EUA: Apoio a justiceiros e descrença na Justiça crescem – 11/12/2024 – Lúcia Guimarães

Dois homens de 26 anos ilustram o declínio da confiança na Justiça nos Estados Unidos e o apoio crescente à ideia de levá-la a cabo com as próprias mãos.

Daniel Penny, ex-fuzileiro naval, foi absolvido por jurados nova-iorquinos da acusação de homicídio com negligência de um morador em situação de rua, com histórico de doença mental, que provocava passageiros dentro de um metrô. Penny imobilizou Jordan Neely e o sufocou até a morte por longos seis minutos, sob protestos de testemunhas.

De nada adiantou o instrutor de Penny na Marinha ter dito em depoimento que ele tinha sido bem treinado na forma correta de aplicar imobilização não letal. Americanos de outros estados se ofereceram para financiar a defesa de Penny, que posou para comemorações num bar, como se tivesse escapado de uma multa de trânsito.

O acusado do segundo crime, Luigi Mangione, premeditou e explicou como um ato de heroísmo a fria execução de Brian Thompson, CEO da maior seguradora de saúde americana, no centro de Manhattan. Antes de Mangione ser capturado num McDonald’s, a quase 400 quilômetros do local do crime, sua fama de Robin Hood já havia explodido.

Embora aAmazon tenha retirado toda a mercadoria, era possível, nesta quarta-feira (11), comprar moletons, camisetas e canecas celebrando Mangione, herdeiro de uma influente família do estado de Maryland e engenheiro de computação com a melhor educação que a elite americana pode comprar.

No fim de semana, um grupo de jovens disputou um concurso de sósias de Mangione numa praça do bairro do Village. O vencedor ganhou US$ 50. No seu caso, além da juventude, ousadia e eloquência, a fama de justiceiro é alimentada por uma rara unanimidade neste país tão dividido por rancores: o ódio às seguradoras de saúde.

No crime no metrô, cometido diante dos passageiros, a simpatia pelo autor pode ser explicada pela frustração com a incapacidade do governo municipal de abrigar e retirar dos transportes uma população de rua com alto índice de transtornos psiquiátricos.

A reação aos dois crimes é indissociável do ecossistema digital. Como todo cidadão é hoje um narrador audiovisual instantâneo, a rede social foi invadida por depoimentos de pessoas que tiveram assistência médica negada pelas seguradoras ou perderam parentes por decisões tomadas por burocratas sem rosto. Nenhuma outra democracia desenvolvida pune tanto seus habitantes por adoecer.

A vítima de Daniel Penny era um homem negro pobre que imitava Michael Jackson e tinha seus fãs entre os apressados nova-iorquinos. Já a vítima de Luigi Mangione era um milionário na mira do Departamento de Justiça acusado de usar informações privilegiadas no mercado financeiro.

A emergência de Donald Trump não explica, mas apressou o sentimento de que o clichê fundador da república —”ninguém está acima da lei”— é letra morta. O presidente eleito acaba de ganhar impunidade por dois crimes federais que cometeu, a tentativa de roubar a eleição de 2020 e o roubo de documentos secretos do governo.

Trump, que promete governar como autocrata, colocou seu capataz para dar recados nos corredores do poder Legislativo. Depois de gastar US$ 250 milhões para eleger o vencedor, Elon Musk tem ameaçado republicanos que não obedecerem Trump de financiar campanhas eleitorais adversárias em 2026.

Muitos americanos parecem ignorar o quanto esta distopia é construída nas urnas.


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