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23 Apr 2025, Wed

um crime que chocou Três Passos e transformou o debate sobre proteção infantil

Bernardo Boldrini - Foto: Arquivo Pessoal


Em abril de 2014, a pequena cidade de Três Passos, no noroeste do Rio Grande do Sul, foi palco de um dos crimes mais chocantes da história recente do Brasil. O desaparecimento de Bernardo Uglione Boldrini, um menino de 11 anos, desencadeou uma investigação que revelou uma trama cruel envolvendo seu pai, Leandro Boldrini, sua madrasta, Graciele Ugulini, e dois cúmplices, Edelvania e Evandro Wirganovicz. O corpo de Bernardo, encontrado dez dias após seu sumiço, enterrado em uma cova às margens do rio Mico, em Frederico Westphalen, expôs não apenas a brutalidade do assassinato, mas também as falhas no sistema de proteção à infância. Mais de uma década depois, o caso continua a gerar debates sobre justiça, responsabilidade familiar e políticas públicas, enquanto a anulação do julgamento de Leandro Boldrini mantém a história em aberto.

Bernardo era conhecido em Três Passos por sua personalidade alegre e comunicativa. Contudo, sua vida familiar estava longe de ser tranquila. Após a morte de sua mãe, Odilaine Uglione, em 2010, o menino passou a viver com o pai, um médico respeitado na região, e a madrasta, uma enfermeira que assumiu um papel central na dinâmica familiar. Relatos de vizinhos, professores e até do próprio Bernardo apontavam para um ambiente de tensão, com sinais de negligência e maus-tratos. Apesar de denúncias feitas ao Conselho Tutelar e ao Ministério Público, nenhuma medida efetiva foi tomada para proteger o menino, permitindo que a tragédia se concretizasse.

O assassinato de Bernardo, executado com uma superdosagem de midazolam, um sedativo de uso controlado, foi planejado com frieza pelos quatro envolvidos. A descoberta do crime, impulsionada pela confissão de Edelvania Wirganovicz, chocou o Brasil e colocou Três Passos no centro das atenções nacionais. O julgamento de 2019, um marco na justiça gaúcha, condenou os responsáveis, mas a anulação da sentença de Leandro Boldrini, em 2021, reacendeu discussões sobre a eficácia do sistema judiciário. A morte de Edelvania, em 2025, em circunstâncias ainda sob investigação, trouxe novas camadas de complexidade a um caso que permanece vivo na memória coletiva.

Contexto familiar e os primeiros alertas ignorados

A trajetória de Bernardo Boldrini foi marcada por perdas e conflitos. Nascido em 2003, ele viveu seus primeiros anos ao lado da mãe, Odilaine Uglione, uma enfermeira dedicada que mantinha uma relação próxima com o filho. Em 2010, Odilaine foi encontrada morta em uma clínica médica em Três Passos, em um caso registrado como suicídio, embora investigações posteriores levantassem dúvidas sobre as circunstâncias. A morte da mãe foi um divisor de águas na vida de Bernardo, que passou a viver com o pai, Leandro Boldrini, e, posteriormente, com Graciele Ugulini, que se tornou sua madrasta.

Bernardo Boldrino e Edelvania
Bernardo Boldrino e Edelvania – Foto: reprodução Globo

A convivência com Graciele foi problemática desde o início. Professores da escola onde Bernardo estudava notaram mudanças em seu comportamento, com sinais de tristeza e isolamento. O menino, antes extrovertido, começou a relatar episódios de negligência e violência psicológica em casa. Em uma carta comovente, escrita à mão, Bernardo expressou o desejo de morar com outra família, descrevendo o sofrimento que enfrentava. Essas denúncias chegaram ao Conselho Tutelar e ao Ministério Público, mas a falta de ação concreta por parte das autoridades locais permitiu que a situação se agravasse, culminando no crime.

A herança deixada por Odilaine desempenhou um papel crucial no caso. Investigadores apontaram que Leandro e Graciele viam Bernardo como um obstáculo para o controle dos bens da família, o que intensificou os conflitos. A ausência de intervenção das instituições responsáveis, como o Conselho Tutelar, expôs a vulnerabilidade do menino e evidenciou falhas sistêmicas que seriam amplamente debatidas após o assassinato. O caso Bernardo tornou-se um símbolo das lacunas no sistema de proteção à infância, levantando questões sobre a responsabilidade de órgãos públicos em casos de suspeita de abuso.

