o autoritarismo, acreditando na “ditabranda” e justificando a arbitrariedade e a tortura.
Ainda estamos aqui, mas, infelizmente, eles também.
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