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Adolescência, uma série perturbadora
por Dora Incontri
Adolescência é uma série inglesa na Netflix, que está sendo comentada, aclamada e analisada mundo afora. São quatro episódios, ao todo quatro horas, durante as quais, mal respiramos. E as lágrimas também não param. Muito bem roteirizado, dirigido, filmado. E os atores, sobretudo o pai (Stephen Graham) e o menino (Owen Cooper), não parecem atores, mas é como se fossem os próprios personagens filmados ao vivo, na adrenalina da ação. Choramos com os dois, o tempo todo.
E a história, todo mundo já sabe. Um menino de 13 anos matou uma colega da escola a facadas e é preso em sua própria casa, para espanto e desespero da família. Embora tão curto, tão denso, tão rápido, é possível tratarmos de várias camadas que aparecem na realidade brutal da série, que não é baseada num caso real específico, mas é retrato de muitos casos ocorridos no mundo: crianças e adolescentes que se matam, matam outros, se mutilam… instigados, viciados, hipnotizados em redes sociais, em sites tenebrosos de racismo, misoginia e discursos de ódio.
Nesta semana mesmo, tivemos um acontecido com uma menina de 8 anos, no Distrito Federal, que inalou desodorante, em resposta a um desafio no TIC-TOC e foi encontrada morta pelo avô.
A série toca em todos os pontos que nos assombram, com uma densidade de emoção, difícil de passar ao largo. As crianças e os adolescentes em solidão, trancafiados no quarto, mas cooptados pelas redes, pelos sites, por influencers, por sociopatas, por grupos radicais. Os pais, por melhores que pretendam ser – e nesse caso da série, não havia violência nem abuso – estão trabalhando como loucos, no sistema capitalista, que lhes rouba o tempo, a cabeça, a vida e a presença significativa com os filhos. E estes ficam à deriva. Negligenciados, não tocados, não olhados, nas mãos de criminosos. E dos piores de todos, os donos das Big Techs, que dominam os espaços mentais de grande parte da humanidade, apenas por ganância infinita de lucro, numa terra sem lei, que é o mundo virtual. E não querem a regulação das redes.
Mas há outros aspectos que a série toca com sensibilidade precisa: por exemplo, a constituição da masculinidade, esta mesma, tóxica, baseada na afirmação da superioridade da força, da atração brutalizada pela mulher e, ao mesmo tempo pelo desprezo por tudo o que tem alguma feminilidade, inclusive dentro do próprio menino-homem. O que se chama de masculinismo – um movimento que não pode ser equiparado ao feminismo, este que pretende no geral a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Há os que defendem um masculinismo que seja equivalente ao feminismo. Mas o masculinismo que circula nesse mundo, que corre a passos largos para uma nova Idade Média, é uma tendência que proclama a superioridade dos homens, a sujeição das mulheres e a violência contra elas e contra homossexuais e transexuais. Elon Musk é o exemplo típico. Teve 14 filhos homens, cujo gênero foi programado geneticamente. Um filho, que se assumiu como uma jovem trans, tem denunciado o pai, com quem rompeu completamente.
Uma das coisas chocantes do filme, que não especifica essa questão, e poucos talvez saibam disso: a história se passa na Inglaterra, onde não há um Estatuto da Criança e do Adolescente como no Brasil. Assim como não há nos Estados Unidos. Então, um menino que pratique um crime de homicídio aos 13 anos é julgado como um adulto e pode ser condenado à prisão perpétua. No Brasil, não. Há oportunidade de refazimento da vida, apesar de todas as circunstâncias sociais que dificultam isso. Os anglo-saxões, regidos pela herança protestante e, pior, às vezes, a específica calvinista (Calvino condenou à morte um adolescente de 16 anos!), pela interpretação literal da Bíblia e fincada mais no Velho Testamento do que na misericórdia amorosa de Jesus, são muito mais rígidos legalmente, e não têm sequer a influência de um Rousseau, como temos nós no ECA. O grande educador genebrino, justo em oposição ao calvinismo de sua cidade, considerava que crianças e adolescentes não podiam ser responsabilizados moralmente por seus atos, e portanto criminalmente, porque ainda estão em desenvolvimento físico e psíquico. A cena pungente da série, que demonstra a validade dessa ideia rousseauniana é quando Jamie, o menino, confronta a psicóloga e pergunta desesperado: “você gosta de mim, não como profissional, como pessoa?” O que queria ele, do fundo de sua adolescência solitária? Apenas ser amado.
Outro ponto que aparece no cenário do drama narrado: a escola. Gosto quando o investigador, numa interpretação brilhante de Ashley Walters, fala que a escola parece “um curral”. Nada mais verdadeiro. Os professores perdidos, os alunos infelizes, uma educação formatadora e ineficaz, totalmente despreparada para enfrentar um mundo tão complexo como o nosso. Pelo menos um alívio na história é quando esse investigador, cujo filho também estava no mesmo colégio que Jamie, tocado por toda a situação, rapidamente faz uma autoavaliação de sua postura de pai e espera o menino na saída, oferece carona, diz que o ama. Assim, devemos correr a fazer todos, porque só o amor pode curar essa sociedade doente. Um amor ativo, atencioso, consciente, que cuida e toca o outro. É do que crianças e adolescentes precisam. Eles estão entregues aos piores criminosos do mundo. Não vamos reagir?
Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.