O planejamento meticuloso do crime

O assassinato de Bernardo foi executado com um nível de premeditação que chocou até mesmo os investigadores mais experientes. Em 4 de abril de 2014, Graciele Ugulini levou o menino a Frederico Westphalen, cidade vizinha a Três Passos, sob o pretexto de visitar uma benzedeira. Durante o trajeto, Bernardo recebeu uma dose letal de midazolam, um sedativo ao qual Graciele, por sua formação como enfermeira, tinha acesso. A superdosagem causou a morte do menino, cujo corpo foi colocado em um saco plástico para transporte.

Edelvania Wirganovicz, amiga próxima de Graciele, teve um papel ativo na execução do plano. Ela ajudou a transportar o corpo e escolheu o local onde Bernardo seria enterrado, uma área rural às margens do rio Mico. Evandro Wirganovicz, irmão de Edelvania, foi responsável por cavar uma cova vertical de cerca de 1,5 metro de profundidade, projetada para dificultar a descoberta do corpo. Leandro Boldrini, por sua vez, manteve sua rotina como médico, chegando a registrar um boletim de ocorrência falso sobre o desaparecimento do filho, em uma tentativa de desviar as suspeitas.

A ocultação do corpo foi planejada com cuidado. A cova foi coberta com terra e vegetação, tornando-a quase imperceptível. No entanto, a confissão de Edelvania, pressionada pelas investigações, levou as autoridades ao local exato em 14 de abril de 2014. A descoberta do corpo revelou a extensão da crueldade do crime, que envolveu não apenas violência física, mas também manipulação e planejamento detalhado. A frieza dos envolvidos, especialmente de Leandro, que continuou sua vida normalmente após o assassinato, chocou a sociedade e intensificou a comoção nacional.

Principais marcos do caso Bernardo

  • Desaparecimento de Bernardo em 4 de abril de 2014, em Três Passos.
  • Descoberta do corpo em 14 de abril de 2014, em Frederico Westphalen.
  • Prisão de Graciele Ugulini e Edelvania Wirganovicz em 10 de abril de 2014.
  • Prisão de Leandro Boldrini e Evandro Wirganovicz em 14 de abril de 2014.
  • Julgamento dos quatro envolvidos entre 11 e 15 de março de 2019.
  • Anulação do julgamento de Leandro Boldrini em dezembro de 2021.
  • Morte de Edelvania Wirganovicz em 22 de abril de 2025, sob investigação.

A investigação que revelou a verdade

A Polícia Civil de Três Passos assumiu o caso logo após o registro do desaparecimento de Bernardo. As primeiras suspeitas recaíram sobre Leandro Boldrini, cujo depoimento apresentava inconsistências. A pressão da comunidade, aliada à intensa cobertura da imprensa, acelerou as investigações. Em 10 de abril de 2014, Graciele Ugulini foi presa, inicialmente negando qualquer envolvimento. No entanto, evidências como registros telefônicos e testemunhos começaram a apontar para sua participação no crime.

Edelvania Wirganovicz também foi detida no mesmo dia e, sob pressão, confessou sua participação, indicando o local onde o corpo de Bernardo estava enterrado. Sua colaboração foi decisiva para a recuperação dos restos mortais do menino, encontrados em 14 de abril de 2014. Evandro Wirganovicz, responsável por cavar a cova, foi preso na mesma data, enquanto Leandro Boldrini, apontado como o mentor intelectual, também foi detido. A análise pericial confirmou que a causa da morte foi intoxicação aguda por midazolam, administrado intencionalmente.

A investigação revelou um padrão de maus-tratos sofridos por Bernardo ao longo de meses. Laudos psicológicos e médicos indicaram sinais de violência física e emocional, corroborando as denúncias feitas pelo menino antes de sua morte. O Ministério Público classificou o crime como homicídio quadruplamente qualificado, destacando agravantes como motivo torpe, meio cruel, impossibilidade de defesa da vítima e violência contra menor de 14 anos. A complexidade do caso exigiu meses de preparação para o julgamento, que se tornaria um marco na história judicial do Rio Grande do Sul.

O julgamento histórico de 2019

Entre 11 e 15 de março de 2019, o Tribunal do Júri de Três Passos realizou o julgamento dos quatro envolvidos no caso Bernardo, um evento que mobilizou o Brasil. Presidido pela juíza Sucilene Engler, o julgamento reuniu mais de 50 horas de depoimentos, vídeos, áudios e provas periciais. A cobertura da imprensa transformou o processo em um marco midiático, com transmissões ao vivo e debates intensos nas redes sociais.

