‘Malu’ reflete sobre trauma geracional com atriz indomável – 01/11/2024 – Ilustrada

Quando foi capturada por militares durante os anos de chumbo no Brasil, a atriz Malu Rocha não teve dúvidas. Invocou o método do dramaturgo russo Constantin Stanislavski e começou a chorar copiosamente, jurando aos agentes que era a filha de um casal da alta sociedade paulistana e não tinha nada a ver com os artistas que perseguiam —estava no Teatro Oficina por curiosidade. Foi solta.

No filme “Malu”, de Pedro Freire, filho da atriz, a história é contada por uma Malu Rocha embriagada, interpretada por Yara de Novaes, durante uma festa. Apesar de o longa ter nascido da vontade do diretor de homenagear a mãe, não se trata de uma biografia. O filme começa quando a protagonista já está na meia-idade, vivendo com a mãe idosa em uma comunidade carioca e frustrada por sua carreira como atriz de teatro não ter vingado.

Malu recebe, então, a visita da filha, Joana, vivida por Carol Duarte. Na vida real, Joana não existe —a personagem é uma amalgama de Freire e sua irmã, Isadora, conta o diretor, que usa a ficção como artificio não só para retratar a personalidade indomável de Malu, mas também a relação ressentida entre avó, mãe e filha, contaminada por traumas geracionais nunca expurgados.

As camadas que se revelam conforme o passar da trama renderam ao primeiro longa de Freire elogios acalorados em Sundance, principal festival de cinema dos Estados Unidos, e o prêmio de melhor filme no Festival do Rio, que também elegeu Novaes como melhor atriz do ano.

Munido de relatos da mãe, Freire decidiu fazer o filme em 2013, após a morte de Malu por complicações da doença neurodegenerativa de príon. “Ela contava essas histórias do passado como uma tentativa de resistir, de sobreviver. A maioria das coisas que estão no filme realmente aconteceram, ou aconteceram de forma muito parecida”, diz o diretor.

Malu Rocha estreou nos palcos paulistanos pelo Teatro Oficina, na década de 1970, quando a companhia de José Celso Martinez, o Zé Celso, começava a revolucionar a dramaturgia nacional. Foi dirigida por Plínio Marcos e, no cinema, fez filmes como “Geração em Fuga”, de Mauricio Nabuco, e “O Crime do Zé Bigorna”, de Anselmo Durarte.

Na década de 1980, se casou com o ator Herson Capri, pai de Pedro Freire. Com ele e Isadora, filha do relacionamento com o ator Zanoni Ferrite, Malu se mudou para o Rio de Janeiro para escapar do cerco dos militares ao teatro em São Paulo.

“Ela quis tentar a sorte na televisão, por uma questão de grana. O teatro estava dilapidado, e todos os amigos presos ou exilados. Não sabemos o quanto de sua estagnação foi por causa da destruição da cultura nacional. A vida cultural no país era muito rica na década de 1960”, lembra Freire.

A aventura na televisão não durou muito. Segundo Freire, a mãe ficou incomodada com os assédios sexuais constantes de alguns diretores.

O tema da repressão militar permeia a narrativa de “Malu” mais como um causador de males invisível, diferente de “Ainda Estou Aqui”, por exemplo, em que o sequestro de Rubens Paiva pela ditadura é o que dá início a jornada de Eunice por justiça.

O filme se passa quase que inteiro na casa de Malu, em um subúrbio da Baixada Fluminense, onde ela sonha em construir um teatro ou centro cultural para a comunidade —sem nunca concretizar o plano, por falta de dinheiro ou planejamento.

Sua mãe, Lili, vivida por Juliana Carneiro da Cunha, é uma senhora carente, mas conservadora, que repreende constantemente os comportamentos —como o hábito de fumar maconha— de Malu. A filha, por outro lado, tem surtos de raiva contra a mãe, já com pouca idade para se defender. E, da mesma forma que brigam, as duas parecem não conseguir deixar de fazer companhia uma a outra.

“Você não é uma mulher bonita, por isso não consegue trabalhar como atriz”, diz, em determinado momento, Lili à Malu, enquanto ambas separam o feijão. Depois, Lili revela que já ouviu a frase do pai, em outra situação.

Entre Malu e a filha, Joana, o atrito também é constante, mais em desconfortos não ditos do que naqueles verbalizados —escondidos entre olhares, carinhos desajeitados e diálogos agressivos ou vazios demais. O ambiente sempre carreado emocionalmente, sem deixar as cenas pesadas, foi um esforço de Novaes e Duarte atingido graças a longas semanas de ensaio antes das gravações, diz Freire.

“Dirigir atores é uma parte essencial do trabalho do diretor. Fiz isso sozinho, só com as atrizes. Nosso método foi improvisar cada uma das cenas, para só depois decorar o texto para a filmagem”, diz o diretor. Um método que ele próprio aprendeu lendo Stanislavski.



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