Gastronomia não pode se render à ditadura da ignorância – 12/11/2024 – Cozinha Bruta

O que a eleição de Donald Trump e o Coco Bambu têm em comum? Resposta simples: o triunfo da estupidez da maioria.

Em 7 de novembro, um dia após o anúncio da vitória de Trump na corrida presidencial americana, o colega Daniel Buarque publicou uma resenha com o seguinte título: “Tudo no Coco Bambu, sucesso de público, parece convergir para o óbvio”.

Para contextualizar, o Coco Bambu foi escolhido como melhor restaurante para ir com a família no especial O Melhor de São Paulo – Gastronomia, na “eleição” por “voto popular” (pesquisa Datafolha).

Daniel, na condição de profissional especializado, diverge da opinião popular. Diz que o restaurante peca pela falta de ousadia, com um cardápio tão extenso quanto monótono, de combinações pouco sutis de ingredientes.

Não posso opinar sobre a comida, pois não vou ao Coco Bambu há muitos e muitos anos. Não é o tipo de restaurante que me atrai, justamente por ser esse ímã da família brasileira mais careta que existe.

Na real, pouco importa que eu e o Daniel Buarque discordemos diametralmente das multidões. Elas venceram. Nós perdemos. Estamos derrotados.

O ressurgimento de Trump foi uma demonstração inequívoca da força das massas defensoras da ignorância, da intolerância e da truculência.

Como apontou Joel Pinheiro da Fonseca nesta terça (12), “…a ideia de que especialistas podem contrariar a vontade da maioria era, no passado, uma obviedade; hoje é contestada.”.

As elites intelectuais, com sua empáfia inegável, ficaram falando ao vento. Ocorre na política, nas artes, no debate público em geral. E, decerto, na gastronomia.

Voltemos ao Melhor de São Paulo. Por uma decisão editorial da Folha, são apresentadas duas listas distintas: a do Datafolha e outra feita por jurados que trabalham de alguma forma com alimentação e/ou comunicação.

Na edição deste ano, a única convergência das duas listas, em restaurantes, foi o Mocotó –eleito o melhor brasileiro por especialistas e populares. Em todo o resto, grita a discrepância de visões de mundo.

Enquanto a banca ilustrada escolheu casas de zero apelo às massas, como Metzi, Shihoma e Aiô, o júri popular, usando a expressão de Daniel Buarque, convergiu para o óbvio: Fogo de Chão, Famiglia Mancini, Madero, Almanara, Bolinha, Paris 6 e o já citado Coco Bambu.

O tamanho do enrosco não é pequeno.

Instalou-se um clima de hostilidade aberta contra fatias da sociedade que se julgam mais aptas do que o restante para opinar sobre isso ou aquilo. Nós, da imprensa, somos alvos preferenciais dessa animosidade.

Merecemos? Muito. Então a razão está com eles? Nem a pau.

No caso específico da gastronomia, o público tem preferido ouvir a si mesmo –nos rankings colaborativos como o Tripadvisor e o próprio Google– e influenciadores careteiros que postam vídeos com cascatas de queijo derretido, hot-dogs de seis salsichas e bifes do tamanho da mesa de jantar.

Não importa que essas pessoas sejam pagas, não raro sorrateiramente, para fazer propaganda de bares e restaurantes. É gente como a gente, não o pessoal arrogante que trabalha para “a mídia”.

De volta ao Joel: ele, como quase todo mundo que tem analisado a situação, acerta no diagnóstico. É um diagnóstico bem evidente, aliás.

Há um fosso abismal a separar quem preza o conhecimento e a civilidade, não necessariamente gente de esquerda, da galera seduzida pelo populismo individualista beligerante tacanho de Trump, Bolsonaro, Marçal e assemelhados. Todas as linhas de comunicação foram cortadas.

A questão que paira é: existe alguém interessado de fato em reconstruir essas pontes?

Joel escreve que a conciliação viria com a “persuasão em pé de igualdade com aqueles que queremos persuadir”. Faltou dizer em que termos. O que seria o tal “pé de igualdade”.

Para ficar apenas na seara da comida: o Daniel Buarque deveria tratar com mais consideração o Coco Bambu, pois ele é um favorito dos leitores?

Ou deveria, sabe-se lá como, tentar convencê-los –”em pé de igualdade”, no papo reto, mas sem melindrar ninguém– de estão bizarramente equivocados?

Deveria a imprensa especializada dar mais espaço (ainda) ao Outback, ao Habib’s, ao chope de metro e à double caipirinha do bar com área kids da família brasileira, mendigando a audiência de quem a hostiliza?

Deveriam os jornalistas de gastronomia renegar seu mundinho exclusivo e elitista e falso em que todos se conhecem e todos fingem se ajudar enquanto se apunhalam pelas costas?

Estou muito pessimista. Não vejo diálogo possível, não enquanto eu estiver vivo e mais ou menos lúcido.

O lado de lá quer nos aniquilar. O lado de cá, se estender a mão em boa vontade –para evangélicos fundamentalistas, para o agro ogro, para terraplanistas, para fãs do Coco Bambu, públicos com pontos de intersecção– só vai precipitar a aniquilação.

Render-se à ditadura da ignorância não deveria ser uma opção posta sobre a mesa.

Partir para o confronto agora tampouco é inteligente. Estamos na lona e somos minoria.

Minha prioridade, por ora, é cuidar da sobrevivência física. Quem sabe algum dia a maré possa virar.


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