Graciele Ugulini foi condenada a 34 anos e 7 meses de prisão por homicídio quadruplamente qualificado e ocultação de cadáver. A sentença destacou sua responsabilidade direta na administração do midazolam e na execução do plano. Leandro Boldrini recebeu 33 anos e 8 meses de reclusão, sendo apontado como o mentor intelectual. A juíza enfatizou sua falta de remorso e a gravidade de sua conduta como pai da vítima. Edelvania Wirganovicz foi sentenciada a 22 anos e 10 meses, enquanto Evandro Wirganovicz, considerado cúmplice secundário, recebeu 9 anos e 6 meses, cumprindo parte da pena em regime semiaberto.

O julgamento foi marcado por momentos de forte emoção, especialmente durante a apresentação de vídeos e cartas de Bernardo, que revelavam seu sofrimento. A condenação dos envolvidos trouxe um senso de justiça para parte da sociedade, mas também levantou questionamentos sobre a prevenção de casos semelhantes. A anulação do julgamento de Leandro, anos depois, reacendeu a indignação de muitos que acompanharam o caso.

Repercussão social e impacto cultural

O caso Bernardo Boldrini transcendeu as fronteiras de Três Passos, tornando-se um dos crimes mais emblemáticos do Brasil. A história do menino, que tentou buscar ajuda antes de ser assassinado, sensibilizou milhões de pessoas e gerou manifestações em cidades gaúchas. A imprensa dedicou ampla cobertura ao caso, com reportagens, documentários e programas de televisão explorando os detalhes da tragédia. Livros e séries inspirados no crime retrataram suas implicações sociais, embora algumas produções tenham sido criticadas por sensacionalismo.

Nas redes sociais, o caso mobilizou campanhas por justiça e reformas no sistema de proteção à infância. Hashtags como #JustiçaPorBernardo viralizaram em 2014 e 2019, durante o julgamento. Em Três Passos, a memória de Bernardo permanece viva por meio de memoriais e placas erguidos em sua homenagem. A cidade, marcada pela tragédia, busca superar o estigma enquanto investe em iniciativas comunitárias para proteger suas crianças.

A história de Bernardo também influenciou mudanças legislativas. Em 2016, a Lei 13.257, conhecida como Marco Legal da Primeira Infância, foi sancionada, estabelecendo diretrizes para a proteção de crianças de 0 a 6 anos. Embora voltada para uma faixa etária inferior à de Bernardo, a lei reflete um esforço para priorizar a infância em políticas públicas, um legado indireto do caso. A tragédia destacou a importância de ouvir as crianças e de fortalecer os mecanismos de denúncia e intervenção.

Falhas no sistema de proteção à infância

O assassinato de Bernardo expôs graves lacunas no sistema de proteção à infância no Brasil. Antes de sua morte, o menino buscou ajuda em diversas instâncias, incluindo a escola, o Conselho Tutelar e o Ministério Público. Suas denúncias, no entanto, foram subestimadas, permitindo que ele permanecesse em um ambiente de risco. Professores relataram sinais de sofrimento, mas a falta de coordenação entre os órgãos responsáveis impediu ações efetivas.

Após a tragédia, o Rio Grande do Sul implementou medidas para fortalecer a rede de proteção infantil. Em 2015, o governo estadual lançou o Programa de Proteção à Criança e ao Adolescente, que ampliou a capacitação de conselheiros tutelares e educadores. Canais de denúncia anônima, como o Disque 100, foram incentivados, embora sua implementação enfrente desafios em áreas rurais. Especialistas apontam que casos como o de Bernardo exigem uma abordagem integrada, envolvendo escolas, serviços de saúde e o sistema judiciário.

As falhas no caso Bernardo também destacaram a importância de ouvir as crianças. Muitas vezes, suas denúncias são desconsideradas em situações de conflito familiar, o que pode agravar situações de risco. A burocracia e a falta de recursos continuam sendo obstáculos para a efetividade das políticas de proteção, especialmente em cidades pequenas como Três Passos, onde os serviços são limitados.

Medidas para prevenir casos de violência infantil

  • Capacitação de professores e conselheiros tutelares para identificar sinais de abuso.
  • Ampliação de canais de denúncia anônima, como o Disque 100.
  • Integração entre escolas, serviços de saúde e assistência social.
  • Investimento em programas de prevenção à violência doméstica.
  • Criação de protocolos para intervenção rápida em casos de suspeita de maus-tratos.

A trajetória de Edelvania Wirganovicz no sistema prisional

Edelvania Wirganovicz, uma das figuras centrais do caso, ingressou no sistema penitenciário em abril de 2014, após sua prisão. Inicialmente, ela foi mantida em regime fechado no Presídio Feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre. Em maio de 2022, após cumprir mais de 9 anos de sua pena, Edelvania obteve progressão para o regime semiaberto, sendo transferida para o Instituto Penal Feminino de Porto Alegre. A decisão considerou sua boa conduta e laudos psicológicos favoráveis.

