Nanã, a orixá que recusou a maternidade – 12/12/2024 – Djamila Ribeiro
Nanã é a senhora dos pântanos, dos mangues e do barro primordial. Ela é realmente uma senhora, pois é a mais velha de todas as orixás e, como tal, representa a sabedoria ancestral e a paciência de quem em um sorriso carrega todos os mistérios do mundo.
Sou sua devota, mas acima disso tenho por ela imenso amor. Dona Antônia, minha avó, era iniciada no candomblé como uma mulher de Nanã e foi em seu colo em Piracicaba, no bairro de São Dimas, que encontrei oásis em minha infância. Lembro-me até hoje do cheiro do seu feijão e das suas mãos que me benziam.
Como muitas avós, Dona Antônia era um doce comigo e com outros netos, mas ai de quem pisasse em seu calo. Ela se mostraria rapidinho uma guerreira que não precisa de homem nenhum para viver sua vida.
Tem um itã interessante nesse sentido, talvez o mais conhecido a seu respeito. Remonta aos tempos ancestrais, quando Nanã já era velha e Ogum, o ferreiro, exercia o domínio sobre os metais. Sem o ferro de Ogum, nada podia ser feito com ferramenta, inclusive o abate de animais que alimentavam toda a comunidade. Ele era e é o Senhor da Faca e quem quisesse uma ferramenta sua deveria contar com sua bênção.
Mas não Nanã. Aquela senhora se contrariava com esse monopólio e dizia a todos que não precisava daquelas ferramentas para viver a sua vida. Aquilo foi visto com desdém, como se fossem palavras ao vento, mas Nanã mostrou a força de sua palavra e nunca mais usou aquelas ferramentas, vivendo muito bem, obrigada. É por isso, inclusive, que em seus rituais não se utiliza nenhum tipo de ferro.
Como muitas de nossas avós, Nanã foi uma mãe complexa. Conta um itã sobre quando ela engravidou. Dela, nasceu Obaluaiyê, cujo domínio sobre as doenças e pestes do mundo já se manifestou logo em seu nascimento, ao nascer repleto de chagas. Nanã então abandona o bebê na entrada de uma gruta, perto da praia. E lá fica Obaluaiyê, até Iemanjá recolhê-lo e lavá-lo com as águas do mar, tratando de suas feridas. Iemanjá, então, adota Obaluaiyê.
Eu gosto de falar sobre a maternidade de Nanã justamente porque essa orixá se recusou a ser mãe. As pesquisadoras Juliana Letícia da Silva Oliveira e Isabela Saraiva de Queiroz nos oferecem uma crítica interessante sobre a maternidade de Nanã no texto “Maternidade a partir da mitologia iorubá: Nanã, Iemanjá, Oxum e Iansã”.
“A relação de Nanã e Omulu [Obaluaiyê] pode nos remeter às histórias de mulheres-mães que, por diversos motivos, experimentam um sofrimento e não podem ou não desejam cuidar dos filhos gerados. Vêm apontar um ponto delicado da maternidade, que não é feita só de alegria, e disso não se fala entre as famílias, nos veículos de informação e até entre os profissionais de saúde, que podem se surpreender com essa realidade. Se para o cristianismo ser mãe é uma dádiva que Maria não questiona, Nanã nos mostra que a alegria em ser mãe não é um dado natural e, mesmo assim, não é menos honrada enquanto iyabá.”
Assim como Nanã escolheu viver sem as ferramentas de ferro de Ogum, assim como Nanã escolheu não ser mãe, mas ser avó, as mulheres brasileiras muitas vezes precisam encontrar maneiras de resistir e criar caminhos alternativos, mesmo em cenários adversos. De todo modo, no candomblé temos uma orixá para acendermos uma vela quando não correspondemos ao que se espera do “ser mãe”.
Eu escrevi “Cartas para Minha Avó” quando encontrei morada nos mistérios dessa senhora. Anos mais tarde, em Portugal, Pilar del Río me apresentou “Carta para Josefa, Minha Avó”, escrita por José Saramago, em 1971. Em uma parte, como se dissesse à minha Antônia, o escritor afirma:
“Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo –e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal”.
E prossegue: “mas por que, avó, por que te sentas tu na soleira da porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: ‘o mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!’. Isto que eu não entendo –mas a culpa não é tua”.
Não o culpo por não entender. Tal qual o pântano, a senhora Nanã é mesmo cheia de mistérios.
Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com dois meses de assinatura digital grátis.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.
Post Comment