Adolescência, uma série perturbadora
por Dora Incontri
Adolescência é uma série inglesa na Netflix, que está sendo comentada, aclamada e analisada mundo afora. São quatro episódios, ao todo quatro horas, durante as quais, mal respiramos. E as lágrimas também não param. Muito bem roteirizado, dirigido, filmado. E os atores, sobretudo o pai (Stephen Graham) e o menino (Owen Cooper), não parecem atores, mas é como se fossem os próprios personagens filmados ao vivo, na adrenalina da ação. Choramos com os dois, o tempo todo.
E a história, todo mundo já sabe. Um menino de 13 anos matou uma colega da escola a facadas e é preso em sua própria casa, para espanto e desespero da família. Embora tão curto, tão denso, tão rápido, é possível tratarmos de várias camadas que aparecem na realidade brutal da série, que não é baseada num caso real específico, mas é retrato de muitos casos ocorridos no mundo: crianças e adolescentes que se matam, matam outros, se mutilam… instigados, viciados, hipnotizados em redes sociais, em sites tenebrosos de racismo, misoginia e discursos de ódio.
Nesta semana mesmo, tivemos um acontecido com uma menina de 8 anos, no Distrito Federal, que inalou desodorante, em resposta a um desafio no TIC-TOC e foi encontrada morta pelo avô.
A série toca em todos os pontos que nos assombram, com uma densidade de emoção, difícil de passar ao largo. As crianças e os adolescentes em solidão, trancafiados no quarto, mas cooptados pelas redes, pelos sites, por influencers, por sociopatas, por grupos radicais. Os pais, por melhores que pretendam ser – e nesse caso da série, não havia violência nem abuso – estão trabalhando como loucos, no sistema capitalista, que lhes rouba o tempo, a cabeça, a vida e a presença significativa com os filhos. E estes ficam à deriva. Negligenciados, não tocados, não olhados, nas mãos de criminosos. E dos piores de todos, os donos das Big Techs, que dominam os espaços mentais de grande parte da humanidade, apenas por ganância infinita de lucro, numa terra sem lei, que é o mundo virtual. E não querem a regulação das redes.
Mas há outros aspectos que a série toca com sensibilidade precisa: por exemplo, a constituição da masculinidade, esta mesma, tóxica, baseada na afirmação da superioridade da força, da atração brutalizada pela mulher e, ao mesmo tempo pelo desprezo por tudo o que tem alguma feminilidade, inclusive dentro do próprio menino-homem. O que se chama de masculinismo – um movimento que não pode ser equiparado ao feminismo, este que pretende no geral a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Há os que defendem um masculinismo que seja equivalente ao feminismo. Mas o masculinismo que circula nesse mundo, que corre a passos largos para uma nova Idade Média, é uma tendência que proclama a superioridade dos homens, a sujeição das mulheres e a violência contra elas e contra homossexuais e transexuais. Elon Musk é o exemplo típico. Teve 14 filhos homens, cujo gênero foi programado geneticamente. Um filho, que se assumiu como uma jovem trans, tem denunciado o pai, com quem rompeu completamente.
Uma das coisas chocantes do filme, que não especifica essa questão, e poucos talvez saibam disso: a história se passa na Inglaterra, onde não há um Estatuto da Criança e do Adolescente como no Brasil. Assim como não há nos Estados Unidos. Então, um menino que pratique um crime de homicídio aos 13 anos é julgado como um adulto e pode ser condenado à prisão perpétua. No Brasil, não. Há oportunidade de refazimento da vida, apesar de todas as circunstâncias sociais que dificultam isso. Os anglo-saxões, regidos pela herança protestante e, pior, às vezes, a específica calvinista (Calvino condenou à morte um adolescente de 16 anos!), pela interpretação literal da Bíblia e fincada mais no Velho Testamento do que na misericórdia amorosa de Jesus, são muito mais rígidos legalmente, e não têm sequer a influência de um Rousseau, como temos nós no ECA. O grande educador genebrino, justo em oposição ao calvinismo de sua cidade, considerava que crianças e adolescentes não podiam ser responsabilizados moralmente por seus atos, e portanto criminalmente, porque ainda estão em desenvolvimento físico e psíquico. A cena pungente da série, que demonstra a validade dessa ideia rousseauniana é quando Jamie, o menino, confronta a psicóloga e pergunta desesperado: “você gosta de mim, não como profissional, como pessoa?” O que queria ele, do fundo de sua adolescência solitária? Apenas ser amado.
Outro ponto que aparece no cenário do drama narrado: a escola. Gosto quando o investigador, numa interpretação brilhante de Ashley Walters, fala que a escola parece “um curral”. Nada mais verdadeiro. Os professores perdidos, os alunos infelizes, uma educação formatadora e ineficaz, totalmente despreparada para enfrentar um mundo tão complexo como o nosso. Pelo menos um alívio na história é quando esse investigador, cujo filho também estava no mesmo colégio que Jamie, tocado por toda a situação, rapidamente faz uma autoavaliação de sua postura de pai e espera o menino na saída, oferece carona, diz que o ama. Assim, devemos correr a fazer todos, porque só o amor pode curar essa sociedade doente. Um amor ativo, atencioso, consciente, que cuida e toca o outro. É do que crianças e adolescentes precisam. Eles estão entregues aos piores criminosos do mundo. Não vamos reagir?
Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.
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