Em 2023, Edelvania conseguiu prisão domiciliar com monitoramento eletrônico, devido à falta de vagas em unidades adequadas ao regime semiaberto. A medida, concedida em 10 de outubro de 2023, foi revogada em 20 de fevereiro de 2025, após recurso do Ministério Público, que alegou que ela não havia cumprido 50% da pena. Edelvania retornou ao Instituto Penal Feminino, onde foi encontrada sem vida em 22 de abril de 2025, com sinais de asfixia. O caso está sob investigação, levantando questões sobre a segurança em presídios de alta repercussão.

A morte de Edelvania reacendeu debates sobre as condições do sistema prisional gaúcho. O Instituto Penal Feminino, com capacidade para 96 internas, enfrenta desafios como superlotação e recursos limitados. Apesar de equipado com câmeras de monitoramento, incidentes como esse revelam vulnerabilidades nos protocolos de segurança. A Superintendência dos Serviços Penitenciários informou que está revisando os procedimentos internos, mas a pressão por reformas estruturais permanece.

Desafios do sistema prisional gaúcho

O sistema prisional do Rio Grande do Sul enfrenta problemas crônicos que impactam a gestão de casos como o de Bernardo Boldrini. Unidades como o Instituto Penal Feminino de Porto Alegre, onde Edelvania cumpriu parte de sua pena, operam com capacidade limitada e recursos escassos. A superlotação, a falta de vagas e a precariedade de algumas instalações dificultam a ressocialização e a segurança dos apenados.

Graciele Ugulini, que cumpre pena em regime fechado no Presídio Madre Pelletier, enfrenta condições específicas devido à gravidade de seu crime. Condenadas por crimes hediondos muitas vezes requerem celas isoladas para garantir sua segurança, o que aumenta a pressão sobre o sistema. A gestão de apenados em casos de grande comoção exige um equilíbrio entre punição, proteção e ressocialização, um desafio que o sistema prisional gaúcho ainda busca superar.

A morte de Edelvania, em 2025, destacou a necessidade de maior investimento em segurança e monitoramento. Apesar de o Instituto Penal Feminino contar com câmeras e agentes treinados, incidentes como esse expõem falhas nos protocolos. A Susepe informou que está investigando o caso, mas a sociedade cobra mudanças mais amplas para garantir a segurança e a eficácia do sistema prisional.

O legado de Bernardo Boldrini

A tragédia de Bernardo Boldrini deixou marcas profundas na sociedade gaúcha e brasileira. Sua história inspirou iniciativas comunitárias, como grupos de apoio a crianças em situação de risco, e reforçou a importância de ouvir as vítimas de violência doméstica. Em Três Passos, escolas adotaram programas de conscientização, ensinando alunos a reconhecer e denunciar abusos. A rede de proteção local foi reestruturada, com maior integração entre conselhos tutelares, escolas e órgãos judiciais.

No âmbito judicial, a anulação do julgamento de Leandro Boldrini, em 2021, destacou a necessidade de rigor processual em casos de grande visibilidade. A demora na marcação de um novo júri, no entanto, frustra parte da população, que cobra celeridade na justiça. A luta por justiça para Bernardo continua, enquanto a sociedade reflete sobre como evitar novas tragédias.

A memória de Bernardo permanece como um chamado à ação. Sua história evidencia que a proteção à infância exige esforço coletivo, envolvendo famílias, comunidades e instituições. Enquanto o caso segue influenciando políticas públicas e debates sociais, o legado de Bernardo é um lembrete da importância de priorizar a segurança e o bem-estar das crianças.

Impactos duradouros na proteção infantil

O caso Bernardo Boldrini impulsionou mudanças significativas na abordagem à proteção infantil no Brasil. Após a tragédia, o Rio Grande do Sul intensificou esforços para capacitar profissionais que lidam com crianças, como professores e conselheiros tutelares. Programas de prevenção à violência doméstica foram expandidos, com foco na identificação precoce de sinais de abuso.

A criação de canais de denúncia anônima, como o Disque 100, foi ampliada, embora a implementação enfrente desafios em áreas rurais. A integração entre escolas, serviços de saúde e assistência social tornou-se uma prioridade, com o objetivo de criar uma rede mais eficiente de proteção. Apesar dos avanços, a burocracia e a falta de recursos ainda limitam a efetividade dessas medidas em muitas regiões.

O caso também destacou a importância de dar voz às crianças. Muitas vezes, suas denúncias são ignoradas ou minimizadas, o que pode agravar situações de risco. A história de Bernardo serve como um alerta para que a sociedade e as instituições priorizem a escuta ativa e a intervenção rápida em casos de suspeita de violência.



Em abril de 2014, a pequena cidade de Três Passos, no noroeste do Rio Grande do Sul, foi palco de um dos crimes mais chocantes da história recente do Brasil. O desaparecimento de Bernardo Uglione Boldrini, um menino de 11 anos, desencadeou uma investigação que revelou uma trama cruel envolvendo seu pai, Leandro Boldrini, sua madrasta, Graciele Ugulini, e dois cúmplices, Edelvania e Evandro Wirganovicz. O corpo de Bernardo, encontrado dez dias após seu sumiço, enterrado em uma cova às margens do rio Mico, em Frederico Westphalen, expôs não apenas a brutalidade do assassinato, mas também as falhas no sistema de proteção à infância. Mais de uma década depois, o caso continua a gerar debates sobre justiça, responsabilidade familiar e políticas públicas, enquanto a anulação do julgamento de Leandro Boldrini mantém a história em aberto.

Bernardo era conhecido em Três Passos por sua personalidade alegre e comunicativa. Contudo, sua vida familiar estava longe de ser tranquila. Após a morte de sua mãe, Odilaine Uglione, em 2010, o menino passou a viver com o pai, um médico respeitado na região, e a madrasta, uma enfermeira que assumiu um papel central na dinâmica familiar. Relatos de vizinhos, professores e até do próprio Bernardo apontavam para um ambiente de tensão, com sinais de negligência e maus-tratos. Apesar de denúncias feitas ao Conselho Tutelar e ao Ministério Público, nenhuma medida efetiva foi tomada para proteger o menino, permitindo que a tragédia se concretizasse.

O assassinato de Bernardo, executado com uma superdosagem de midazolam, um sedativo de uso controlado, foi planejado com frieza pelos quatro envolvidos. A descoberta do crime, impulsionada pela confissão de Edelvania Wirganovicz, chocou o Brasil e colocou Três Passos no centro das atenções nacionais. O julgamento de 2019, um marco na justiça gaúcha, condenou os responsáveis, mas a anulação da sentença de Leandro Boldrini, em 2021, reacendeu discussões sobre a eficácia do sistema judiciário. A morte de Edelvania, em 2025, em circunstâncias ainda sob investigação, trouxe novas camadas de complexidade a um caso que permanece vivo na memória coletiva.

Contexto familiar e os primeiros alertas ignorados

A trajetória de Bernardo Boldrini foi marcada por perdas e conflitos. Nascido em 2003, ele viveu seus primeiros anos ao lado da mãe, Odilaine Uglione, uma enfermeira dedicada que mantinha uma relação próxima com o filho. Em 2010, Odilaine foi encontrada morta em uma clínica médica em Três Passos, em um caso registrado como suicídio, embora investigações posteriores levantassem dúvidas sobre as circunstâncias. A morte da mãe foi um divisor de águas na vida de Bernardo, que passou a viver com o pai, Leandro Boldrini, e, posteriormente, com Graciele Ugulini, que se tornou sua madrasta.

Bernardo Boldrino e Edelvania
Bernardo Boldrino e Edelvania – Foto: reprodução Globo

A convivência com Graciele foi problemática desde o início. Professores da escola onde Bernardo estudava notaram mudanças em seu comportamento, com sinais de tristeza e isolamento. O menino, antes extrovertido, começou a relatar episódios de negligência e violência psicológica em casa. Em uma carta comovente, escrita à mão, Bernardo expressou o desejo de morar com outra família, descrevendo o sofrimento que enfrentava. Essas denúncias chegaram ao Conselho Tutelar e ao Ministério Público, mas a falta de ação concreta por parte das autoridades locais permitiu que a situação se agravasse, culminando no crime.

A herança deixada por Odilaine desempenhou um papel crucial no caso. Investigadores apontaram que Leandro e Graciele viam Bernardo como um obstáculo para o controle dos bens da família, o que intensificou os conflitos. A ausência de intervenção das instituições responsáveis, como o Conselho Tutelar, expôs a vulnerabilidade do menino e evidenciou falhas sistêmicas que seriam amplamente debatidas após o assassinato. O caso Bernardo tornou-se um símbolo das lacunas no sistema de proteção à infância, levantando questões sobre a responsabilidade de órgãos públicos em casos de suspeita de abuso.

O planejamento meticuloso do crime

O assassinato de Bernardo foi executado com um nível de premeditação que chocou até mesmo os investigadores mais experientes. Em 4 de abril de 2014, Graciele Ugulini levou o menino a Frederico Westphalen, cidade vizinha a Três Passos, sob o pretexto de visitar uma benzedeira. Durante o trajeto, Bernardo recebeu uma dose letal de midazolam, um sedativo ao qual Graciele, por sua formação como enfermeira, tinha acesso. A superdosagem causou a morte do menino, cujo corpo foi colocado em um saco plástico para transporte.

Edelvania Wirganovicz, amiga próxima de Graciele, teve um papel ativo na execução do plano. Ela ajudou a transportar o corpo e escolheu o local onde Bernardo seria enterrado, uma área rural às margens do rio Mico. Evandro Wirganovicz, irmão de Edelvania, foi responsável por cavar uma cova vertical de cerca de 1,5 metro de profundidade, projetada para dificultar a descoberta do corpo. Leandro Boldrini, por sua vez, manteve sua rotina como médico, chegando a registrar um boletim de ocorrência falso sobre o desaparecimento do filho, em uma tentativa de desviar as suspeitas.

A ocultação do corpo foi planejada com cuidado. A cova foi coberta com terra e vegetação, tornando-a quase imperceptível. No entanto, a confissão de Edelvania, pressionada pelas investigações, levou as autoridades ao local exato em 14 de abril de 2014. A descoberta do corpo revelou a extensão da crueldade do crime, que envolveu não apenas violência física, mas também manipulação e planejamento detalhado. A frieza dos envolvidos, especialmente de Leandro, que continuou sua vida normalmente após o assassinato, chocou a sociedade e intensificou a comoção nacional.

Principais marcos do caso Bernardo

  • Desaparecimento de Bernardo em 4 de abril de 2014, em Três Passos.
  • Descoberta do corpo em 14 de abril de 2014, em Frederico Westphalen.
  • Prisão de Graciele Ugulini e Edelvania Wirganovicz em 10 de abril de 2014.
  • Prisão de Leandro Boldrini e Evandro Wirganovicz em 14 de abril de 2014.
  • Julgamento dos quatro envolvidos entre 11 e 15 de março de 2019.
  • Anulação do julgamento de Leandro Boldrini em dezembro de 2021.
  • Morte de Edelvania Wirganovicz em 22 de abril de 2025, sob investigação.

A investigação que revelou a verdade

A Polícia Civil de Três Passos assumiu o caso logo após o registro do desaparecimento de Bernardo. As primeiras suspeitas recaíram sobre Leandro Boldrini, cujo depoimento apresentava inconsistências. A pressão da comunidade, aliada à intensa cobertura da imprensa, acelerou as investigações. Em 10 de abril de 2014, Graciele Ugulini foi presa, inicialmente negando qualquer envolvimento. No entanto, evidências como registros telefônicos e testemunhos começaram a apontar para sua participação no crime.

Edelvania Wirganovicz também foi detida no mesmo dia e, sob pressão, confessou sua participação, indicando o local onde o corpo de Bernardo estava enterrado. Sua colaboração foi decisiva para a recuperação dos restos mortais do menino, encontrados em 14 de abril de 2014. Evandro Wirganovicz, responsável por cavar a cova, foi preso na mesma data, enquanto Leandro Boldrini, apontado como o mentor intelectual, também foi detido. A análise pericial confirmou que a causa da morte foi intoxicação aguda por midazolam, administrado intencionalmente.

A investigação revelou um padrão de maus-tratos sofridos por Bernardo ao longo de meses. Laudos psicológicos e médicos indicaram sinais de violência física e emocional, corroborando as denúncias feitas pelo menino antes de sua morte. O Ministério Público classificou o crime como homicídio quadruplamente qualificado, destacando agravantes como motivo torpe, meio cruel, impossibilidade de defesa da vítima e violência contra menor de 14 anos. A complexidade do caso exigiu meses de preparação para o julgamento, que se tornaria um marco na história judicial do Rio Grande do Sul.

O julgamento histórico de 2019

Entre 11 e 15 de março de 2019, o Tribunal do Júri de Três Passos realizou o julgamento dos quatro envolvidos no caso Bernardo, um evento que mobilizou o Brasil. Presidido pela juíza Sucilene Engler, o julgamento reuniu mais de 50 horas de depoimentos, vídeos, áudios e provas periciais. A cobertura da imprensa transformou o processo em um marco midiático, com transmissões ao vivo e debates intensos nas redes sociais.

Graciele Ugulini foi condenada a 34 anos e 7 meses de prisão por homicídio quadruplamente qualificado e ocultação de cadáver. A sentença destacou sua responsabilidade direta na administração do midazolam e na execução do plano. Leandro Boldrini recebeu 33 anos e 8 meses de reclusão, sendo apontado como o mentor intelectual. A juíza enfatizou sua falta de remorso e a gravidade de sua conduta como pai da vítima. Edelvania Wirganovicz foi sentenciada a 22 anos e 10 meses, enquanto Evandro Wirganovicz, considerado cúmplice secundário, recebeu 9 anos e 6 meses, cumprindo parte da pena em regime semiaberto.

O julgamento foi marcado por momentos de forte emoção, especialmente durante a apresentação de vídeos e cartas de Bernardo, que revelavam seu sofrimento. A condenação dos envolvidos trouxe um senso de justiça para parte da sociedade, mas também levantou questionamentos sobre a prevenção de casos semelhantes. A anulação do julgamento de Leandro, anos depois, reacendeu a indignação de muitos que acompanharam o caso.

Repercussão social e impacto cultural

O caso Bernardo Boldrini transcendeu as fronteiras de Três Passos, tornando-se um dos crimes mais emblemáticos do Brasil. A história do menino, que tentou buscar ajuda antes de ser assassinado, sensibilizou milhões de pessoas e gerou manifestações em cidades gaúchas. A imprensa dedicou ampla cobertura ao caso, com reportagens, documentários e programas de televisão explorando os detalhes da tragédia. Livros e séries inspirados no crime retrataram suas implicações sociais, embora algumas produções tenham sido criticadas por sensacionalismo.

Nas redes sociais, o caso mobilizou campanhas por justiça e reformas no sistema de proteção à infância. Hashtags como #JustiçaPorBernardo viralizaram em 2014 e 2019, durante o julgamento. Em Três Passos, a memória de Bernardo permanece viva por meio de memoriais e placas erguidos em sua homenagem. A cidade, marcada pela tragédia, busca superar o estigma enquanto investe em iniciativas comunitárias para proteger suas crianças.

A história de Bernardo também influenciou mudanças legislativas. Em 2016, a Lei 13.257, conhecida como Marco Legal da Primeira Infância, foi sancionada, estabelecendo diretrizes para a proteção de crianças de 0 a 6 anos. Embora voltada para uma faixa etária inferior à de Bernardo, a lei reflete um esforço para priorizar a infância em políticas públicas, um legado indireto do caso. A tragédia destacou a importância de ouvir as crianças e de fortalecer os mecanismos de denúncia e intervenção.

Falhas no sistema de proteção à infância

O assassinato de Bernardo expôs graves lacunas no sistema de proteção à infância no Brasil. Antes de sua morte, o menino buscou ajuda em diversas instâncias, incluindo a escola, o Conselho Tutelar e o Ministério Público. Suas denúncias, no entanto, foram subestimadas, permitindo que ele permanecesse em um ambiente de risco. Professores relataram sinais de sofrimento, mas a falta de coordenação entre os órgãos responsáveis impediu ações efetivas.

Após a tragédia, o Rio Grande do Sul implementou medidas para fortalecer a rede de proteção infantil. Em 2015, o governo estadual lançou o Programa de Proteção à Criança e ao Adolescente, que ampliou a capacitação de conselheiros tutelares e educadores. Canais de denúncia anônima, como o Disque 100, foram incentivados, embora sua implementação enfrente desafios em áreas rurais. Especialistas apontam que casos como o de Bernardo exigem uma abordagem integrada, envolvendo escolas, serviços de saúde e o sistema judiciário.

As falhas no caso Bernardo também destacaram a importância de ouvir as crianças. Muitas vezes, suas denúncias são desconsideradas em situações de conflito familiar, o que pode agravar situações de risco. A burocracia e a falta de recursos continuam sendo obstáculos para a efetividade das políticas de proteção, especialmente em cidades pequenas como Três Passos, onde os serviços são limitados.

Medidas para prevenir casos de violência infantil

  • Capacitação de professores e conselheiros tutelares para identificar sinais de abuso.
  • Ampliação de canais de denúncia anônima, como o Disque 100.
  • Integração entre escolas, serviços de saúde e assistência social.
  • Investimento em programas de prevenção à violência doméstica.
  • Criação de protocolos para intervenção rápida em casos de suspeita de maus-tratos.

A trajetória de Edelvania Wirganovicz no sistema prisional

Edelvania Wirganovicz, uma das figuras centrais do caso, ingressou no sistema penitenciário em abril de 2014, após sua prisão. Inicialmente, ela foi mantida em regime fechado no Presídio Feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre. Em maio de 2022, após cumprir mais de 9 anos de sua pena, Edelvania obteve progressão para o regime semiaberto, sendo transferida para o Instituto Penal Feminino de Porto Alegre. A decisão considerou sua boa conduta e laudos psicológicos favoráveis.

Em 2023, Edelvania conseguiu prisão domiciliar com monitoramento eletrônico, devido à falta de vagas em unidades adequadas ao regime semiaberto. A medida, concedida em 10 de outubro de 2023, foi revogada em 20 de fevereiro de 2025, após recurso do Ministério Público, que alegou que ela não havia cumprido 50% da pena. Edelvania retornou ao Instituto Penal Feminino, onde foi encontrada sem vida em 22 de abril de 2025, com sinais de asfixia. O caso está sob investigação, levantando questões sobre a segurança em presídios de alta repercussão.

A morte de Edelvania reacendeu debates sobre as condições do sistema prisional gaúcho. O Instituto Penal Feminino, com capacidade para 96 internas, enfrenta desafios como superlotação e recursos limitados. Apesar de equipado com câmeras de monitoramento, incidentes como esse revelam vulnerabilidades nos protocolos de segurança. A Superintendência dos Serviços Penitenciários informou que está revisando os procedimentos internos, mas a pressão por reformas estruturais permanece.

Desafios do sistema prisional gaúcho

O sistema prisional do Rio Grande do Sul enfrenta problemas crônicos que impactam a gestão de casos como o de Bernardo Boldrini. Unidades como o Instituto Penal Feminino de Porto Alegre, onde Edelvania cumpriu parte de sua pena, operam com capacidade limitada e recursos escassos. A superlotação, a falta de vagas e a precariedade de algumas instalações dificultam a ressocialização e a segurança dos apenados.

Graciele Ugulini, que cumpre pena em regime fechado no Presídio Madre Pelletier, enfrenta condições específicas devido à gravidade de seu crime. Condenadas por crimes hediondos muitas vezes requerem celas isoladas para garantir sua segurança, o que aumenta a pressão sobre o sistema. A gestão de apenados em casos de grande comoção exige um equilíbrio entre punição, proteção e ressocialização, um desafio que o sistema prisional gaúcho ainda busca superar.

A morte de Edelvania, em 2025, destacou a necessidade de maior investimento em segurança e monitoramento. Apesar de o Instituto Penal Feminino contar com câmeras e agentes treinados, incidentes como esse expõem falhas nos protocolos. A Susepe informou que está investigando o caso, mas a sociedade cobra mudanças mais amplas para garantir a segurança e a eficácia do sistema prisional.

O legado de Bernardo Boldrini

A tragédia de Bernardo Boldrini deixou marcas profundas na sociedade gaúcha e brasileira. Sua história inspirou iniciativas comunitárias, como grupos de apoio a crianças em situação de risco, e reforçou a importância de ouvir as vítimas de violência doméstica. Em Três Passos, escolas adotaram programas de conscientização, ensinando alunos a reconhecer e denunciar abusos. A rede de proteção local foi reestruturada, com maior integração entre conselhos tutelares, escolas e órgãos judiciais.

No âmbito judicial, a anulação do julgamento de Leandro Boldrini, em 2021, destacou a necessidade de rigor processual em casos de grande visibilidade. A demora na marcação de um novo júri, no entanto, frustra parte da população, que cobra celeridade na justiça. A luta por justiça para Bernardo continua, enquanto a sociedade reflete sobre como evitar novas tragédias.

A memória de Bernardo permanece como um chamado à ação. Sua história evidencia que a proteção à infância exige esforço coletivo, envolvendo famílias, comunidades e instituições. Enquanto o caso segue influenciando políticas públicas e debates sociais, o legado de Bernardo é um lembrete da importância de priorizar a segurança e o bem-estar das crianças.

Impactos duradouros na proteção infantil

O caso Bernardo Boldrini impulsionou mudanças significativas na abordagem à proteção infantil no Brasil. Após a tragédia, o Rio Grande do Sul intensificou esforços para capacitar profissionais que lidam com crianças, como professores e conselheiros tutelares. Programas de prevenção à violência doméstica foram expandidos, com foco na identificação precoce de sinais de abuso.

A criação de canais de denúncia anônima, como o Disque 100, foi ampliada, embora a implementação enfrente desafios em áreas rurais. A integração entre escolas, serviços de saúde e assistência social tornou-se uma prioridade, com o objetivo de criar uma rede mais eficiente de proteção. Apesar dos avanços, a burocracia e a falta de recursos ainda limitam a efetividade dessas medidas em muitas regiões.

O caso também destacou a importância de dar voz às crianças. Muitas vezes, suas denúncias são ignoradas ou minimizadas, o que pode agravar situações de risco. A história de Bernardo serve como um alerta para que a sociedade e as instituições priorizem a escuta ativa e a intervenção rápida em casos de suspeita de violência.



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